Entrevista | Ferreira Gullar

“Um poema, antes de ser político, tem que ser poético”

Osny Tavares

Ferreira Gullar é um animal político. O poeta maranhense, talvez o maior versador brasileiro vivo, percorreu quase toda a história da segunda metade do século XX em sua obra. Desde a poesia da juventude, preocupada com a extrema pobreza do Nordeste, Gullar demonstrava a veia combativa. Foi durante o período da ditadura, porém, que o autor abriu as veias e escreveu a sangue. Militante do Partido Comunista do Brasil, participou do grupo de autores teatrais que iniciou a contestação ao regime, meses após o golpe. Depois que o partidão foi colocado na clandestinidade, seus membros começaram a ser perseguidos. Acuado, Gullar fugiu para a Rússia em 1971 e, depois, se fixou em Buenos Aires. Na capital argentina, escreve sua obra mais conhecida. Poema sujo, uma longa recuperação de sua vida, é uma espécie de testamento antecipado. Ele conta ao Cândido, em entrevista realizada por telefone de seu apartamento, que se imaginava sendo capturado por militares argentinos dali a, no máximo, alguns meses. “Tinha que dizer tudo o que faltava ser dito”, lembra. O poeta relembrou os anos de chumbo e falou também sobre o Brasil contemporâneo, objeto de aguerridas análises em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo.

Cristina Lacerda

                                                         Foto: Cristina Lacerda

Existe na historiografia brasileira a impressão de que só a música popular batalhou contra a ditadura? Porque a história registrou essa tendência a exaltar uma forma de arte em detrimento das outras?

A resistência, na verdade, começou no teatro. Não foi nem na música popular. O Grupo Opinião realizou a primeira manifestação política contra a ditadura em dezembro de 1964. Foi um sucesso de público, encheu a casa durante meses e é considerada a primeira manifestação. Depois, o grupo estreia a peça Liberdade, liberdade, de Flávio Rangel e Millôr Fernandes. Depois veio Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come, que era também uma crítica ao regime, mas de maneira sutil. A resistência se dava no teatro. Tanto que houve prisões de atores, manifestações de rua aqui no Rio. O Teatro Opinião se tornou o centro de reuniões da intelectualidade, para ver que providências tomar quando o regime adotava essa ou aquela atitude em relação a atores, músicos, às novelas, enfim. Agora, por que a literatura parece menos combativa? Porque não havia censura aos livros. Teatro e música sempre dependeram de uma liberação prévia da censura. Livros nunca tiveram esse problema. Depois do AI-5, em 1968, a ditadura tentou estabelecer censura para livros. Foi quando Jorge Amado e Erico Verissimo, que eram os dois nomes mais famosos da literatura brasileira, inclusive internacionalmente, se manifestaram contra, escreveram uma carta que foi publicada na imprensa, dizendo que se estabelecesse a censura eles parariam de publicar suas obras no Brasil. Aí a ditadura recuou. O romance Quarup, do Antonio Callado, livros do [Carlos Heitor] Cony, faziam uma crítica forte. Mas a literatura não tem a mesma exposição popular da música, teatro, rádio e televisão.

Como foi essa virada: acordar em abril de 1964 sob uma ditadura? Quando a literatura começou a entender e absorver isso?
O trabalho com o Grupo Opinião começou já em novembro ou dezembro daquele ano. Nós nos reuníamos muito. Eu pertencia ao CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE [União Nacional dos Estudantes] junto com vários outros artistas. Não paramos. Tocaram fogo na UNE, destruíram o CPC, abriram processo contra nós, mas continuamos atuando, agora de forma clandestina. Inauguramos um teatro que se tornou um centro de resistência contra a ditadura. O Teatro de Arena de São paulo seguiu o mesmo caminho. A peça Zumbi, do Augusto Boal e do Gianfrancesco Guarnieri, era uma crítica à ditadura. Proibiram a peça do Dias Gomes, O berço do herói. A batalha continuou e a gente foi pra rua. A passeata dos 100 mil [protesto no Rio de Janeiro, em 1968] nasceu no teatro, com o grande apoio do partido comunista. Grande parte do Opinião era membro do partido e defendia ações com sensatez. Os estudantes queriam tacar pedra na polícia, enquanto a gente dizia que tínhamos de fazer mobilização de massa, de forma pacífica, reunindo a população que estava contra o regime.

