Ensaio | Márcia Ivana de Lima e Silva

O poder da restrição

No livro Tempo passado, a ensaísta e escritora argentina Beatriz Sarlo reflete sobre o embate entre História e memória. Segundo ela, as duas categorias utilizam o passado de “modo concorrente”. A professora Márcia Ivana de Lima e Silva fala sobre a opção pelo narrador em primeira pessoa no romance contemporâneo

Fotos Walter Craveiro / Flip
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No livro Tempo passado, a ensaísta e escritora argentina Beatriz Sarlo reflete sobre o embate entre História e memória. Segundo ela, as duas categorias utilizam o passado de “modo concorrente”.


Senhores, um romance é um espelho que é levado por uma grande estrada. Umas vezes ele reflete para os nossos olhos o azul dos céus, e outras a lama da estrada. E ao homem que carrega o espelho nas costas vós acusareis de imoral! O espelho reflete a lama e vós acusais o espelho! Acusai antes a estrada em que está o lodaçal, e mais ainda o inspetor das estradas que deixa a água estagnar-se e formar-se o charco. 
Stendhal. O vermelho e o negro

Em Tempo passado, Beatriz Sarlo debate a postura epistemológica da História e da memória, dizendo que as duas categorias utilizam o passado de modo concorrente. Enquanto a memória não confia numa matriz que não privilegie a sua rememoração, subjetividade e narrativa, a História não consegue acreditar numa matriz que não se balize nos pressupostos do método crítico historiográfico, que não contextualize o acontecimento na espessura da duração, não trabalhe o distanciamento e não busque dar o mesmo tipo ou índice de inteligibilidade ao ocorrido: “Nem sempre a História consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade).”

Para Beatriz Sarlo, a função do pesquisador no procedimento de uma análise crítica é a de identificar falhas, ausências, verdades particulares e falseamentos, selecionar e hierarquizar, colocando todos esses elementos em perspectiva histórica. Diante de mitos e de falhas do discurso, deve-se saber aproveitar: identificar as causas desse discurso, dessa mitificação, bem como o significado da retórica usada. 

Lacunas e falseamentos podem ser explicados, entre outras razões, pela vontade consciente em camuflar algo dolorido e pela involuntariedade da memória, conforme Marcel Proust já comentara. Para Proust, por ser involuntária, a memória é desorganizada, descontínua e fragmentária, levando a um discurso também desorganizado, também descontínuo, também fragmentário. Tal aspecto é salientado por Sarlo, que acrescenta que o passado retorna ainda que não se queira, e, ao mesmo tempo, mesmo que se queira convocá-lo, nem sempre se obtém sucesso, o que nos aproxima da “memória involuntária” de Proust. 

Enquanto para a História a atenção à subjetividade, com o relativo apaziguamento da parcialidade, se apresenta como dilema central, especialmente para a História do tempo presente, para a literatura a opção subjetiva está longe de ser um problema, encaminhando- se muito mais como marca narrativa, mesmo que revestida de característica de depoimento ou de (auto)biografia. 

Beatriz Sarlo, referindo-se ao discurso crítico, complementa, salientando que “o tempo próprio da lembrança é o presente: isto é, o único tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual a lembrança se apodera, tornando- -o próprio”. É no presente que se têm as lembranças que são colocadas em narrativa, e a narrativa também pertence ao presente. E a literatura tem mimetizado esta ação magistralmente. 

Proliferação da primeira pessoa 

As minúcias que problematizam as noções de referência, de memória e de identidade estão relacionadas com o que Beatriz Sarlo identifica como uma “guinada subjetiva”: um rearranjo ideológico e conceitual que restabelece a razão do sujeito como prerrogativa dos estudos culturais e sociológicos. Para ela, o crescente apelo à memória está atrelado a uma “tendência acadêmica e do mercado de bens simbólicos que se propõem a reconstituir a textura da vida e a verdade abrigadas na rememoração da experiência, a revalorização da primeira pessoa como ponto de vista, a reivindicação de uma dimensão subjetiva.” 

Daí que proliferem, atualmente, narrativas em primeira pessoa e romances históricos e autobiográficos: a valorização do sujeito implica também um apreço por sua história — por sua memória, por seu passado. Assim, Sarlo coloca a questão (importantíssima para os historiadores): como é possível atestar a veracidade de um relato pessoal, de um testemunho, se sua legitimidade se encontra na esfera pública, ou seja, na representatividade que o narrador ganhou em função de sua história como vítima — em sua análise, a autora aborda, sobretudo, os relatos de sobreviventes dos regimes totalitários —, mas se ampara em um terreno tão frágil como a memória? 

Conforme diz Sarlo a respeito dessa proliferação de relatos em primeira pessoa como um depositório privilegiado de memórias, que não seriam acessíveis se não fossem os relatos testemunhais: “Já não é possível prescindir de seu registro, mas também não se pode deixar de problematizá-lo. A própria ideia de verdade é um problema.” 

Para a historiadora, ao mesmo tempo em que temos a impressão de que há um constante apreço pelo instante, há, por outro lado, uma tendência à rememoração, à museificação. Mesmo a “história de massas” (e, junto com ela, os romances históricos), simplificada para se tornar produto consumível, tem sua razão de ser: ela “impõe unidade sobre as descontinuidades, oferecendo uma ‘linha do tempo’ consolidada em seus nós e desenlaces”. Ou seja, nos reportamos ao passado, recorremos a ele para tornar mais coerente o nosso próprio tempo, tão fraturado e carente de sentido: “Esses modos da história respondem à insegurança perturbadora causada pelo passado na ausência de um princípio explicativo forte e com capacidade inclusiva.” Beatriz Sarlo também diz que o passado está sempre por perto, surgindo quando menos se espera “como a nuvem insidiosa que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar.” Diz ela ainda que “não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele é convocado por um simples ato de vontade. O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente”.

