Conto | Carlos Machado

As cores do arco-íris

Para Maria Luiza Carbonieri Machado

Pois assim, os olhos viravam-se de baixo para cima, brancos, sem o castanho cortado ao meio por um risco preto. A cabeça baixa, como olhasse para os pés tentando ver o teto. Abaixava-se cadenciadamente para não atingir a placa próxima à porta. De supetão, levanta o braço direito e atinge em cheio uma lâmpada acessa deixando os cacos espalhados pelos cabelos e ombros. Não se muda o colchão de lugar assim de uma hora para a outra, sem avisar, apenas porque tinha que limpar o carpete do quarto. Alguns centímetros fora da marca que faz os pés, e pronto, os dedos em riste para a parede, olhando fixamente para uma pequena rachadura ao lado da janela. Diretamente no olho da lagartixa parada ali ao lado, esperando para dar o bote em uma pequena aranha marrom que se alimenta de poeira. Alguém disse que elas podem acabar com a vida de qualquer um, por isso Pedro está sempre na espreita para esmagá-las sem pestanejar — com a ponta da unha, como fosse um piolho. Da mesma forma, buscou os olhos da mulher que virou sua cama de ponta-cabeça, riscando com o vento um pedaço da córnea. Nessa noite sem sono: virava-se para todos os lados, como uma borboleta que voa em ziguezague prestes a cair da cama, arrastando o lençol com o qual se embrulhava, tal um bebê recém-nascido. Sua mãe ao lado, segurando suas mãos para acalmá-lo, ajustando a cama exatamente onde deveria estar e mostrando para ele que já era como sempre foi. E continuará, Pedro. Em alguns momentos, pedir calma para alguém é como abrir uma porta estreita e exigir que várias pessoas passem ao mesmo tempo: uma batendo na outra, aglutinando-se, virando-se, tornando o efeito contrário do que se espera. Dessa forma, apenas pequenos movimentos na mesma direção, em intervalos de pequenos pulsos, do contrário seria pior.

Quando ainda um pacotinho, a mãe fingia que não percebia que o filho dificilmente fixava os olhos nos dela. Procurava sempre por algo que não existia: talvez uma mosca que passou por ali sem ser percebida, ou uma goteira na pia do vizinho de cima. Sempre pensava que tinha que interfonar para eles verificarem se não tinha uma torneira aberta ou, quem sabe, o vaso sanitário sem a vedação necessária. Será que é uma mancha de mofo que tem logo ao lado do chuveiro? E o filho virava a cabeça com o mesmo movimento evitando que ela colocasse o capuz da blusinha. Fazia frio em Curitiba nessa época do ano, mas ele não queria. O brinquedinho que ganhou de sua tia pendurado no teto ia e vinha, um aviãozinho ligado na tomada e que fazia um barulho engraçado. O menino procurava por todos os lados, mas não sabia de onde vinha o vento. A papinha ficava espalhada pelo rosto e babador, um pouco ele comia. Para ela, o filho sorria o tempo todo e era brincadeira que não queria comer. Alguém provavelmente ligou a música no último volume, talvez no prédio da frente, ou de trás. O filho não conseguia dormir facilmente. O médico dizia que era normal, muito sensível: dê esse remedinho, aqui ó, vai deixá-lo mais relaxado. Mas ela dava descarga. Três ou quatro vezes. Talvez se chorasse? Mas dessa forma, não estaria apenas tirando os braços do volante na eminência de um acidente? Assim como colocar as mãos no rosto quando precisa atravessar uma ponte móvel, sem segurança e nem cordinha para se apoiar.

