Ensaio | Literatura afro-brasileira, configurações

O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Eduardo de Assis Duarte analisa a produção literária das autoras e dos autores negros no Brasil, dos mais antigos aos contemporâneos


Na segunda metade do século XX, e mais fortemente a partir da década de 1970, a literatura brasileira exibe um quadro de progressivo esgotamento e superação do projeto modernista, em especial dos ímpetos de negação do passado e de celebração de uma brasilidade fundada na mestiçagem e representada a partir de uma visão distanciada do outro. Mais do que isto, salta aos olhos o vazio marcado pela ausência de um projeto unificador, que reúna as diferentes formas de expressão em torno, por exemplo, da afirmação de um espírito nacional uno no seio de uma cultura multifacetada.

Embora persistam em grande medida os valores estéticos consagrados no Ocidente e canonizados no “Alto Modernismo”, de que são exemplos Guimarães Rosa e Clarice Lispector; ou o que Flora Sussekind classifica como “escrita do eu” — a marcar a poesia dos remanescentes da “geração mimeógrafo”; ou, ainda, textos que buscam “narrar a nação”, como o Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro, é patente a inexistência do clima de movimento e, mesmo, de geração, que marcou a recepção entre nós dos caminhos apontados pelas vanguardas históricas do século XX.

Resulta daí o quadro em que sobressaem a diversidade de projetos e a busca de afirmação de parcelas minoritárias perante o poder cultural. Cabe então ressaltar iniciativas oriundas de segmentos marginalizados, em que o sentimento de comunidade se sobrepõe ao de nacionalidade. Nesse contexto, ganha corpo a produção literária dos afrodescendentes.

A partir da década de 1970, escritores negros se organizam em coletivos, a exemplo dos grupos GENS, na Bahia, Negrícia, no Rio de Janeiro, Palmares, em Porto Alegre e Quilombhoje, em São Paulo. Buscam a construção de uma literatura empenhada no combate ao racismo e na afirmação dos valores culturais desse segmento historicamente excluído da cidadania. Em 1978, tem início a série Cadernos Negros, com a publicação anual (e até hoje ininterrupta) de um volume coletivo, ora de ficção, ora de poesia. E surgem nomes como os de Cuti (Luiz Silva) e Conceição Evaristo, em meio a dezenas de outros, com uma produção vigorosa que vem se juntar a trabalhos como os de Lino Guedes, Carlos de Assumpção, Solano Trindade, Abdias Nascimento, Oswaldo de Camargo, Joel Rufino dos Santos, Nei Lopes, Muniz Sodré e tantos mais.

Tais autores têm como referência a herança da literatura da diáspora negra, cujo início, enquanto movimento, se dá com a Harlem Renaissanse estadunidense, na década de 1920, para chegar ao Negrismo e ao Indigenismo dos países caribenhos e à França da Négritude, na década seguinte. Este legado passa a “enegrecer” a escritura de inúmeros remanescentes da escravidão em diversos países, inclusive no Brasil, com o início das atividades do TEN — Teatro Experimental do Negro, em 1944. A estes, soma-se o repertório de inúmeros precursores que, desde o século XVIII, colocaram em letra impressa seus versos e narrativas, de modo a inscrever o ponto de vista interno ao existir negro e a suas formas de expressão. Emerge então a memória marcada por séculos de desumanização e rebaixamento a mera força de trabalho, tudo isto respaldado por uma ampla cadeia discursiva que abarcava tanto o discurso filosófico (Hegel) quanto o científico (Gobineau, Taine, entre outros), e terminava por naturalizar a inferioridade e a exclusão.

Reprodução
Machado

A relação da obra de Machado de Assis com o tema racial é controversa. Mas o pensador Octávio Ianni aponta-o, juntamente com Cruz e Sousa e Lima Barreto, como “fundador da literatura negra” no Brasil.

Percussores e Machado de Assis

Dentre os precursores, dois exemplos brasileiros surpreendem: a maranhense Maria Firmina dos Reis e o baiano radicado em São Paulo Luiz Gama. Firmina publica, em 1859, o romance Úrsula, primeira narrativa abolicionista de nossas letras, em que a África surge como espaço de civilização e o tráfico é inscrito como “barbárie” de origem branca e ocidental, a partir mesmo da descrição detalhada do porão onde era amontoada a “mercadoria humana”. Já Luiz Gama traz a público, também em 1859, suas Primeiras trovas burlescas de Getulino, em que não apenas se apresenta como “Orfeu de carapinha” e se refere respeitosamente à mulher negra, mas também se ocupa em satirizar de modo impiedoso as elites escravocratas de seu tempo. Já prevendo para seus escritos o lugar marginal ocupado mais tarde por outros afrodescendentes, Gama afirma que seus textos se situam nas “abas do Parnaso.”    