A partir dos anos 1970, com a derrota da guerrilha e a dissolução do Partido Comunista, ocorreu entre os intelectuais certa desilusão com a esquerda? Os contestadores ficaram sem um projeto para defender?
Depois do AI-5 a coisa mudou de tom. O cara ia ser processado, parar na cadeia e poderia até ser assassinado. Não podemos cobrar como se eles estivessem numa boa. As pessoas passaram a se expor menos, e atuaram de forma clandestina. Eu tive que ir para o exílio, porque provavelmente seria preso e torturado, como estavam fazendo com colegas meus.

Dentro da noite veloz (1962- 1975) é considerado o seu trabalho mais politizado, reunindo mais de uma década de produção. Qual era a sua proposta artística nesse momento? O que a sua poesia buscava?
No começo, no CPC da UNE, minha poesia tinha caráter mais político que poético. Eu mesmo comecei a perceber que isso estava errado. Um poema, antes de ser político, tem que ser poético. Pode fazer a crítica, mas precisa qualidades artísticas, senão não é obra literária. Então comecei a mudar, no sentido de continuar político, mas com qualidade literária cada vez maior. A qualidade da poesia vai aumentando ao longo do livro, a elaboração fica mais complexa. Agora, sempre fiz poesia a partir de uma necessidade real. Não faço poesia por fazer, e já não procedia assim naquela época. Todos os meus livros levam oito, nove, dez anos de trabalho. Não faço poemas como se fossem artigos de jornal. As composições de Dentro da noite veloz foram sendo publicadas de forma clandestina. Algumas saíram na revista Civilização Brasileira, uma publicação que combatia o regime e circulava normalmente. Outros poetas publicavam lá também.

A literatura é reconhecida como uma arte de maturação lenta. Num momento em que a história estava acontecendo muito rápido, a literatura conseguiu reagir na mesma velocidade?
No começo, eu e outros escritores atuávamos mais em cima do fato, com o objetivo de combater politicamente o regime. Aos poucos compreendemos que isso não tinha eficácia. Seria melhor nos reunirmos, discutir as questões e mobilizar a opinião pública. Era mais produtivo que ficar fazendo poesia. Quando era necessário, fazíamos, mas com qualidade. Se você fizer um poema ruim, não será nem boa política nem boa poesia. Aprendemos a cada vez mais ter ação política, pois fazer apenas literatura não teria resultado imediato.

Qual era o cenário social quando de seu exílio do país? Que tipo de pressão os escritores recebiam?
Depois do AI-5 a repressão contra os militantes foi cada vez mais intensa. Os militares haviam prendido um companheiro do partido, que sob tortura delatou intelectuais que faziam parte do Partido Comunista. Eu era membro da direção estadual do partido no Rio de Janeiro – um dos únicos intelectuais com cargo de direção. Nem Vianinha [o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho], nem Dias Gomes, nenhum outro. Quando esse companheiro torturado abriu a boca, o partido me avisou para ir para a clandestinidade. Eu aparecendo como membro, ia ser torturado para confessar até o que não sabia. Só que eu era membro da direção de araque. Fui eleito para impedir que o Marighella e o Mário Alves empurrassem o partido para a luta armada. Eu, que era contra pegar em armas, achava aquilo uma maluquice, aceitei fazer parte da chapa para neutralizar a influência deles. Mas isso também não ia adiantar de nada. Clandestino, fiquei numa situação cada vez pior. Passaram a me procurar e eu não tinha mais onde me esconder. Então fui para Moscou. Era melhor sair do país a ficar correndo de casa em casa.

