Ensaio | Eduardo Salles O. Barra

Humanidades e leitura

O professor Eduardo Salles O. Barra, da Universidade Federal do Paraná, defende que o ensino da Filosofia e da Sociologia — reintegrado ao currículo das escolas do Paraná há 10 anos — pode fazer a ponte entre a educação humanista e a educação literária


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O filósofo norte-americano Arthur Danto, autor de O descredenciamento filosófico da arte.

Há cerca de uma década a escola brasileira passou por uma mudança bastante sui generis. Nada que envolvesse eloquentes promessas de medidas redentoras nem autoproclamadas revoluções pedagógicas de amplo alcance. A mudança em questão consistiu na simples inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio. Isso ocorreu em 2006 nas escolas do Paraná e foi estendida às escolas do restante do país dois anos mais tarde. 

É óbvio que a simples inclusão de duas disciplinas numa grade curricular — já excessivamente diversificada e saturada, segundo alguns especialistas — não pode representar qualquer mudança de vulto. Ocorre, entretanto, que a referida inclusão ampliou a presença das humanidades nos currículos escolares. Em vista disso, muitos encararam esse acontecimento como um retorno. A ampliação da presença das humanidades nos currículos escolares, sim, pode ser considerado um acontecimento extraordinário. Desde o início dos anos 1960, o espaço ocupados pelas humanidades nas escolas foi progressivamente reduzido. Primeiro, sumiu o Grego e, logo em seguida, o Latim e a Filosofia tiveram o mesmo destino. Chegamos ao mínimo de apenas restarem a História, a Geografia e o Português, como disciplinas obrigatórias dessa área. Os horários destinados às aulas dessas disciplinas foram, concomitantemente, reduzidos para dar lugar às demandas das disciplinas consideradas mais decisivas para a formação profissional ou para a aprovação nos vestibulares. 

Com o retorno da Filosofia e Sociologia, essa tendência parece que foi finalmente revertida. O Paraná foi o primeiro Estado brasileiro em que a inclusão da Filosofia e da Sociologia foi regulamentada por uma lei estadual (Lei 15.228/06 de 25/07/2006, de inicom amplo apoio do então Secretário de Estado da Educação, Maurício Requião. A medida foi uma conquista de professores e estudantes paranaenses de Filosofia, que tiveram atuação destacada na mobilização para que uma medida idêntica fosse adotada em todo o país. Essa mobilização — conhecida como movimento pelo retorno da Filosofia e da Sociologia ao ensino médio — teve início ainda nos anos 1970, sob a liderança da extinta Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (SEAF). Nas décadas seguintes, ela foi intensificada por um número crescente de eventos, atos públicos e publicações. A sua grande conquista ocorreu, finalmente, com a alteração da LDB de 1996 e a determinação de que fossem “incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio” (por meio da Lei Federal nº 11.684/08, de 02 de junho de 2008). 

Todavia, é importante encarar essa conquista mais como uma ação visando a melhoria da qualidade da educação escolar do que como uma ação em defesa dos interesses de qualquer segmento da comunidade escolar ou universitária. Nesse sentido, é indispensável observar o que diz a Lei Estadual 15.228/06 sobre ambas as disciplinas: deverão ter “por objetivo consolidar a base humanista da formação do educando”. É óbvio que se pode entender coisas muito diversas por “base humanista”. Pode-se entender, por exemplo, o sentimento de pertencimento à humanidade, o sentimento altruísta de solidariedade ou a mera filantropia. Mas também pode-se admitir que uma “base humanista” seja mais precisamente as condições para o pensamento livre e autônomo, a capacidade de pensar por si mesmo, que fora o objetivo das pedagogias inspiradas nas humanidades, desde os seus antecedentes na antiguidade e na Renascença.

Conhecimento e leitura 

Mas, em termos bastante concretos, como a ampliação da “base humanista” pode efetivamente contribuir para a melhoria da qualidade da educação escolar? Creio que o modo mais eficaz de responder a esse tipo de pergunta — cuja inspiração pragmática não deixa de ser um equívoco — é remetendo às estreitas relações entre educação humanista e educação literária, de tal modo a sustentar que não seria nenhum exagero também esperar que uma maior presença das humanidades nos currículos escolares resultasse adicionalmente numa maior presença dos livros e das leituras nas escolas. Pois senão, vejamos.

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O austríaco Ludwig Wittgenstein, um dos maiores pensadores do século XX.

É praticamente impossível estudar Sociologia sem referenciar-se em algum momento a um ou mais dos três grandes teóricos clássicos dessa área: Durkheim, Weber e Marx. Do mesmo modo, nada adiantaria querer ensinar Filosofia e omitir qualquer menção a filósofos como, por exemplo, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, Heidegger ou Wittgenstein. Hoje, nas salas de aula do ensino médio brasileiro, convive-se com esses pensadores e com suas ideias com a mesma frequência — e, eventualmente, com os mesmos temores estudantis — com que há muito se convive com as ideias de Newton, Lavoisier, Mendel, Darwin, Coulomb ou Linus Pauling. Mas com uma diferença muito importante: as ideias dos filósofos e dos sociólogos não estão incorporadas a modelos explicativos, a esquemas formais ou, menos ainda, às suas aplicações exemplares. Elas estão incorporadas a textos. Elas são intrinsecamente dependentes da linguagem discursiva. Filósofos e sociólogos valem, pois, não apenas pelo que pensaram mas também — e talvez sobretudo — pelo que escreveram e pelo modo como o fizeram. 