Tão logo quebrou o foco de luz que o incomodava, Pedro continuou apenas com o branco dos olhos à mostra, balançando a cabeça sempre na mesma direção, sem olhar para frente. Passou por algumas pessoas sem vê-las e parou do lado contrário onde elas estavam. Suas costas ainda mais arcadas do que normalmente, os braços e as pernas desproporcionais ao resto do corpo, como tivesse se alongado apenas nas extremidades — como todos os adolescentes —, os cabelos cortados em casa, com calma para não se machucar, as unhas sujas de suor. Pedro já estava com sua sunga, pronto para entrar na água, porém esqueceu-se. Com um movimento sincronizado, abre as portas de cada um dos 40 armários do vestiário. Apertando os dentes, calcula o mesmo espaço entre eles, percorre de ponta a ponta certificando-se de que estão na mesma posição, pisca um dos olhos medindo a distância e se afasta para pegar uma certa velocidade. Ao lado, alguns homens enrolados em suas toalhas, acompanham-no com bastante interesse. Ou talvez estejam assustados, não se sabe ao certo. Difícil prever o que acontece de um momento para o outro. Como na rebentação do mar que, segundos antes de explodir entre as ondas batendo na areia, abraça o silêncio. Ninguém se move, nada acontece. No jogo de vôlei, o levantador coloca a bola, leve, sutil, entre a rede e a mão do atacante, exatamente quando ela nem sobe e nem desce, plaina e para no ar: 4’33’’. 

Aprenderam que quando estivessem jantando, teriam que desligar a televisão. Nada de música, fala-se o essencial. Assim, o menino come. Até soar o alarme de um carro na esquina da rua de trás — ou da frente —, entre um som agudo e o silêncio, 2 segundos entre eles, Pedro espreme as palavras ouvindo a nota “Lá”, 440 hertz, como se alguém estivesse no seu ouvido apertando o botão da caneta sem parar ou batendo o pé insistente no assoalho de madeira. A mãe o entretém lendo uma historinha ilustrada, segurando em suas mãos, delicadamente: o menino busca seus olhos. Quando caiam as lágrimas, ele pegava o paninho que estava sempre por perto e passava no rosto da mulher, que imagina todos os sorrisos do mundo, gargalhadas e conversas com o filho: falam sobre o que fizeram ao longo do dia, o que leram, sobre as pessoas que encontraram, ele pede para que ela pare de chorar um pouquinho, mamãe, por favor, ela sorri e diz que isso já vai passar e ele retribui o sorriso e fala que a ama e que nada seria sem ela por perto e ela o abraça, e os dois permanecem conversando em silêncio.

O ângulo que a sombra da porta do armário desenha revela uma imagem múltipla que se reflete no chão ao lado de seu pé. Calcula a incidência e a necessidade de luz para que as portas sejam vistas todas da mesma forma. Um conjunto de retângulos em 3D que seguem o mesmo ritmo de movimento. Pedro faz todos os cálculos que pode, até perceber que já tem o padrão de que precisa. Dessa forma, ao fechar os olhos, tudo se organiza em sua memória. 

Entre um bater de cabeça e outro, apenas o ar que é inspirado com bastante dificuldade. Assim não incomoda ninguém? Alguns irritam-se apenas com a presença de outros. Estar ali ao seu lado, sem ter que abrir a boca para nada, sem levantar o rosto para encará-lo, sem procurar seus olhos: nada. Apenas sentindo o calor de um corpo que não se inquieta, que mexe de um lado para o outro, falando sons sem conexão com o que está acontecendo ao lado. São momentos diferentes: as realidades existem apenas em nossos juízos e são variáveis, nunca absolutas, indefiníveis. Sempre uma questão de percepção. Como assim fora do lugar? A cama continua no mesmíssimo lugar de sempre, explica a mulher. Desculpe, não quis dizer que você está modificando algo, apenas te mostro que não é no mesmo lugar, mas quem pode adivinhar, não é mesmo? Responde a mãe. Apenas ela, a mãe, uma única pessoa que pode passear pela realidade do filho. Como esse senhor parado atrás de nós pode entender? Pensava a mãe. Assim, o ir e vir do corpo de Pedro sentado na fileira “L” do Teatro Guaíra impede o espectador da fileira anterior de ver os atores, de acompanhar a ação. Impede? Entre um vão e outro, não consegue perceber nada? Entre o silêncio e o som, senhor, por favor, não entende que a pausa também é música? 4’33”. Explica a mãe, sempre com o repertório repetido, como fosse parte do que deixou para o filho. Por que ele faz barulho tão alto quando respira, pai? O que ele está fazendo encostado na parede desse jeito, tio? Eu acho que o Pedro está se masturbando aqui atrás de mim, dizia a menina. Não seja boba, ele está fazendo cálculos, não percebe? 

