Ensaio: A penteadeira de Wilson

O escritor e crítico José Castello, em um texto entre a memória e a ficção, fala sobre a vida e a obra de Wilson Bueno, que morreu há um ano

José Castello


1.O jogador

Wilson encarava a vida como um jogo. Fino jogo de existir, luta que não excluía, jamais, a elegância. Uma dança antiga. Um baile de máscaras. Se é difícil dizer quem foi Wilson, mais difícil ainda é dizer quem ele não foi. Sua obsessão: existir. Uma existência excessiva – como um tabuleiro de xadrez em que se dobrassem o número de peças.

Como jogar esse jogo? Como mexer-se na zona do excesso? Wilson, o lutador, transformava a todos não em adversários – pois era gentil, afetuoso e, mais ainda, melodramático. Não em adversários, mas em comparsas, de quem exigia uma relação reta, armas transparentes, lances leais. Jogo sim. Excesso sim, e muito. Mas regras. Protocolos. Mesuras.

Wilson foi um clássico. Arrancado do passado, indispunha-se com o presente, sofria, reclamava. Sentado diante de sua penteadeira, a escolher a máscara do dia. Puxa uma delas, fixa-a sobre a outra, e mais outra – e assim terá à sua disposição muitas jogadas, muitas possibilidades. Foi um escritor do possível e do impossível. Representou scripts incompreensíveis, luzes contraditórias, focos que iluminavam e logo depois apagavam. Velha penteadeira, herança de alguma tia: rangente máquina de ser.

Máquina de fabricar o plural, de multiplicar. Ao telefone, com quem Wilson está falando? A quem se dirige? O que espera? E a pergunta anterior a todas elas: qual Wilson, ao telefone, fala? Qual Wilson, diante do espelho, se multiplica? A morte o levou, mas a pergunta insiste: quem foi Wilson Bueno? São muitas, intermináveis, as respostas. Aqui esboço uma. Um das muitas que poderia oferecer.

2- O palhaço

Wilson gostava de rir e de fazer rir. Rir para quê? Para nada. É preciso tomar ao pé da letra a dança das máscaras: não buscar explicações, sentidos, intenções ocultas. O riso nada significa. O riso ri. Wilson fazia rir porque insistia em rever-se, em alternar-se, em nos aplicar rasteiras. Porque não parava, não sossegava, mas por que não parava? De onde tanta inquietação? De onde esse excesso de pilhas? E como aguentou?

Às vezes ficava cansado. Outras vezes, alongava ao extremo o prazer de apagar a realidade, envolvendo-nos (e a si) na colcha macia e trepidante (elétrica?) do riso. Não sorriso, nenhum esboço, nada discreto: gargalhadas. Wilson ria mesmo quando ninguém ria. Era sua arte preferida: puxar o riso. Ria de si mesmo. Revirava-se: o riso o revira, o desdobra em avessos, não em um, mas em muitos. Avessos de avessos, e mais outros: onde está o direito? De que lado deve-se usar essa máscara?

O riso de Wilson era um desdobramento. Um deslocamento. As coisas não estão onde deveriam. As coisas trepidam, o mundo trepida, e não é fácil. Ao telefone, Wilson trepida também. A estrada do mundo é esburacada, falha, escorregadia. Tem curvas que levam ao desmaio, ou a novas risadas. As curvam desenham um abismo que faz tremer. Rir é viver não como acidente, mas como bênção. É leve e séria, nos mostra Wilson, a experiência do existir.

3- O ator dramático

O drama, nas mãos de Wilson, não era um alargamento da dor; era, ao contrário, seu desmascarar, seu desmonte. A dor, ó dor! Não que não doa (mas Wilson não foi um leitor apaixonado de Pessoa). Não que deveras. Portanto, não finge o que devia sentir. O drama não é a exposição da dor, mas a denúncia da dor. A dor não escolhe vítimas; não existem vítimas; a dor é para todos. A dor é o que se faz da dor.

A dor dissolve e revela. Se a levamos a sério, emudecemos. Se, ao contrário, como fazia Wilson, a vemos como um teatro, palco, luzes, maquiagem, máscaras, se fazemos assim, dramatizamos. O drama é a dor que grita: “Eu sou a dor!” É Wilson que grita: “Eu sofro!” O ator dramático não dramatiza porque sofre (e não é que não sofra de fato), mas dramatiza porque goza. Talvez só um pedido de afeto, que independe da dor real.

