Conto | Patricia Galeli

Cabeça de José


1. A cabeça, o chimarrão e o aquário

Na cabeça de José correm dois rios sem sentido. Ele vive em Paradoxo, uma cidade pequena, a praça tranquila, canteiros cospem flores que enroscam o pé das pessoas vizinhas para conversarem. Elas tomam chimarrão. José não toma. “Chimarrão é um gêiser antigo demais para ter erupções periódicas e então essa gente resolveu tomar de canudinho”, diz José, “um dia a água verde e o vapor vão jorrar para dentro da cabeça delas pelos canais do nariz”.

Elas tomam chimarrão e falam dos vizinhos. Falam de José. Que é muito estranho José com a cabeça pesada e as ideias esquisitas. Pois José quer algumas coisas que não são muito queridas por ali:

Plantar uma bananeira com folhas ao estilo do cabelo de Elvis, semear guitarras como cenouras, implantar um rabo longo para coçar o nariz sem ter que deixar de lado os afazeres. Quem pode querer um querer desses?

O que as pessoas não sabem: o mar na barriga!, é isso que o José mais quer na vida. E um aquário no quarto, com peixes pequenos.

Brancos,

Vermelhos

: peixes que nadam até a superfície e tomam velocidade para chegar ao fundo.

: peixes que batem a cara de peixe nos pedregulhos e se espatifam;

: peixes que viram tinta que faz desenhos na água.

1. José e a hidrelétrica

Na cabeça de José correm dois rios sem sentido. Porque eles tentam escorrer pelos ouvidos, José constrói mini-hidrelétrica para dar luz aos pensamentos.

É um complexo arquitetônico assim:

Um dos rios cria por conta própria um reservatório no hipocampo;

Há um canal que José não controla direito, mas às vezes funciona;

O duto dá para a Ponte de Varólio, que liga a turbina ao segundo rio;

O segundo rio fica no cerebelo e faz força para o gerador rodar.

Quando tem sorte,

e tudo opera a cem por cento,

José pisca e pensa iluminado.

1. As pessoas de cabeça exata

Na cabeça de José correm dois rios sem sentido. Nas pessoas de cabeça exata, há uma grande quantidade de órgãos dos sentidos, a boca e o cérebro.

Cabeça exata define pessoas sem pés nem cabeça. Não é que sejam mulas-sem-cabeça (não!); continuam sendo pessoas, mas como o tamanho não varia, os pensamentos são águas paradas.

Aí acontece sofrerem de clichê.

: agentes infecciosos conhecidos como carimbos-de-língua tornam as palavras documentos burocráticos;

: cada pessoa de cabeça exata possui no córtex cerebral uma mesa com pilhas e pilhas de papel;

: uma palavra só pode sair da boca se estiver carimbada;

: todas as frases são inspecionadas e têm um número de identificação.


Patrícia Galelli nasceu em Concórdia (SC), em 1988. Graduou-se em Comunicação Social — Jornalismo pela UnC (Universidade do Contestado) e é pós-graduada em Administração de Empresas pela FGV (Fundação Getúlio Vargas). Publicou o volume de contos Carne falsa (2013) e textos na revista de literatura e arte Bólide (2013). Os trechos aqui publicados integram o livro de contos Cabeça de José, com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2014, pela editora Nauemblu. Vive em Florianópolis (SC).