Ensaio

Figuras do desejo e da morte


A partir de Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros, último título publicado em vida por Valêncio Xavier, a professora da Universidade Federal Fluminense Ângela Maria Dias faz uma análise dos procedimentos literários do autor que desde muito dialogou com imagens

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A estética de almanaque concebida pela obra de Valêncio Xavier, em sua intrigante bricolage de imagens e palavras, experimenta uma espécie de clímax, na última coletânea publicada pelo autor em vida, Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros, de 2006. Nele a inusitada combinação entre desenhos e ilustrações recolhidos em fontes diversas, acrescida de fotografias de variada autoria, para a criação de histórias curtas e surpreendentes, causa certa perplexidade no leitor, colhido pela rede intersemiótica de correlações entre os escritos minimalistas, de feitio e fonte bastante diversificados, e o aparato visual, capaz de incluir também, materiais ínfimos e cotidianos, desde recortes de jornal sensacionalistas, até embalagens e pornografia.

O formato alegórico do conjunto de relatos, em suas “combinações de visível e legível”, na medida em que “o visível tem sua leitura”, assim como “o legível tem seu teatro” (DELEUZE, 1991, p.187), convoca o leitor ao trabalho incerto da interpretação, dificultada pelo caráter risível e o non sense de determinadas passagens, urdidas entre sensacionalismo obsceno e alusividade melancólica.

O exibicionismo teatral do conjunto, concebido numa espécie de lógica da charada, encena a clivagem entre o sujeito do enunciado, cínico, perverso e frequentemente pornográfico, e a posição do sujeito da enunciação, cuja negatividade irônica pretende sugerir, em seu jogo infinito, certa desconexão entre os signos e linguagens combinados e o sentido pressentido. Nessa direção, como aponta Safatle (2008, p.31), a ironia não deixa de configurar uma forma de alegoria, no que consiste numa “dentre múltiplas maneiras de dizer algo e dar a entender outra coisa”.

Tudo nessa obra é sinuoso e invertido, a começar do seu próprio início que, na verdade, não é o que parece e se observarmos bem, ao contrário, situa-se na última pequena história da coletânea, ou, segundo a nomenclatura do autor, no seu último “livro”. “Coisas da noite escura” tem como abertura uma soturna foto de um descampado noturno pejado de crucifixos belamente decorados com flores ao centro, e colocados em primeiro plano. Na folha seguinte, o leitor depara-se com uma narrativa curta, em primeira pessoa, de apenas um longo parágrafo, presidido pela seguinte notação: “Aconteceu faz muito tempo mas eu ainda lembro bem” (XAVIER, 2006, p.135).

O narrador, autodenominado de Valêncio, então passa a contar a própria morte ocorrida no interior de uma igreja da cidade que visitava. O padre responsável pelo assassinato do autor-narrador- personagem chama-se Asmodeu e é descrito da seguinte maneira pelo narrador- defunto: “tinha o rosto cinzento e os olhos vermelhos, as unhas compridas e afinadas na ponta” (XAVIER, 2006, p.135). Asmodeu, mencionado no deutero- canônico The book of Tobit, em algumas lendas talmúdicas, e, igualmente pelos cristãos da Renascença, é considerado o pior dos demônios, remonta a uma língua iraniana do leste — a língua avéstica — , usada nas escrituras zoroastrianas, significando etimologicamente “o demônio da raiva”. É também conhecido como um dos sete príncipes do inferno que, respectivamente, representam cada um dos sete pecados capitais. Asmodeu é o demônio da luxúria, responsável por perverter os desejos das pessoas.

O narrador-defunto termina, então, a micronarrativa, constatando surpreso o seu próprio assassinato e a nova condição em que se encontra: “E me matou, eu Valêncio! Estou morto” (XAVIER, 2006, p.135). Ao constituir uma variante contemporânea do memorável Brás Cubas machadiano, Valêncio, ao encetar sua coletânea de histórias narradas post-mortem, assume, pelo uso do próprio nome, um procedimento autoficcional. E, nesse sentido, dedica-se a uma dramatização de si, dramatização que supõe a construção simultânea de si, tanto como autor, quanto como narrador e personagem. Ou seja, trata-se de uma encenação que busca, na prática performática desse autodesdobramento, exibir o sujeito como uma identidade em processo, reforçar o seu caráter transitivo e não essencialista, tanto na vida como na ficção (KLINGER, 2007, p.54, 55).