A dor e os doloridos só pensam no grande palco. Apontam para o Teatro. A dor se desenrola, como o tapete que cobre um palco. O real é isso: um tablado, com seus limites (cortinas, coxias, boca de cena), com seus artifícios (luzes, figurinos, cenários), seus aplausos. Ou vaias – por que não? Wilson amava as vaias pelo que elas têm de sinceras – isso quando são sinceras. Pelo modo como manipulam nosso interior, como o fervem. Wilson macaqueia o “profundo”. Carrega seu corpo de grande dama. Arrasta sua realeza – como um pano quente que, apertado contra nossos rostos, nos acorda. Não há fundo, dizia Wilson. Não há o submerso, só o existente. E é ele, o existente, que dói, e é dessa dor banal que devemos viver. Ou nada mais.

4- O anjo

Wilson flutua sobre o calçadão da rua XV. Veste calças vermelhas, chocantes, trajes de roqueiros. Em um orelhão, telefona para a amiga Maria Zilda. Sempre ela. Narra, fabula, dramatiza. Quase não ouve: o monólogo o fascina. As calças vermelhas chocam a Curitiba cheia de dedos e mesuras que, ainda hoje, aprecia um minueto e não dispensa a retórica. Os cabelos revoltos são sinais excessivos de uma época. Usará batom, ou é o sangue que se acumula (traiçoeiro) em seus lábios? Sinais, emblemas, insígnias. Pistas angelicais de uma época infernal (a ditadura militar). Almas de chumbo que vigiam um anjo. Diabinho.

Wilson flutua e seu voo denuncia a rigidez do regime. Ergue-se acima da estúpida realidade. Ao fazer-se de anjo, se salva. Os literatos não reconhecem um escritor que dispense sua farda. Nele não se veem. Em alguém que, alguns palmos, só alguns, acima do chão, desliza, desdenha, impõe-se. Desvia-se. Manterá a atitude de anjo mesmo depois, em tempos democráticos, abertos, mas ainda habitados por senhores de colete e sobretudo. Perturbará, sempre, a ordem da cidade. Destino do corpo estranho: desafiar. Talvez por isso, um dia, uma faca... Um rapaz estúpido (monstro). Um corte – seco como um parágrafo.

Desafia, sempre. a existência da boa ordem. Wilson semeia a liberdade. Semeia certa desordem – que se sustenta sobre uma ordem sutil: a da beleza. Sim, é sensível, exagera a perseguição (drama), tira partido da estridência. Com suas asas de papel, atenua o peso de chumbo de seu tempo. Ao flutuar, liberta-se (dizem que é “só imaginação”, mas será “só”?). Livra-se da escravidão invisível dos homens sensatos. Corresponde-se com artistas e escritores. Com desviantes e desalojados. Distribui-se entre os “sem nome”. Ele próprio, W.B., imitando Clarice, “só nas valises”. Ah, Clarice!

Tapeia um tempo de servidões, compadrios, gangues secretas – mas cultiva a sua gangue imberbe. Servidão voluntária? Entre os senhores, para defender-se, assume a postura de “afilhado”. Filho postiço, desviante, a quem (fingindo amor) se deve apenas tolerar. Mas que é preciso insistir que está ali. E assim vai: um anjo é imaterial, um anjo não sofre, pois não tem carne. Ser anjo é tornar-se invulnerável – e, com isso, arrancar dos sádicos o prazer obsceno. Ser anjo é estar sem estar. É escapar, mesmo quando sofre.

5- O pajem

Cuidar-se para não se ferir no espelho. Que espelho! Torto, rachado, embaçado. Um Narciso que mal consegue se ver! Ainda assim, diante da penteadeira, observar-se para dizer: “Sou”. Conservar, a duras penas, uma imagem de que possa depois doar. Ver-se para escapar. Gosta de se postar na posição de conselheiro, confidente, benfeitor. Inspetor? Para inspecionar o mundo, Wilson o encara, o desafia, o acaricia. Para embelezá-lo.

Torna-se um pajem da beleza. Só o pajem tem acesso aos ambientes secretos, às câmaras íntimas, aos corredores mais obscuros. Só ele (sem ver) consegue ver. Todos os demais são cegos. O pajem, não: ele testemunha. E goza com essa posição de zelador. O pajem promove uma passagem entre o público – as ruas, as praças, os bares, as termas, as livrarias – e o íntimo. Está “entre”. O pajem é nobre. O pajem acompanha os príncipes.

Só ele fecha a porta – e se conserva dentro. Só ele revista os figurinos, examina (ama) os adereços, mira-se (estranha-se) nos espelhos – vê-se naqueles de quem cuida. Ao cuidar, desenha-se. Ao zelar, sela uma sorte. Ao pajear, inclui-se: habita entre os outros, “é” o outro. Funciona como um secretário privado (a escriba de Kafka?). Acolhe espíritos, forma-os, deforma-os. Molda-os. Wilson: um escultor. Formador, ou deformador? Confraria, ou prisão? Questões, que não lhe tiram o prazer de estar ali, de estar entre outros, de lhes lavar os pés se preciso for, e desses toques gozar.