Esse fato, por si só, seria suficiente para uma renovação do ambiente intelectual na educação escolar. Todos estamos conscientes de que a leitura é uma experiência ainda rara no cotidiano dos nossos jovens e, por conseguinte, de nossas escolas. O fato de que aprender Filosofia e Sociologia exige uma intensa convivência com textos e leituras representa, no mínimo, um aliado de peso para reverter as insuficiências das nossas iniciativas de formação de leitores. Mas o aumento da frequência dos estudantes aos textos e às leituras seria apenas uma entre muitas outras razões pelas quais as novas humanidades escolares podem contribuir para a multiplicação das práticas de leitura na escola. 

No caso particular da Filosofia, a leitura não é um mero um instrumento pedagógico. A leitura ocupa um lugar central no exercício da própria atitude crítica que caracteriza a Filosofia — e isso, de uma forma ou de outra, pode ser também identificado em todas as humanidades. Nas esclarecedoras palavras de um eminente filósofo contemporâneo, Arthur Danto, “o conceito de verdade filosófica e a forma de expressão filosófica são internamente relacionados”, de tal modo que ao tentar “aplainar” as “formas aparentemente inevitáveis de se apresentar” uma determinada obra — por exemplo, A república, de PlaPlatão, ou as Meditações, de Descartes — é muito provável que se terá “perdido no processo algo central para esses modos de escrita”. E Danto conclui: isso sucede aos textos filosóficos “porque se tenciona que aconteça para o leitor algo que seja diferente de ser informado, ou um acréscimo a isso.” (O descredenciamento filosófico da arte, Autêntica Editora, 2015) Aquilo que anteriormente foi chamado de pensamento livre e autônomo pode muito adequadamente ser identificado ao que Danto se refere acima como algo distinto da mera informação ou como um acréscimo a ela. 

Três grandes clássicos: Durkheim, Weber e Marx.

Três grandes clássicos: Durkheim, Weber e Marx.

O sucesso insatisfatório das ações para formação de novos leitores deve-se, entre outros tantos fatores, à insistência nas desgastadas fórmulas de que a leitura é um hábito, que a leitura requer uma técnica, que a leitura conduz ao conhecimento, que a leitura é sempre um prazer, etc. Esse é o diagnóstico de Percival Brito, um destacado estudioso desse tema, cujos argumentos sustentam que as políticas inspiradas nessas fórmulas — que conjugam erros crassos com trivialidades banais — mais prejudicam do que contribuem para reverter o déficit de bons leitores que hoje constatamos. Nas suas palavras, “faz-se necessário fazer a crítica da máxima tão difundida de que a leitura conduz ao conhecimento e assumir que se trata exatamente do contrário: é o conhecimento que promove a leitura” (Inquietações e desacordos: a leitura além do óbvio. Mercado das Letras, 2012). O que as aulas de Filosofia e Sociologia podem, então, proporcionar aos nossos jovens em idade escolar são justamente as circunstâncias, a “base humanista”, para a sua inserção nessas práticas.

Humanidades escolares 

Mas, diante dos graves e recalcitrantes problemas enfrentados hoje pelas escolas não seria um luxo — quiçá uma forma de elitismo — querer oferecer aos nossos estudantes ideias e textos produzidos em épocas e contextos tão distintos dos nossos, a pretextos de restaurar o paraíso perdido das humanidades escolares? Como podemos querer — conforme advertiu um célebre professor de Filosofia da mais prestigiosa universidade brasileira — que nossos jovens leiam e compreendam Platão, Kant, Marx ou Weber se ainda não fomos capazes de lhes ensinar o suficiente de disciplinas mais elementares e propedêuticas, tais como o Português e a Matemática? Para responder a esse último tipo de contestação, basta retomar a inversão proposta por Brito da relação de determinação entre leitura e conhecimento: “Aprender a ler e escrever na escola deve ser muito mais que saber uma norma ou desenvolver o domínio de uma tecnologia para usá-la nas situações apropriadas; aprender a ler e escrever significa dispor do conhecimento elaborado e poder usar deste conhecimento para participar e intervir na sociedade”

Para responder ao argumento mais sutil acerca da relação entre humanidades e elitismo, é preciso, inicialmente, reconhecer a sua plausibilidade. De fato, a consolidação dessa nova “base humanista” que há uma década foi oficializada nas escolas do Paraná, entre os seus tantos desafios, precisa renovar as humanidades como projeto educacional. Não seria honesto romantizar o passado ofuscando o incontestável elitismo das aulas de Latim e Filosofia da escola secundária brasileira da primeira metade do século XX. Torna-se indispensável, pois, enfrentar o desafio de reinventar as humanidades escolares no Brasil. E, sendo assim, nenhuma direção parece ser mais promissora para alcançar esse objetivo do que se orientar pela formação do pensamento livre e autônomo, da capacidade de pensar por si mesmo. 

Há dez anos as escolas paranaenses enfrentam esse desafio. Os resultados talvez não sejam ainda suficientemente visíveis para que se possa fazer um diagnóstico do seu êxito. Mas, ao apostar numa sólida ampliação da base humanista por meio da Filosofia e da Sociologia, o Estado do Paraná deu um passo importante para o surgimento de novos vetores daquilo que é essencial para a construção de uma sociedade de mulheres e homens verdadeiramente livres e autônomos: uma escola comprometida em promover o pensamento “adequado à liberdade”


Eduardo Salles de O. Barra é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde também exerce atualmente a função de Diretor do Setor de Ciências Humanas. Foi também professor de Filosofia no extinto 2º Grau (hoje Ensino Médio), quando a disciplina estava retornando experimentalmente em algumas escolas. Gostava de ler e discutir com seus alunos O existencialismo é um humanismo, de Jean-Paul Sartre.

Este artigo é uma versão resumida do texto do mesmo título publicado nos anais da Virada Filosófica 2016, editado por Gleisson Schmidt, a ser publicado em breve.