Entrevista | Ana Maria Machado

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Pelo direito de ler e escolher


A escritora e “imortal” da Academia Brasileira de Letras fala sobre seu processo criativo e assuntos ligados ao livro e à leitura durante evento realizado na BPP



Ana Maria Machado foi a convidada especial do evento de encerramento da primeira fase do projeto Agentes de Leitura do Paraná — iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura que capacita multiplicadores para atuar em municípios do interior. O encontro, realizado no último dia 28 de julho, reuniu no auditório da Biblioteca Pública cerca de 150 pessoas, entre educadores, contadores de histórias, outros autores e fãs em geral. Uma plateia interessada na trajetória e na extensa obra da escritora carioca, cujo currículo inclui prêmios importantes (como o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil) e vendas expressivas (são mais de 20 milhões de exemplares vendidos em 25 países). 
Com 40 anos de carreira e mais de 100 títulos publicados, a ocupante da cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras também é uma “pensadora” da literatura. Além de escrever alguns dos maiores clássicos infantojuvenis brasileiros (Raul da ferrugem azul, Menina bonita do laço de fita, Quem manda na minha boca sou eu, etc.), ela ainda se dedica a produzir ensaios sobre a cultura contemporânea, grandes autores nacionais e o universo do livro e da leitura. O texto a seguir é a transcrição do evento de julho, mediado pelo jornalista Omar Godoy e que contou com intensa participação do público.

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“Não importa o suporte da
literatura. A força do texto literário
está na palavra, na narrativa em
si. Tanto faz se está em papel ou
na tela do computador.”


Primeiras letras 
Tive muita sorte na vida com relação à presença dos livros na minha infância. Meu avô era português e se casou com uma filha de portugueses. Quando ele veio para o Brasil, já tinha se formado em farmácia, aos 20 e poucos anos. Trouxe um saco grande, com algumas mudas de roupa e dois livros. Eram duas gramáticas latinas. Por acaso, depois eu estudei Letras e esses livros acabaram ficando comigo. Mas, o que eu quero dizer, é que isso mostra uma valorização do livro. Porque, na hora de trazer os tesouros dele, meu avô trouxe dois livros. Meu pai, filho dele, teve que parar de estudar muito cedo. Com 13 anos, estava trabalhando num posto de gasolina. Só depois, muito mais tarde, já adulto, fez o equivalente a um supletivo. Ele foi jornalista e sempre procurou ler muito, também valorizando o livro, até por causa da profissão. E pegava muito livro em biblioteca, assim como a minha mãe, que também lia bastante. Nós tínhamos muitos livros de biblioteca circulando em casa. Eu ouvia muita história quando era criança. E aprendi a ler em casa, ainda pequena. Contam que, um certo dia, a professora do jardim descobriu que eu estava lendo. Assim que aprendi, naquele primeiro Natal ganhei Reinações de Narizinho, do Monteiro Lobato, que comecei a ler avidamente. Sou a mais velha de 11 irmãos, então eu permanentemente lia histórias para eles. E, para não esquecer alguns detalhes das histórias, comecei a anotá-las num caderno. E as duas coisas, ler e escrever, foram se misturando. 

Processo criativo 
Em geral, quando eu começo um livro, não sei como ele vai acabar. No caso de De olhos nas penas, por exemplo, criei uma personagem e fui desenvolvendo uma história em torno dela. Mas também posso partir de uma palavra. Um dia, descobri que “jararaca” e “perereca” eram duas palavras que ecoavam uma a outra. Aí eu lembrei de “tiririca”. E aí comecei a pen
sar na jararaca, na perereca, na tiririca. Elas só podiam se encontrar num terreno baldio. Tinha que ser um campo, onde tivesse água. Aí o ambiente foi surgindo, a história foi surgindo. Mas eu não sabia para onde ela iria, fui descobrindo enquanto escrevia. E assim surgiu o livro A jararaca, a perereca e a tiririca. (…) Sou muito disciplinada, muito metódica, procuro escrever todo dia. Às vezes, quando não estou produzindo nenhum livro específico, faço exercícios de escrever o que vejo pela janela, de imaginar como continua o pedaço de conversa que ouvi no elevador ontem, de pensar quem são as pessoas conversando no restaurante. 

Ilustrações 
Não escolho meus ilustradores. Quem escolhe é o editor. Escrevi livros que tiveram sucessivas edições, em sucessivas editoras, com ilustradores diferentes. Tenho mais de 100 livros editados em 20 e tantos países. Se tivesse que contar nos dedos de uma mão os que aproveitaram a ilustração original, acho que não completaria a mão. Talvez dois ou três. Mas aqui consumimos ilustração estrangeira sem nenhum problema, porque fomos acostumados com isso desde o começo. Os nossos primeiros livros infantis vinham com a ilustração feita em Portugal. Ontem mesmo uma livreira se queixou disso para mim. Ela reclamou que os colégios estão adotando mais livros estrangeiros do que brasileiros. Eu já tinha notado que a imprensa e as revistas especializadas em educação estão dando muito mais ênfase para os livros traduzidos. Porque eles entram com ilustrações muito atraentes, voltadas para um olhar acostumado com uma estética globalizada. Mas essa questão da ilustração vem se desenvolvendo bastante no Brasil. Hoje em dia temos ilustradores que estudaram, são formados em escolas de design, belas artes. Isso não era assim uma geração atrás. Quase todos os ilustradores vinham da imprensa ou da publicidade. E eram autodidatas. Agora a gente está com uma concepção muito mais profissional de ilustração. 