Exemplos brasileiros 

É a partir daqui que me reporto à literatura brasileira contemporânea, pois a “guinada subjetiva” também é percebida no romance atual, principalmente pela predominância de narrativas em primeira pessoa. 

Gostaria de citar alguns exemplos, entre os quais o romance Minha mãe se matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Ferreira, do qual destaco um trecho: “A vida é ruim; eu sei. Mas ainda não vou cortar a teia da própria vida feito ela minha mãe: o vocábulo é minha âncora; aqui desta mesa-mirante observo o anoitecer dos outros para esquecer- me do próprio crepúsculo.” 

Também é importante apresentar um fragmento do romance A passagem tensa dos corpos, de Carlos de Britto e Mello: “Embora também os odeie, semelhantes demais a mim narrar é minha prova de amor aos mortos. A narrativa confere-lhes breve e último fulgor enquanto desaparecem.” 

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O autor Evandro Affonso Ferreira utiliza-se da narrativa em primeira pessoa no romance Minha mãe se matou sem dizer adeus.

É relevante destacar algumas linhas de Os espiões, de Luis Fernando Verissimo: “Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer. Mas só bebo nos fins de semana. De segunda a sexta trabalho numa editora, onde uma das minhas funções é examinar os originais que chegam pelo correio, entram pelas janelas, caem do teto, brotam do chão ou são atirados na minha mesa pelo Marcito, dono da editora.” 

Dois aspectos me interessam em especial: 

Em primeiro lugar, do ato particular destes narradores de recuperar lembranças, aparece a memória social, que, para Walter Benjamin, é o meio no qual ocorre a vivência: “A língua tem indicativo inequivocamente que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava.” 

A experiência existe na construção discursiva, no ato de escavar a memória. 

Daí decorre o segundo aspecto: 

Esses narradores, em maior ou menor grau, fazem questão de mostrar que constroem um texto, que estão empenhados numa obra que é fruto de seu esforço de rememoração, chegando, por vezes, a mostrar “os andaimes” da obra, a revelar detalhes de seu processo criativo. ´

Quando os teóricos da literatura apontam as diferenças entre os narradores em primeira e em terceira pessoa gramatical, ressaltam a liberdade de focalização deste último em oposição à restrição daquele. Como não tem o poder da onisciência, o narrador eu-protagonista/eu-testemunha (cf. Norman Friedman) se atém aos fatos a partir de sua única e exclusiva percepção. Como não tem acesso ao interior das demais personagens, narra e/ou descreve situações e sentimentos, ligado à sua própria percepção, sem nunca ter “certeza” se chegou perto daquilo que foi pensado ou sentido (vide Memórias póstumas de Brás Cubas). 

É justamente aí, me parece, que está a chave para entender a predominância da primeira pessoa narrativa no romance contemporâneo brasileiro: a restrição. 

A opção pelo eu-protagonista é a opção pelo “poder restritivo” deste modo de narrar. Ao construírem romances em primeira pessoa, estes escritores mandam um recado: esta é a minha forma de narrar, meu modo de narrar; é assim que eu percebo o mundo; estas são minhas lembranças. Se o leitor conseguir se encaixar, tanto melhor. Se não, procure outro romance. 

Tal restrição me leva a pensar numa outra característica do mundo contemporâneo, igualmente apontada por Sarlo: a fragmentação, muito bem teorizada por Fredric Jameson.

Em nosso mundo atual, não há lugar para o épico, para a representação aí implicada, qual seja, a totalização. Estamos num mundo anti-hegeliano, no qual o trinômio tese/antítese/síntese não tem lugar (eu diria até que não faz sentido). Para cada tese, não há uma única antítese correspondente, tampouco este binômio nos leva à construção de uma síntese. Parece-me que não há síntese possível. Logo não há totalização, não há épico. 

A opção pela primeira pessoa é a marca mais anti-épica que a literatura pode revelar. É a opção pelo fragmento, pela unidade (não pela identidade), (eu arriscaria) pela solidão. A “guinada subjetiva”, detectada por Beatriz Sarlo para o procedimento historiográfico, se aplica ao romance contemporâneo brasileiro naquilo que ela aponta como “a reivindicação de uma dimensão subjetiva”.

A opção pela restrição da primeira pessoa narrativa pressupõe assumir a subjetividade do Eu no próprio ato de narrar; é a marca narcísica no ato da narração, que se contenta com a própria imagem, refletindo a realidade espetacularmente. 

Para Christopher Lasch, o que diferencia a arte contemporânea da arte do passado, “é a tentativa de restaurar a ilusão de unidade sem nenhum reconhecimento de uma experiência intermediária de separação. [...] Ela vê o mundo circundante como uma extensão do eu” (LASCH, 1990, p.150). Ou seja, há uma relação direta entre o eu e o mundo, sem dilemas de representação. Esta é a representação possível. A opção pela restrição da primeira pessoa narrativa pressupõe assumir que existe um “mínimo eu”, como define o próprio Lasch, o qual clama por se expressar para marcar sua presença. Um eu que se propõe a reconstituir sua vida, esperando que tal relato encontre no outro sua dimensão simbólica e sua capacidade de representação.

Márcia Ivana de Lima e Silva é professora do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vive em Porto Alegre (RS).