Ensaio | Jobatê Medeiros

O Dylan fêmea, o Dylan trágico e o Dylan negro

Patti Smith, Leonard Cohen, Gil Scott-Heron: três artistas que contrabandearam música e literatura em doses letais para os leitores

Jotabê Medeiros

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Patti Smith, cantora influenciada pela poesia de Bob Dylan e da geração beatnik

Todo ano, no dia 2 de janeiro, na igreja de St. Mark’s, em Bowery, Nova York, a cantora Patti Smith sobe ao altar junto com outra centena de poetas e declama, canta, berra poemas. A plateia fica sentada no chão ou nos bancos da igrejinha, com almofadas e garrafas de vinho contrabandeadas da loja de conveniência lá fora. Isso acontece desde 1974. 

St. Mark’s Church é uma construção georgiana de 1660, de pedra e com balcões, vitrais cubistas e renascentistas, santuário artístico que já recebeu em seu altar os poetas William Carlos Williams e W.H. Auden, abrigou a primeira peça de Sam Shepard, deu tablado para coreografias de Martha Graham e Isadora Duncan. A frequência não é muito diferente da de um show de rock. Garotos despenteados de mochila nas costas, meninas de corte de cabelo new wave e óculos de aros muito pretos, gordinhos com colares indígenas, velhotes com toucas iguais àquela de Jack Nicholson em Um estranho no ninho.

Patti Smith é tão íntima daquele lugar que parece sempre saída de um vitral enquanto toca, acompanhada de Lenny Kaye, seu guitarrista desde os anos 1970. Patti e a literatura são carne e unha, nunca se mantiveram afastadas ou próximas o suficiente, são simplesmente a mesma coisa. Ela publicou livros de poemas com o mesmo empenho com que fez música, como o best-seller Witt.

Mas foi em 2010, com a publicação de Só garotos, que o mundo conheceu o fôlego de Patti Smith para a prosa. As memórias de sua relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, narradas com um rigoroso afeto pelos fatos menos glamourosos de uma vida cotidiana, e uma aparente dissecção afetiva, fizeram com que Patti fosse “aceita” pelos círculos literários. Isso culminou com a vitória no prestigioso National Book Award na categoria não-ficção, ainda em 2010.

Ali também surgem os fundamentos, digamos assim, filosóficos da literatura memorialística de Patti. Há uma frase em que ela, quase com alguma inveja, define Mapplethorpe assim: “Enquanto eu lia Genet, ele se tornava Genet”. Ou seja: Patti admitia dois tipos de artistas no mundo, os que tornam indistintas sua arte e sua vida e os que veem essas categorias separadamente. Ela mesma é um exemplar do primeiro time. “Eu absorvi Genet, como poeta, por causa da qualidade de sua imaginação e do meu amor pela língua. Robert entendia Genet com seu próprio corpo.”

Patti Smith largou a poesia sem abandoná-la, transmutando sua prosa elegante em outro trunfo intelectual e ético. Já o cantor e poeta canadense Leonard Cohen (1934-2016) nunca soube direito se estava do lado dos livros ou das canções. Era tudo a mesma coisa. Quando lançou seu primeiro disco, Songs of Leonard Cohen, em 1967, aos 33 anos, ele já tinha sido amigo de Jack Kerouac, vivido como um boêmio na ilha grega de Hydra, visitado Cuba durante a invasão da baía dos Porcos e publicado dois romances e quatro livros de poesia festejados pela crítica.

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Leonard Cohen estreou na literatura em 1964, com a coletânea de poemas Flowers for Hitler. Quando decidiu entrar na música, já era um autor de prestígio.

O desembarque de Cohen na música foi anunciado como a chegada de um rival à altura para Bob Dylan. Havia até pontos de contato: ambos eram judeus, tinham experimentado as extravagâncias do seu tempo, demonstravam apreço por nomes e mitos da Bíblia, combatiam o bom combate dos homens justos. Mas não tinham muito a ver um com o outro, na verdade.

A diferença entre Leonard Cohen e Dylan é que o primeiro deu asas à própria fragilidade. Usou as canções não como um fórum de debates, mas como um espaço de sua autoridade de decaído, tornando-a um território sagrado. Ao receber o prêmio literário espanhol Príncipe de Astúrias, ele contou como aprendeu a tocar violão flamenco tomando poucas aulas de um homem que conheceu por acaso num parque de Montreal. O homem lhe deu três aulas e, no terceiro dia, não apareceu. Cohen ligou para a casa dele: tinha se matado. Essa percepção do simbolismo dos fatos de que a música se compõe o marcou.

Cohen não se distinguiu apenas pela guturalidade, pela aparição tonitruante, pelo grave cerimonial, mas pela própria presença física de sua voz. Também sugeria compreender e imantar-se de toda a ternura do mundo, mesmo quando era cáustico e inquisidor. 

