Conto | Dalton Trevisan
FLAUSI – FLAUSI
Dalton TrevisanEsse pequenino caixão branco... E a estranha procissão de uma só!
Sozinha, a mãe dolorosa, o luto fechado na sua dor. Costuro o morto, o vivo não! Dizer três vezes.
Que bom conversar com você, meu diário.
Oito horas da manhã, passam de eternos cabelos despenteados os estudantes rumo às aulas. Pensei o dia todo: Para o meu príncipe serei a sua cinderela de pequenos sapatos; ai! Só para ele.
No caixãozinho a garota errada que ainda não tinha morrido.
Agosto, 4: Eu sou feia, querido diário?
Agosto, 5: de manhã: Sonhei, outra vez, ai que horror! Me debatia nos braços de um monstro de luxúria, a barbicha loira e que se ria, cínico.
Afastei-o, já sem força:
— Para trás, miserável!
O sacripanta enrolou os bigodes e voltou à carga. Eu fugia, ele cada vez mais perto, a barbicha de ponta eriçada. Lambendo os beiços:
— Minha, enfim!
E avançou para mim, coitada, que... Despertei.
Penitência do padre: 10 padre-nossos e 10 ave-marias.
Agosto, 6: Um dia ocupado. Papelotes no cabelo, manicura e, à tarde, compras (não esquecer a linha bege). Na rua, ele passava por mim e não me viu; belo e muito longe. Eu... Não, não vale a pena.
Agosto, 7: Sua feia!
Agosto, 8: Juro não fumar mais que três cigarros por dia. a) Aninha.
Agosto, 9: Hoje cruzava, sob a janela, um operário suado, a garrafa de café na boca da mochila. Cravou-me olhar fogoso e fatal. Oh! Toda ruborizei o seio palpitando.
— Ai, que bruta macho!
Um eufemismo, depressa, por favor.
Agosto, 10: Pensamento achado numa revista: O amor é um sonho nebuloso! Lindo.
Agosto, 1º, de noite: Tão triste, basta fechar os olhos para morrer. Leio Casimiro de Abreu e toco ao piano Dalila. Às três das manhã e Nelly, Nelly, te quiero.
Agosto, 11: Ai de mim! Só serei feliz no céu.
Agosto, 13: Vontade de ser freira. No claustro e ausente do mundo. Baixa a cabeça, Aninha, reza as tuas preces.
Agosto, 16: Sem fome, belisquei meio pãozinho, uma asa de galinha. Careta para tomar o remédio. Amargo.
Agosto, 17: Cinema. A voz rouca de Charles Boyer.
— Eis um galã de fino trato!
Tentação inconfessada de beijar o homem barbudo na cadeira ao lado.
Agosto, 19: A imagem no espelho é de guria pálida, pálida, grandes olhos líricos. A palidez é a sublimação do amor e, mais um pouco, me desvaneço nuvenzinha entre as nuvens.
Agosto, 21: Que adianta esperar, se ele não vem: quem?Ora, o meu príncipe encantado, no seu negro cavalo empinado. Um pratinho de mingau? Por favor, mãe, eu não quero.
Agosto, 22: À janela, com insônia, olha a lua. Suspiro pelo que perdi sem ter tido — o meu país de guapos mosqueteiros, com plumas verdes no chapéu. Sol e música Rudi.
Frio nos braços, o conchego da manta xadrez. E essa tosse. E essa febre — as faces em fogo.
Agosto, 23: No telhado um gato solitário declama versos à lua.
Agosto, 25: Ele chegou no seu corcel de narinas resfolegantes. Galante príncipe, que dizia:
— Senhorita, meu reino por um chá de camomila!
Setembro, 2: Violetas floridas nos vasos, uma cantiga saudosa da Odete na cozinha, mais gatos à noite sobre os muros. Oh! Casimiro, Casimiro... (Gatos, não, gatas.)
Setembro, 3: Do Jornal das Moças — Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que encontrardes o meu amado lhe façais saber que estou enferma de amor.
Setembro, 4, de manhã: Um desejo tardio de pecar.
Setembro, 4, de noite: Que aparência teria ele em trajes menores? (Riscar este pedaço!) Pernas cambaias, talvez.
Setembro, 6, domingo: Pressa de viajar pelas estradas, uma aldeia perdida lá no Tibet. Que nome teria?
Setembro, 7: Ora ardendo em febre. Ora tiritando no gelo. Meu Deus, por que essa judiação com a tadinha de mim?
Setembro, 14: Diálogo na sala de estar.
— Rudi!
— Boa- tarde, menina.
Assim que ele entrou, uma corruíra afiando o bico na árvore, o garnisé jururu no terreiro, a preta com suas panelas na cozinha — romperam juntos num canto louco de alegria.
Suspirei baixinha: “Meu Deus do céu.” Ele apenas sorriu, indiferente. Ah, sem engano, morte violenta e certa para mim.