Poema sujo (1975) fala muito da saudade, cria imagens pastorais de sua infância em São Luís. Como foi essa longa reflexão no exílio?
A ameaça de que a Argentina também iria entrar numa ditadura militar de direita foi uma das razões que me levou a escrever o poema. Eu estava sem rumo, não tinha mais para onde ir, quando a situação na Argentina começou a piorar. Alguns dos brasileiros e uruguaios exilados começaram a sumir, outros fugiram. A repressão lá vinha aumentando e existia a expectativa de que a Isabelita [Perón] ia ser derrubada. Tinha contato com membros da esquerda argentina, que eram meus amigos e me colocaram a par da situação. Eu estava sem documentos. Tentei conseguir um passaporte novo na embaixada brasileira, mas me foi negado, além de anular meu passaporte vencido. Fiquei sem saída. Então eu resolvi escrever a última coisa da minha vida, pois não sabia o que ia acontecer comigo. Tinha que dizer tudo o que me faltava dizer. Por issoele é longo e tem tantas reflexões. Não se trata de saudade. Trata-se de resgatar a vida vivida. Como nasci, como fui feito, como era a vida contemporânea. Toda uma argamassa de memórias, de sofrimentos e de alegrias.

A partir da metade dos anos 70, os escritores passaram a fazer experiências na forma, uma tendência à desconstrução e fragmentação dos personagens. É um reflexo do desencanto que tomou conta daquela geração?
Não tenho opinião sobre essa produção. Não li várias dessas obras, até porque estava fora do Brasil. Não acompanhei isso de perto. Pode ser o radicalismo possível. Quando a censura começou a ameaçar os escritores, eles procuraram enriquecer a sua obra não só com consciência política, mas também formalmente. É uma forma de enriquecer, de dar mais qualidade a ele. A pessoa não tem que ficar fazendo política o tempo todo. Mesmo no Dentro da noite veloz há poemas líricos e de amor. Nem o político faz política o dia inteiro, imagine o escritor.

O sr. tem sido muito crítico ao governo atual, usando para isso sua coluna no jornal Folha de S.Paulo? Ainda acredita numa arte militante ou num artista militante?
Não sou adversário do PT, nem de Lula, nem de partido nenhum. Sou um cidadão que pensa e analisa a situação do país. Falo do que está diante de mim. Lula combateu toda a política de Fernando Henrique Cardoso e depois adotou tudo, mas nunca disse que fez isso. Ao contrário, disse que era herança maldita. Ele não tinha projeto político, exceto aquela utopia comunista que havia fracassado no mundo inteiro. Ele inventou um jogo de mão dupla constante: Bolsa família para os pobres e empréstimos do BNDES para os ricos. Divulguei recentemente o manifesto de fundação do PT, cujo teor é quase igual ao Manifesto Comunista de Karl Marx, de 1848. Mas o que sobrou disso? Aliança com Paulo Maluf e o bispo Edir Macedo? Esse é o comunismo do PT? Virou um partido oportunista.

Qual a sua opinião sobre a retomada dos valores de mobilização pelos jovens, que ficaram 20 anos um pouco afastados do cotidiano da política?
Uma das razões dessa falsa mobilização [referindo-se a casos de violência, como os Black Blocks] foi a cooptação deles pelo PT. O PCdoB e a UNE deixou de fazer manifestações de massa. Enquanto isso a corrupção foi tomando conta do país de maneira avassaladora. Então em junho de 2013, para a alegria de todos os cidadãos conscientes, o povo foi pra rua e começou a protestar. Mas os esquerdistas aliados de Lula usaram o momento para fazer quebra-quebra e acabaram com a mobilização popular. As manifestações aqui no Rio chegaram a 1 milhão de pessoas, hoje não passam de 200. Eles estão trabalhando contra o interesse do país e da sociedade. O rapaz que soltou o rojão e matou o cinegrafista declarou que recebeu dinheiro para fazer isso.