6- O pensador

Wilson pensa por imagens. Para pensar, imagina. Pensa por histórias, anedotas, ilusões, fofocas, versões. Pensa por aproximação – pensa em ziguezague. Tem o prazer do discurso, mas não da retórica. Tem, no máximo, um prazer agudo de imitar a retórica, o que é sua dupla derrota. Macaqueá-la. Devolvê-la a seu lugar de origem: o circo.

Pensa transversalmente: aprecia o “ouvir falar”, o “diz-se que”, o “comenta-se”. É um comentarista: um desenhista, que traça as bordas do viver. Pensa com figuras: é um figurativo. Abre cortinas, distribui scripts, escala papéis, dirige seus atores, finge sem parar e assim, fingindo, pensa. Às vezes, entrega-se às meditações, às deduções, às “conclusões apressadas” – delícia do risco! Seja como for: desenha.

Pensa ao telefone – seus telefonemas atravessam as madrugadas. Pensa por cartas, por e-mails, por piadas. Pensa em seus livros. Mas nada se compara ao velho telefone, bicho que ele monta durante as noites (como seu Tio Roseno a cavalo) para fazer longas travessias. Não aprecia sistemas, regras, bulas, mapas. Se cultiva conceitos, é para deturpá-los, revirá-los, distorcê-los. E depois, como uma lavadeira que dependura suas peças em um varal, expô-los ao assombramento público.

Pensa sem ordem (caoticamente). Pensa aos saltos (dança folclórica). Tem seu folclore pessoal, seus personagens, seus bichos (zoofilia, bestiários, cães desdentados) e, mexendo as peças no tabuleiro da razão, pensa “sem raciocínio”, mas “por demonstração”. Encena, demonstra, rege: é um maestro com sua cabeleira de hippie antigo, sua boina de lã, seus uivos cheios de risadas. Pensa sem ordem: gagueja. Pensa sem saber que pensa: acredita que fabula, que só transmite impressões, que faz piadas tolas e caseiras, e que somos nós, seus leitores, que pensamos em seu lugar. Diminui-se: engrandece-se. É. Não se esqueçam disso: ele se chama Wilson Bueno.

É um ator de ideias: ideias que ele põe em cena, que ele faz andar, que empurra, arranja como pode, em busca não de um sentido, mas de um prazer. Em busca de prazeres: sempre plural. Que celebrem a existência. Que a fragmentem. Que a dissolvam na grande borra dos cosmos. Wilson: astrólogo. Ergue os olhos para o céu e lê. Está sempre a ler e a alargar.

7- O falador

Wilson domina a cena. Não há como deslocá-lo do centro. Só sua voz, forte, ecoa pela sala. Suas gargalhadas. Sua presença, que hipnotiza a plateia. Plateia? Talvez séquito. Séquito? A arte da amizade. Difícil arte, na qual Wilson, muitas vezes, cheio de fome, tropeça. Mas arte, sim. Ainda que difícil, às vezes doloroso, outras vezes fatal. Arte: que outro nome dar?

Ao ouvir as anedotas de Wilson, cheia de ênfases, digressões, contornos, ou o seguimos (somos seus adeptos, mesmo com desgosto ou raiva), ou desistimos. Wilson exige a adesão. O falador exige suas orelhas. Quantas vezes o ensurdecer! Wilson fala e ninguém pode ser indiferente. A indiferença o agride: ele recua. Wilson usa a fala como uma rede, em que prende os que o cercam. Peixes. Peixinhos. Mas, se abrimos a boca: tubarões.

Ouve sim, mas reage, esmurra (com palavras), debocha, goza. Ergue-se, anda pela sala, imita. É um grande imitador, arte de apropriar-se das palavras do outro. Imita os inimigos, mas também os amigos. Não discrimina: eis algo de que Wilson é incapaz. Não dispensa a palavra: é seu escudo. É sua fantasia. Ele a veste (às palavras), adota-as como mantos que o protegem do mundo. O falador é escutador: escutar é uma maneira de arquitetar novas falas, de engatilhar comentários, de desviar o fluxo da palavra, e dela se apossar novamente. Dá cortes inesperados. Saltos. Interrupções. Pontuações: Wilson escuta para pontuar, para contornar, para delimitar. Ou para transformar as afirmações em novas perguntas: uma interrogação, uma exclamação, reticências.

Pode-se cortá-lo: isso o entusiasma. Pode-se contestá-lo: isso, ainda que o enraiveça, o enche de novas energias. Isso o empurra. Pode-se dar-lhe as costas, mas, com o recurso nobre do deboche, ele prende a alma do fujão. Pode-se tudo, mas com Wilson o tudo nunca é suficiente.