Dylan disse de Cohen que ele também trabalhava melodias celestiais. Às vezes, sob um manto de folk music, ele revigorava uma tradição centenária. “Acho que rebusco algo. Não gosto de chamar isso de ideias. Acho que ideias são aquilo que se quer difundir. Ideias tendem a ser o lado direito das coisas: ecologia, vegetarianismo ou antiguerra. Tudo isso são ideias maravilhosas, mas eu gosto de trabalhar em uma canção até que esses slogans, tão maravilhosos quanto as ideias que querem promover, se dissolvam nas convicções profundas do coração. Nunca pretendi escrever uma canção didática. É só minha experiência. Tudo que ponho na canção é minha própria experiência”, disse.

Na fronteira entre a música, a poesia e a política, poucos artistas foram tão primorosos quanto Gil Scott-Heron (1949-2011) e seu canto declamatório, suas spoken words. Foi apelidado, curiosamente, de “Dylan negro”. Durante a queda do ditador egípcio Hosni Mubarak, no auge da Primavera Árabe, a música que tocava na Praça Tahrir era “The revolution will not be televised”, de Heron. Chuck D, do grupo de rap Public Enemy, disse que Scott-Heron representou uma grande “manifestação da palavra moderna”.

“Se há alguma iniciativa individual pela qual eu sou responsável é por ter inserido alguma música nos meus poemas, com progressões completas e ‘ganchos’ repetidos, o que os tornou mais canções do que declamações com percussão”, escreveu o poeta em uma de suas coleções de poemas, Now and then.

Scott-Heron antecipou o rap em uma década, mas tinha poderosos demônios pessoais. Eles o impulsionaram para uma vida convulsiva: foi preso uma dezena de vezes, viciou-se em crack, foi internado compulsoriamente e diagnosticado com HIV. Encastelado no seu apartamento no Harlem, produziu a canção que foi um retrato de uma época, “The revolution will not be televised”, dos anos 1970, um hino revolucionário.

Essa disposição de contaminar a palavra com um vírus de cultura orgânica, viva (e ao mesmo tempo histórica, embebida no blues e nos lamentos de trabalho do Sul escravista) tornou a obra de Scott-Heron um farol multigeracional. Muitos artistas negros atribuem influência de sua música, gente como Jay Z, Kanye West, Lupe Fiasco, entre outros. Sua palavra fez um eco vigorosíssimo nos tímpanos do século XX.

“Ele foi um leitor, um pensador e um observador social, e sua mente produziu ideias, não oportunidades para o comércio. Ele amou estar no palco e ser o centro das atenções, mas por outro lado preferia estar sozinho. Ele era um personagem muito espinhoso para se tornar uma persona de sucesso calculado”, escreveu Alec Wilkinson sobre Scott-Heron na The New Yorker .

Scott-Heron podia sustentar em suas performances exortações como as de um pregador que praguejava. Mas aí você encontrava também quase acalantos (“I’ll take care of you”), ou um tipo de tap dancing (“New York is killing me"), ou um poeta cantando com voz de esmoleu de metrô (“Running”), ou um televangelista possuído (“The crutch”). Era o poeta que apontava o dedo para o que estava errado, e que ajudou a América negra a encontrar sua voz.


Rebeldia tropical

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Omar Godoy

Quando incorporaram o rock and roll ao seu repertório de referências, os tropicalistas não trouxeram apenas a guitarra elétrica e a atitude contracultural para a música popular brasileira. Com seus textos sofisticados (e muitas vezes inspirados no estilo de Bob Dylan), Caetano, Gil e companhia também conferiram profundidade poética ao “iê-iê-iê” já praticado por aqui desde a década de 1950. Não à toa, todos os grandes nomes da Jovem Guarda tentaram gravar álbuns mais ambiciosos após o advento do Tropicalismo, abandonando a ingenuidade e a despretensão iniciais.

Mas a tradição brasileira de rock e poesia ganhou corpo mesmo nos anos 1970, quando uma nova geração de compositores nordestinos despontou na cena. Ainda mais influenciados por Dylan do que os tropicalistas, figuras como Belchior, Alceu Valença, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Ednardo e Fagner invadiram o mercado com letras fortes e de cunho filosófico, que ainda hoje ecoam no imaginário nacional. Negando a MPB e correndo por fora, Raul Seixas (outro dylanmaníaco de carteirinha) também deixou a sua marca — com ou sem a ajuda de Paulo Coelho.

Outros “poetas do rock” (ou influenciados por ele) surgiram nos anos seguintes, principalmente na década de 1980. Com o estouro comercial do gênero, o Brasil inteiro conheceu Cazuza (foto), Renato Russo, Arnaldo Antunes, Lobão, Humberto Gessinger, Fausto Fawcett, etc. Isso sem contar os letristas de bandas menos populares, como Humberto Effe (Picassos Falsos), Cadão Volpato (Fellini), Alex Antunes ( Akira S & As Garotas que Erraram), Rubinho Troll (Sexo Explícito).

De lá para cá, nenhum nome digno de ser chamado de poeta apareceu no cenário. E, atualmente, nem o próprio rock and roll tem grande expressão cultural. Mas não deixa de ser interessante que, mesmo em baixa, o gênero ainda seja associado à qualidade das letras (em oposição ao texto supostamente mais simples do funk, do sertanejo e do pagode). Se o rock errou, como cantou Lobão, pelo menos deixou um legado.