Por que ler os clássicos 
Sou muito conhecida pelos livros infantis, mas tenho dez romances para adultos e 15 livros de ensaios publicados. Ou seja, se eu não tivesse escrito nada para criança, teria 25 livros para me apresentar e destruir um pouco a imagem da autora infantil. Mas não quero destruir essa imagem, porque ela é muito cara a mim. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo é um desses livros de ensaios. (…) Quando se fala em clássicos, todo mundo logo pensa em José de Alencar, Machados de Assis, etc. Estão pensando nos clássicos da língua, que, na minha opinião, em princípio não devem ser adaptados. Porque eles representam uma oportunidade de se conhecer a língua em outro século, em outro tempo. Talvez seja melhor esperar que o aluno cresça um pouquinho e seja apresentado a essas obras, em sua integridade, só nas últimas séries. Mas existem os outros clássicos, os universais. Muitas vezes, eles têm um enredo tão forte, ou personagens tão poderosos, que podem perfeitamente estar ao alcance do jovem leitor muito cedo na forma de adaptações. Se elas forem bem feitas, claro. Por exemplo: Dom Quixote, o grande clássico da literatura em língua espanhola, pode ser apresentado para uma criança por meio de um livro como Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato. Uma adaptação perfeita, divertida. Um primeiro contato excelente com a obra. Por isso eu gosto de fazer essa distinção. Dei o exemplo de Dom Quixote, mas poderia ter falado de Robinson Crusoé, Os miseráveis, Os três mosqueteiros, Romeu e Julieta... Muita coisa de Shakespeare pode ser apresentada dessa maneira. Enfim, acho que todos nós temos o direito a essa herança literária, esse legado cultural de mais de dois mil anos. 

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Clássicos em quadrinhos 
Vejo com muita simpatia as recentes adaptações de clássicos brasileiros para os quadrinhos. Grande sertão: veredas, por exemplo, ficou uma maravilha. O original do Guimarães Rosa tem quase 600 páginas com aquela linguagem que ele criou, difícil de se ler. Dependendo da região do Brasil, a pessoa precisa ler em voz alta para que o som te diga o que significa aquilo. Quando soube que estavam adaptando, pensei comigo que não daria certo. Mas é primorosa, e não só visualmente. Eles respeitaram perfeitamente a linguagem e conseguiram resumir em poucas páginas uma coisa que no original era enorme. Outra adaptação que ficou excelente é O Ateneu, do Raul Pompeia. Um livro difícil, cinzento, simbolista, meio para baixo. Minha passagem pela presidência da Academia Brasileira de Letras coincidiu com as efemérides de 100 anos da morte do Raul Pompeia e dos 150 anos do nascimento de Aluísio Azevedo. Naquele ano, então, decidimos homenagear os dois autores trabalhando suas principais obras com os alunos de um projeto que desenvolvemos em favelas do Rio de Janeiro, sobretudo no Complexo do Alemão. O cortiço, do Aluísio Azevedo, surpreendentemente foi muito bem absorvido. Os alunos só precisaram de uma orientação com relação ao vocabulário. Já O ateneu foi considerado dificílimo, então resolvemos utilizar uma adaptação em quadrinhos feita pela editora Ática. Os resultados foram maravilhosos. A adaptação não despertou a comunidade local para ler o original depois, mas eles tomaram conhecimento dos questionamentos propostos pelo livro. Por isso acho importante esse tipo de contato com os clássicos. Nem que seja só um capítulo, a descrição do personagem. O problema é quando não se respeita o espírito da obra original. Como no caso de uma adaptação ridícula de Machado de Assis distribuída pelo Ministério da Educação, que teve de ser recolhida porque substituía várias palavras por sinônimos.

“Fôlego de leitura” 
Houve um tempo em que trabalhava comigo uma moça, faxineira, que vinha uma vez por semana na minha casa. Gosto imensamente dela. Ela tinha uma filha pequena, a Ana Paula, para quem eu sempre mandava livros infantis. A Ana Paula lia, devolvia, às vezes ficava com o livro. Era um sistema de rodízio de livros que durou anos. A garota foi crescendo e eu fui mandando livros mais complexos. O fôlego de leitura dela foi se tornando muito forte, e eu fui acompanhando isso. Um dia, ela me mandou um bilhete. Agradecia os livros que eu tinha mandado e dizia: “Ah, e esse último que eu li é ótimo. Pode mandar sempre outros assim”. Mas ela não disse qual livro era, porque eu tinha mandado quatro ou cinco. Mandei um bilhetinho de volta perguntando o título. Ela respondeu com outro bilhetinho, explicando que o livro era Senhora, de José de Alencar. “Adorei esse livro porque o jeito de ele escrever é ótimo. Fiquei me achando muito importante quando entendi”, ela disse no bilhete. Na verdade, a Ana Paula apreciou muitíssimo a linguagem de Alencar. Que é uma linguagem do século XIX, difícil. É claro que ela gostou da personagem principal, que é fascinante. Uma mulher que fica poderosa, manda nos homens, isso chama a atenção mesmo. Mas o que ela quis destacar no bilhete foi a linguagem. E ela tinha 14 anos, era filha de uma faxineira e de um jardineiro. Essa moça foi desenvolvendo de tal maneira sua capacidade como leitora, seu fôlego de leitora, que José de Alencar se tornou um dos autores favorito dela sem que ninguém impusesse. Portanto, eu acho possível o clássico estabelecer uma relação dessas com o leitor, mas é um processo gradativo. E quando a Ana Paula diz que “se achou importante”, isso significa que ela se sentiu participante de uma coisa brasileira que vem desde o século XIX. Ela deixou de ser marginal. 