— Nada para me dizer?
— Eu, o quê, mocinha...
Tarde mais desgracenta de minha vida.
Setembro, 15: Meu querido diário... Nada, só isso: querido diário.
Setembro, 16: Que gosto há de ter gasosa de framboesa, cabeça de fósforo amassada, aguarrás?
O que Maria da Luz bebeu por amor do cabo Floripes. No bilhete a razão do tresloucado gesto: Ele, o ingrato, tinha outra. O cabeçalho do jornal é tão bonito: Adeus, Floripes!
Setembro, 18: Sonho; homem com a barbicha de ponta arrepiada.
Mas não irei à igreja.
Setembro, 19: De quem essa imagem desbotada no espelho? Inútil beliscar as faces. Ai, fundas olheiras. E tossinha pertinaz.
Setembro, 20: Sou mesmo... o quê? Um triste lírio tísico.
Setembro, 21: Primavera na folhinha.
— Senhorita, uma flor para os seus cabelos?
— Obrigada, cavalheiro, não fumo.
Por que essa tolice?
Setembro, 22: Ah, os beijos molhados que, de repente, sinto na nuca. Olho com espanto em volta — sozinha no quarto.
Setembro, 23: Uma gota de sangue no lencinho branco.
Setembro, 25: Outra mulher há que dorme sob a virgem, fatal até nas unhas pretas, uma longa piteira na boca purpurina.
— Garçom, whisky and soda.
Setembro, 26: Como eu odeio as criancinhas, sempre aos gritos, correndo felizes e coradas pelos jardins. Ah, como as odeio!
Só de pensar, eu sei, mereço o inferno.
(E você aí não conte a ninguém.)
Setembro, 27: Chuva, dedos gélidos batem na vidraça, chove lá fora. Um cobertor sobre os ombros. Está bom aqui dentro. Virá me buscar à meia-noite uma carruagem fantasma sem cocheiro na boleia. Em despedida, dormir nos braços de algum viúvo triste; por favor, só me levem quando ele esteja dormindo.
Setembro, 29: Eu o amo, perdida e louca. Ele não me ama, eu sei. Simples olhar ou gesto banal, o alfinete da esperança já pinica fundo o peito. E, submisso, deita-se o meu coração a seus pés, feliz de ser pisado.
Quero prendê-lo em tímido abraço e impaciente já se desvencilha e foge. Parte, meu amor, e sê feliz.
Setembro, 30: Vi-o, no saguão do teatro, ao lado da outra. Sorriam e segredavam tolices, roçando as belas cabeças. Ela de vestido encarnado, uma rosa no cabelo. Dize-lhe adeus, Aninha, que o donzel ame a sua donzela. Ai de mim! E a donzela morra de amor por seu donzel.
Outubro, 1: A sua combinação aparecia sob o vestidinho curto. Minha vingança!
Outubro, 2: Visita à dna. Clarinda, tem setenta anos, que velha, credo!
Quarto em penumbra. Uma estátua de sal se derretendo no tapete. Cega, a bengalinha em punho, esgrime com a certeira foice da morte:
— Eu não quero morrer. Ainda não.
Diz ela que, só na velhice, a vida tudo nos dá e um pouco mais. Na despedida, com as mãos trementes afagou-me o rosto. Sem rugas, que ela invejou, eu sei.
— Reze, filha, reze por mim.
Mamãe disse que Dn. Clarinda, no seu tempo, foi moça belíssima, Uma flor nos cabelos: Amas-me? Sim, amo-te!
Lembrando, será? Uma valsa evanescente em surdina, o carnê de baile, a imagem risonha no espelho; rezai por ela e por mim.
Outubro, 3: O trino do primeiro sábia acende o sol na janela.
Viver ainda um dia, viver!
Outubro, 4: Para o meu Floripes serei a sua Maria da Luz; ai! só para ele.
Por ele beberia gengibirra com mil cabeças de fósforo amassadas e caminharia sobre a água, sem molhar os pés.
Me pedisse a lua, eu desmaiava tantas vezes de amor que a lua dele seria com peninha de mim.
Não queres, Rudi? Bem sei, tu não queres.
Outubro, 5: Deus, faz com que hoje aconteça um milagre na minha vida. a) Euzinha.
Outubro, 6: Por favor, Deus. a) A mesma.
Outubro, 7: Me acolheu nos braços e arrebatou na garupa do seu cavalo de ébano. Depois o fogo estalando na lareira, que tal um cálice de absinto, meu bem?
— Colher e...
— ... torrão de açúcar. Sou esquipática, porém saudável.
Quanta bobice para espantar o tédio.
Outubro, 8: Os pensamentos que não tenho coragem de escrever.
Outubro, 11: O doutor, um pigarro:
— Minha jovem, se você insiste em não se cuidar...
Dois pigarros:
— Não quero assustá-la, mas...