8- O desequilibrista

Está sempre pronto para revirar. Para reverter. As pernas para o ar: o que há sob as saias de seu interlocutor? Por que diz o que diz? Por que digo o que digo? Por que escrevo o que escrevo? – me perguntaria Wilson. Mas nunca: “onde você quer chegar com isso?” Nunca a censura. Nunca o não, sempre o sim, mesmo que na raiva ou no desgosto.

Onde existe um homem sereno e seguro, ali surge Wilson para lhe dar uma rasteira. Onde se escreve de um jeito – onde vigora um estilo – Wilson “des-estila”. Destila o que pode do fruto desgastado, arranca o que pode (arranha) para, com seu próprio sangue, infeccioná-lo. Veneno do veneno, cura homeopática. Mas não desequilibra na esperança de instaurar um novo equilíbrio. Faz isso só para desatravancar, para abrir caminho, para afastar da estrada os obstáculos do bem pensar.

Não: Ele desequilibra para, ainda e sempre, permanecer fora do eixo. Wilson desequilibrado? Grande tolice dos falsos nobres. Pois a nobreza verdadeira está ali: naquele sangue que fervilha. Naquele sangue mutante, indigno de confiança, infiel, mas potente. Sangue-desafio. Sangue-veneno. Não o sangue bruto e burro das facas, o sangue covarde dos criminosos, mas o sangue fértil da coragem. E ele ainda se dizia medroso! E ele ainda achava que – mas “achar que” de nada serve. “Achar que” é uma capa. Wilson não “achava que”, Wilson afirmava, mesmo quando não tinha certeza. Não às correntes, aos tiques nervosos, aos impulsos irresistíveis. Não e não. Wilson sempre afirmou a diferença. Morreu – tragicamente, brutalmente, injustamente – reafirmando-a. Em vez das páginas literárias, a crônica policial. Wilson sempre esteve onde não devia estar. Sempre a surpresa. Sempre o golpe. De que mais é feita a literatura?

Wilson: Aquele que se basta. Sem beber uma só gota, embriaga-se. Embriagado de si, ele nos desafia. Ainda hoje. Isso gruda. Isso fica. Wilson ficou.

9- O transformista

Onde está Wilson? Quem é (quem foi) Wilson? Que nome dar a esse nome? Na hora da raiva, chamavam-no de Malo. Não Wilson Bueno, mas Wilson Malo. Foi sempre assim: um disparador de sentimentos radicais. Nunca o meio tom. Nunca a boa educação. Nunca a contemporização, os bons modos, o comedimento. E exigia isso de nós. E ainda hoje exige, de nós, seus leitores. Ninguém lê Wilson impunemente.

Onde está Wilson? Digamos: “Aqui”. Pois está “lá”. Vai nessa direção? Naquela. Sempre grávido de si, sempre à espera daquele outro que de dentro de si sairá para, uma vez mais, ser ele mesmo. Um ventríloquo: sempre outro (um boneco?) em seu lugar, embora sempre ele mesmo. Ora assim, ora assado? Não: Assim e assado. Muitas vezes fantasiou-se de si. Assim, protegido pelo olhar alheio (pelo semblante do Wilson que os outros viam), enfim relaxava um pouco. Maquiava-se – de si. Vestia-se – de si. Sempre muitos: máscaras sobre máscaras. Muitos, infinitos, heterônimos, embora lhes bastasse um nome: Wilson Bueno. Assim, abrigados sob o destino falso de um homem só. Só os tolos acreditavam.

É muitos: teatro. Abre o segredo do existir. Desvenda-o: Máscaras. Indiferente aos documentos, às certezas, às fixações, Wilson flutua. Vivo, morto, já não importa: os livros batem asas em seu lugar. Preferiu sempre a sombra, para aproveitar melhor a delícia de ser. Wilson, o esquivo. Wilson, o ventríloquo. Que fala? Que coisa insiste em falar? De onde essa voz? Em nome de quem (apesar de assinar “Wilson Bueno”) fala Wilson Bueno? Força da ficção: inventar um Autor. Vantagem da ficção: um homem morre, um Autor não morre.

10- A obra

O computador é sua penteadeira. Diante dela, examinando-se com a elegância dos lordes, ele se desdobra. Ali gera a si mesmo. Diante da penteadeira, não só escreve livros, mas se escreve. No fim das contas, só um nome: Wilson. Gostava de dizer: “Will son”. Filho da Vontade. Filho do Desejo. O homem morre, o desejo não. Leia-se o que nos deixou. Wilson continua.


José Castello é jornalista e escritor, colunista do suplemento Prosa & Verso, de O Globo, autor de Vinicius de Moraes: O poeta da paixão (Companhia das Letras, 1993), Inventário das sombras (Record, 1999) e A literatura na poltrona (Record, 2007), entre outros. Vive em Curitiba.