   Evandro Teixeira
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Todavia, nem todos os autores negros do passado explicitam o ponto de vista afro-identificado, fato que remete ao contexto e ao público leitor de outras épocas, sobretudo do século XIX e de pelo menos metade do século XX. O próprio Machado de Assis se considerava um “caramujo” a dissimular sua negrícia perante o leitor branco de seu tempo. É um capoeirista da linguagem, como já afirmou Luiz Costa Lima. Por trás da aparente superficialidade de muitos de seus contos e romances, como Helena, está a crítica ao discurso senhorial e à branquitude que busca naturalizar esse discurso como verdadeiro. Machado é um ancestral que deixou inúmeras lições. Tem razão Octávio Ianni quando, no ensaio “Literatura e consciência” (1988), aponta-o, juntamente com Cruz e Sousa e Lima Barreto, como “fundador da literatura negra” no Brasil, sendo, portanto, “clássico duas vezes”: da literatura brasileira e da literatura negra. Ousaria dizer que o considero três vezes clássico, pois o é também da literatura ocidental e, neste ponto, concordo com Harold Bloom.

Autor de uma obra vasta, Joel Rufino dos Santos ganhou o Prêmio Jabuti em duas oportunidades.


O autor de Dom Casmurro é precursor da literatura afro-brasileira por diversas razões, conforme procurei demonstrar em Machado de Assis afrodescendente (2007). Ressalto apenas duas, a segunda decorrente da primeira: o ponto de vista afro-identificado, não branco e não racista, apesar de toda a discrição e compostura do “caramujo”; e o fato de matar o senhor de escravos em seus romances, criando um universo ficcional que é alegoria do fim da escravidão e da decadência da classe que dela se beneficiou ao longo de nossa história.

Outro precursor é José do Nascimento Moraes. Em 1915, em pleno São Luiz do Maranhão dominado pelas oligarquias herdeiras do escravismo, ele publica o romance Vencidos e degenerados. O livro se inicia às 8 da manhã do dia 13 de maio de 1888, algo raro na ficção brasileira. Além de toda a agitação ali ocorrida, traz, quase como crônica histórica, as reações provocadas pela nova situação na subjetividade e no comportamento de antigos senhores e dos agora ex-escravos. E o leitor se depara com cenas de violência até então inéditas: negros que devolvem no rosto dos antigos senhores as bofetadas que sofriam diariamente; outros que apedrejam suas mansões; outros que deixam o jantar queimando no fogão... E há brancos revoltados que se articulam para dar o troco, ou que, em desespero, se descontrolam. Nascimento Moraes traça um panorama realista do regime servil e de sua continuidade sob novas formas de exploração, respaldadas pelo racismo, tal como previsto por Machado de Assis. E, muito antes de Gilberto Freyre, desconstrói o 13 de maio enquanto happy end apaziguador e consagrador do mito da escravidão benigna.

Novos e novíssimas

A ficção mais recente reproduz estas linhas de força, em especial a recuperação crítica do passado, como em O carro do êxito (1972), A descoberta do frio (1979) ou Oboé (2014), de Oswaldo de Camargo; Zumbi (1980), Crônica de indomáveis delírios (1991) ou Bichos da terra tão pequenos (2010), de Joel Rufino dos Santos; Ponciá Vicêncio (2003), Becos da memória (2006), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) ou Olhos d’água (2015), de Conceição Evaristo; Vinte contos e uns trocados (2006), Mandingas da mulata velha na cidade nova (2009), Oiobomé (2010) ou Rio Negro, 50 (2015), de Nei Lopes; Santugri (1988) ou A lei do santo (2000), de Muniz Sodré; Cidade de Deus (1997) ou Desde que o samba é samba (2012), de Paulo Lins; além de Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, ganhador do Prêmio Casa de las Américas.