Que seja. Vida longa à velha aguerrida. Sentadinha, desafiante, o espadim de madeira golpeando o ar; Raspe-se!
Fora daqui, ó Bruxa!
E uma coroa de flores roxas para a mocinha tossicante.
Outubro, 15: O silêncio desse vasto cemitério de estrelinhas mortas já não me assusta.
Outubro, 17: Não andes pelas estradas ao sol em busca de um resto de amor.
Veja, a noite que se deita sobre os telhados esconde de teus olhos os caminhos ardentes.
Outubro, 18: No aniversário da Lúcia, enrolei no lencinho perfumado um pequeno frasco azul.
Ninguém estava olhando? Eu cuspia, horror! (Ui, vermelho vivo.)
Outubro, 19: O doutor me proibiu de sair de casa.
Outubro, 20: E não fui mulher fatal. Para recordar na velhice.
Outubro, 21: Ah, bem podia ser cavadora de ouro, jogar bacará no cassino, a lua boiando nas águas sobre a amurada do navio. E ser gorda, isso mesmo, de quadris rebolantes — e os poetas celebrariam as minhas coxas grossas.
Tanto eu queria, e não quero mais.
À noite, na janela: O príncipe gentil:
— Me permita, senhorita, pendurar no seu pescoço este humilde colar de beijos!
Outubro, 22: — Laranja madura, bem baratinha!
O refrão do mascate a esganiçar-se na rua ensolarada. Compra, freguês? Sabor ácido de laranja na língua. E soprando as sementes, ai! medinho de apendicite.
Outubro, 23: Os cravos no canteiro balançam as cabeças beijadas pelo vento — almas inocentes de meninas pulando amarelinha entre os túmulos?
Outubro, 24: Que sede! Pedir um copo d'água? Antes a sede e a febre, morrendo um pouco ao sol da manhã.
Outubro, 25: O céu estende as nuvens brancas molhadas de chuva no varal do jardim.
Outubro, 27: O amor é a torta especial de maçã que sirvo todo dia a você. Por mais que passem os dias, sempre resta um pedaço para amanhã.
Imaginei como será meu epitáfio: Que tal esse? Aqui jazz a feia adormecida que nenhum príncipe veio acordar.
Outubro, 28: Me despi diante do espelho, beijei em delírio os braços nus. Profanando o mistério do meu corpo — qual a penitência?
Outubro, 29: Sempre sonhei no vestido róseo de musselina passear no luar. Fazê-lo hoje? Muito sono.
Outubro, 30: Gente sadia aos cochichos na sala. Não quero vê-las; refugiei-me na terra das macilentas carpideiras descalças, xale preto e pretos véus — arranhem o rosto e se descabelem pela que vai morrer.
Novembro, 1: Uma história de fadas, mãezinha, para eu dormir. Da guria que desejou tocar o arco-íris. Logo ali, no fim da rua, rentezinho ao chão. Mamãe não tá olhando, está?
A menina correu e correu atrás das nuvens maravilhosas. Tão pertinho — e cada vez mais longe.
O fim da história, qual é, mãe? Conte, por favor.
Novembro, 2: Confidências tão ingênuas. E na garganta o soluço teimoso do remorso. Por tudo o que não fiz.
Novembro, 3: Diário querido, sabe que não tenho medo, calar as vozes, ir-me. A testa em fogo, o peito em fogo — e paz no coração.
Novembro, 5: Vejo o mundo através deste aquário sem água — uma vidraça embaraçada por meu último suspiro.
Novembro, um dia: Morrer, afinal...
Novembro, 8: O beijo que ninguém colheu? Esse beijo é teu, Rudi.
Novembro, 10: Num sonho, como na vida, despertei de madrugada: todos dormiam a sono solto.
Flausi-Flausi — a palavra secreta que, soprada três vezes no escuro, alcança o milagre da minha cura.
Novembro, 14: O padeiro virá de manhã trazendo pãozinho quente e a gorda Odete limpará o pó dos móveis e mamãe irá à missa e meninas brincarão de roda na calçada e os estudantes, às oito horas, têm os eternos cabelos desgrenhados. Que fim levou a mocinha triste na janela?
O padre rezará a missa, mamãe comerá o pãozinho tostado, os estudantes sairão da aula para as ruas pipilantes de gente.
A vidraça foi descida e a janela fechada.
Que a donzela morra de amor pelo seu donzel, ó filhas de Jerusalém.
Novembro, 16:
Tosse, Ana. Tosse.
Mais sangue no lencinho.
Novembro, 19:
A rosa, por favor, a rosa branca no cabelo.
Dalton Trevisan é autor dos livros O vampiro de Curitiba, A polaquinha e O maníaco do olho verde, entre outros títulos. Sua obra foi traduzida para diversos idiomas, como o inglês, o espanhol e o italiano. Em 2012 Trevisan ganhou o prêmio Camões de literatura. O autor vive em Curitiba (PR).
Ilustrações: Fabiana Vieira