Livro x internet 
É inevitável citar Umberto Eco: em relação à internet, não sou apocalíptica, nem integrada. Não acho que a internet vai acabar com tudo, nem acho que vai substituir o livro e ser melhor. Quando se fala nessa questão do livro e da internet, muitas vezes estamos misturando os canais. Não tenho dúvida de que é muito melhor ter uma enciclopédia na internet do que uma impressa, que quando sai já está desatualizada. Mas estou falando de enciclopédias, dicionários, guias de viagem, atlas, compêndios em geral. Acho que as obras de referência, na internet, podem levar uma vantagem enorme em relação ao livro impresso. Porque a atualização é permanente. Se surge um novo país na África, isso entra na hora na enciclopédia. Se o autor citado em um verbete publicou um novo livro, essa informação é acrescentada na hora. Esses dados concretos funcionam muito mais 
na internet do que no livro. Podemos poupar as árvores que vão ser utilizadas para imprimir toda essa tiragem de livros. Já no caso de literatura, eu não vejo essa competição. Pode ter um e outro, impresso e digital, como queiram. Porque a literatura resiste a diferentes suportes. A Odisseia foi impressa há 2,8 mil anos. Antes disso, o suporte de Homero era a lira, porque as histórias eram cantadas de um lugar para o outro. Era oral, tinha estribilho e diversos outros recursos mnemônicos para ser lembrada e repetida de geração em geração. Esses poemas existiam pelo menos três séculos antes da descoberta da escrita ou da chegada da escrita à Grécia. Depois tivemos tábuas, papiros, pergaminhos... Até chegar às grandes rotativas e agora à internet. Não importa o suporte da literatura. A força do texto literário está na palavra, na narrativa em si. Tanto faz se está em papel ou na tela do computador, como antes já esteve em outros suportes. Fala-se muito na literatura eletrônica, digital, que permite ao leitor acrescentar ou modificar a obra. Pode ser um exercício interessante para ele, leitor. Mas não significa, necessariamente, que vai melhorar a obra de arte. Isso não interfere na literatura, e sim na experiência de leitura. Não acho que seja problemático.

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“Ver outras pessoas lendo é
provavelmente o maior estímulo que uma
criança pode ter para ler também.”


O poder do exemplo 
Lembro que o Paulo Freire disse, e insistiu muito nisso, que um dos trabalhos da educação é dar oportunidade para o educando construir sua autodisciplina. Se você exigir que um aluno leia uma coisa difícil, acima do que é possível para ele, você está falhando na sua atividade de educador. Mas se você propiciou oportunidades pra que ele pouco a pouco se interesse pelas coisas, ele provavelmente vai se interessar. O maior incentivo à leitura é o exemplo. Nós não engatinhamos a vida toda porque vemos gente andando. Existe uma série de comportamentos cotidianos que a gente incorpora porque vê as pessoas repetindo. Então, ver outras pessoas lendo é provavelmente o maior estímulo que uma criança pode ter para ler também. Lembro que à vezes eu procura a minha mãe para pedir alguma coisa e ela dizia: “Peraí, peraí”. Estava acabando de ler alguma coisa, com o livro na mão. E eu ficava achando que os livros eram incríveis, porque ela dava mais importância para eles do que para mim. Então eu passei a querer entrar naquele mundo, para poder fazer isso com ela também. [risos] 

Direito de escolha 
Tive uma livraria infantojuvenil no Rio, a Malasartes, que administrei durante 18 anos. E nessa livraria eu nunca encontrei uma criança que não gostasse de ler. Encontrei, sim, algumas que ainda não tinham descoberto a leitura. Mas elas chegavam, pegavam alguns livros, sentavam nas almofadas e, de repente, se identificavam com alguma coisa. Por isso, acho que devemos oferecer ao leitor, além do exemplo inicial, a oportunidade de escolher. Costumo dizer que ler é como namorar: se você acha que o namoro não está dando certo, dispensa o namorado e pega outro. [risos] Se você leu dois livros na vida, um dos dois vai ser um pouquinho melhor que o outro, então segue nesse caminho que está dando certo. Se você já leu três ou quatro livros, já tem um padrão maior de comparação. A virgindade literária cobra um preço. [mais risos]