Em paralelo, persiste uma linhagem contundente sem se descuidar da leveza vinda do humor, a exemplo de Contos crespos (2009), de Cuti, ou Mulher mat(r)iz (2011), de Miriam Alves, ou Só as mulheres sangram (2011), de Lia Vieira. E não se pode esquecer a produção de jovens ficcionistas, como Cidinha da Silva, Allan da Rosa, Sacolinha, Lande Onawale, Fábio Mandingo ou Cristiane Sobral, todos com trabalhos de relevo, sobretudo no conto. E impõe-se mencionar ainda autores que optam por edições coletivas como Cadernos Negros, a exemplo de Márcio Barbosa e vários outros.

Já na poesia, pode-se destacar, de início, as coletâneas Obra reunida (2012), de Oliveira Silveira e A cor da palavra (2009), de Salgado Maranhão. Além dessas, Um homem tenta ser anjo (1959), 15 poemas negros (1961) e O estranho (1984), de Oswaldo de Camargo; A cor da pele (1980) e Texturaafro (1992), de Adão Ventura; Plano de voo (1984) e Todo o fogo da luta (1989), de Paulo Colina; Zeozório blues (2002) e As coisas arcas (2003), de Edimilson de Almeida Pereira; A cor da demanda (1997) e Tudo o que está solto (2010), de Éle Semog; Sanga, (2002), Negroesia (2007) e Kizomba de vento e nuvem (2013), de Cuti; Estrelas no dedo (1985), de Miriam Alves; Poemas de recordação e outros movimentos (2008), de Conceição Evaristo; e Não vou mais lavar os pratos (2010), de Cristiane Sobral, entre outros. São formulações poéticas que expressam de diversas formas a identidade do negro, mulher ou homem, revisitam a história, celebram os ancestrais e as divindades dos cultos afro, ou denunciam, às vezes de forma explicitamente militante, a discriminação contemporânea. Mas que tratam também de tópicos mais universais, situando-os em nova perspectiva, a exemplo do erotismo.

Os nomes e textos acima arrolados são apenas parte do conjunto presente na antologia Literatura e afrodescendência no Brasil (2011, 4 volumes), que traz um conjunto de cem escritoras e escritores, a maioria ausente da história de nossa literatura. Cada autor é contemplado com um artigo crítico contendo dados biobibliográficos, apresentação geral da obra, fontes de consulta, e ainda um conjunto de textos representativos. É um formato voltado para a divulgação e o estudo introdutório destes autores, resgatando muitos deles do esquecimento.

Noutra frente de atuação, nosso projeto mantém na internet o literafro — Portal da literatura afro-brasileira, considerável arquivo de livre acesso através do endereço www.letras.ufmg.br/literafro. Até o momento, o portal contém: dados biográficos de 120 autores; relação de aproximadamente 2.500 obras publicadas, entre livros e textos em antologias; indicação de mais de 1.000 fontes de consulta sobre os autores; conexão imediata com centenas de endereços digitais com informações sobre as obras relacionadas; mais de 200 artigos críticos sobre as obras elencadas no portal, acrescidos de ensaios teóricos e resenhas de obras recentes. E ainda centenas de textos, entre poemas, contos, crônicas e excertos de romances, disponibilizados gratuitamente. Além disso, o projeto publica a newsletter literafro novidades, de periodicidade bimensal, com informações e resenhas de lançamentos, divulgada por e-mail e facebook para leitores do país e do exterior.

Hoje, no meio acadêmico, a literatura afro-brasileira é um conceito em construção, isto é, em discussão. Quando acrescentado ao texto do escritor negro, o suplemento “afro” ganha densidade crítica a partir da existência de um ponto de vista específico a conduzir a abordagem da questão, seja na poesia ou na ficção. Tal perspectiva permite elaborar o tema de modo distinto daquele predominante na literatura canônica. Por outro lado, ao verificarmos o volume de textos acumulados todo este tempo, não há como duvidar da existência desta vertente de nossas letras, ao mesmo tempo dentro e fora da literatura brasileira, como preconiza Octávio Ianni no ensaio “Literatura e consciência”. Fruto de uma articulação contemporânea e pós-nacional, o veio afro constitui um suplemento — algo a mais que chega para abalar a inteireza do todo, da suposta unicidade antes existente.

Eduardo de Assis Duarte é professor da Faculdade de Letras da UFMG, organizador de Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo (2007), Literatura a afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011, 4 vol.), Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI (2014) e Literatura afro-brasileira: abordagens na sala de aula (2014). Vive em Belo Horizonte (MG).