A afinidade entre autoficção e performance, no caso da obra de Xavier, se configura ainda com mais agudeza, na medida em que sua constituição alegórica, a conduz, todo o tempo, a contrapor imagens e textos, numa espiral parodística em que signos pré-existentes, na série literária ou na indústria cultural, jornal são conjugados intertextualmente a ilustrações de todo tipo, numa interlocução caprichosa entre ficção, notícia, documentos de diversa fatura, fotografias estetizadas ou jornalísticas, e os mais inusitados restos do consumo.

Assim o narrador-autor-personagem constituído na última história é afinal um colecionador bricoleur que se apropria das mais diferentes relíquias, para combiná-las numa semio-estética, disposta num livro-objeto de acabamento primoroso e sofisticado.

A obsessão da morte, da violência sexual e da pornografia constitui a tônica das histórias, bem como, por outro lado, o aproveitamento de fotografias, cuja fonte, em muitos casos, não é atestada. Os episódios, por vezes, contrapõem o caráter burlesco e sem sentido a notações sobre sua própria veracidade, indicadas no título, em franca dissonância com o tom descuidado e informal do narrador, entre as gírias do texto e o componente farsesco das ilustrações. É o caso, por exemplo, de “O barqueiro da morte”, cujo subtítulo “Uma história verídica acontecida em Curitiba capital do Paraná”, apresenta um enredo frouxo de “causo” esdrúxulo e final risível, sobre um velho bêbado e sua mulher agonizante à deriva, numa enchente.

Entretanto, a dominância da fotografia, jornalística ou estetizada, tem uma importância significativa, na constituição da morbidez meio cômica da coletânea. No texto que dá nome ao volume (“Rremembranças...”) e no “Macao”, os mais longos e importantes do livro, o fetichismo da imagem fotográfica ganha centralidade e é utilizado de diferentes maneiras. Com efeito, por sua característica de sintoma de uma presença, combinada à ausência física do referente, a fotografia, como o reconhece Dubois (1993, p.65), não pode ser pensada “fora de sua inscrição referencial e de sua eficácia pragmática”.

Assim, no “Rremembranças”, a lógica indicial da menina de rua morta, a contiguidade física das fotos selecionadas com os seus referentes, constroem a reconstituição do escândalo sensacionalista e da exploração comercial, plantados na mídia impressa e televisiva, a partir do assassinato de uma menina de oito anos, encontrada nua no trem-fantasma de um parque de diversões, em Diadema, na Grande São Paulo. Trata- -se dos sentidos da atestação e da designação, aqui tomados de maneira prevalente, a partir da qualidade indiciária das imagens, visando, pela teatralidade da apropriação operada, o envolvimento do leitor no que o narrador chama de “nênia” ou canto fúnebre em homenagem à menina anônima, de oito ou nove anos, cujo nome é recoberto propositalmente com tarja preta pelo narrador, em todos os recortes onde é mencionado.

Por sua vez, em “Macao”, que é denominado pelo autor, no subtítulo, de “um texto em imagens”, a fotografia reitera o princípio da distância, ou seja, da ausência efetiva do referente, presente apenas em imagem. E, nesse sentido, aguça o aguilhão do desejo, em fotos que podem ser vistas como uma estratégia de fabulação e de ficcionalização do lugar, reiteradas pelos Adeuses nas duas páginas finais do episódio.

Decididamente, o caráter indicial das fotografias, como traço de uma ausência, distância inquietante de uma latência, dota o jogo de armar deste livro de uma conotação francamente alucinatória, em que o fantasma da morte, em suas infinitas variantes, constitui a presença permanente.


Ângela Maria Dias é professora de literatura brasileira e literatura comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF), ensaísta, crítica literária e pesquisadora do CNPq. Foi pesquisadora, com bolsa CAPES/FULBRIGHT, na Brown University (EUA, 2007), e professora visitante na Georgetown University (EUA, 2007-2008). É autora, entre outros, de Cruéis paisagens: literatura brasileira e cultura contemporânea (2007) e A forma da emoção: Nelson Rodrigues e o melodrama (2013). Vive no Rio de Janeiro (RJ).