A professora chamou a mãe para uma reunião: todos os cálculos antes que eu explicasse, senhora, do começo ao fim e de várias formas possíveis, nem eu sabia o caminho que ele estava escolhendo, me mostrou vários números e concluiu todos os problemas do livro em questão de poucas horas. A senhora também é professora de matemática? Agora ele me ajuda em todas as aulas. Todas as crianças querem aprender com ele.

Depois de colocar todas as portas exatamente no ângulo em que deveriam estar, Pedro puxou o ar para dentro, prendeu a respiração, inverteu a cor dos olhos, apertou o braço esquerdo com as unhas da mão direta, trocou o lado, arranhou o começo das costas e o final do pescoço, gritou. Tinham medo? Estavam assustados? Curiosos? Não se sabe, mas alguém disse que era preciso chamar a moça da recepção. Outro afirmou que sua mãe sempre o trazia, ou o pai. Teríamos que chamar alguém. Você pode falar para o professor? Acho que ele tem aulas com a Joana. Ou com o Maurício, não sei. Gente, é o Pedro, eu nado com ele. Pedro, o que aconteceu? Rapidamente não estava mais aqui quem falou. As toalhas já guardadas, as bolsas fechadas e alguém teria que cuidar do Pedro, não pode ficar sozinho aqui. Todas as portas batidas, uma por uma em cadência difícil de se repetir. A mesma força exercida em cada empurrão. Não se atreva. Ele vai acertar sua cara. Não, meu amigo, o Pedro não vai acertar sua cara, nem a minha, mas alguém precisa segurá-lo para ele não acertar a própria cara. A vontade era de arrancar os cabelos de uma vez por todas, só com a força da unha. Rasgando. E seguia fazendo os cálculos que deveriam ficar prontos para que quando as portas batessem nos armários, pudessem voltar de onde tinham saído. E caso não estivessem no mesmo ponto de antes, colocá-las ordenadamente. Desorganizar o planejado. Todos as toalhas de papel, uma por uma, ritmicamente, no chão, colocadas na parede, no teto, em seu rosto. Correndo de lá para cá, parado de frente ao espelho. Alguém realmente precisa chamar sua mãe. Já chamou a moça da recepção? Ele vem sempre com uma senhora, deve estar lá fora. Em um impulso instantâneo, Pedro cambaleou em direção aos chuveiros: abriu todas as torneiras — água quente, água fria — batendo com as mãos abertas nas portas de vidro, imitando o alarme dos caminhões de bombeiro.

Acho que ele tinha um cisco no olho. Saiu correndo pela quadra sem olhar para trás, esbarrou em algumas pessoas que estavam no meio do caminho e correu para o bebedouro gritando a nota “Lá”: jogava água em seu rosto, como quisesse apagar um incêndio fora de controle.

A mãe pediu licença para entrar no vestiário e o encontrou prestes a quebrar uma das portas de vidro. Sem olhar para ela, ele a percebeu indo em direção aos chuveiros para desligá-los e resolver sentar-se no banco logo atrás. Colocou os braços e a cabeça entre as pernas indo e vindo com o corpo, repetindo esse movimento como estivesse em uma cadeira de balanço. Esfregava nervosamente as mãos uma na outra, assim como se faz para acender uma fogueira no inverno. Acariciando as mãos de Pedro, chega-se aos seus olhos, assim faz sua mãe, calmamente.

E olha como ele entra no ginásio de natação, tímido, com seu roupão do Homem Aranha, procurando a raia adequada junto aos outros competidores, todos mais ou menos da mesma idade, com os mesmos braços desproporcionais, pernas longas e ombros largos dos treinamentos. Antes de subir no trampolim da raia 4, Pedro ajusta a toca de silicone com as duas mãos, cuidando para não estalar e nem apertar as orelhas, e a veste em sua cabeça, dá dois tapas de leve na nunca para não se esquecer de que está vivo e coloca os óculos no rosto. Com o canto dos olhos, busca seus adversários nas raias paralelas e mostra confiança. Ao menos assim o vê sua mãe: seus olhos brilham quando percebe o filho prestes a pular e sair voando em busca de mais uma medalha. Uma prova rápida, 50 metros, sem tempo para piscar, apenas seguir adiante, olhar para o azulejo, fechar os olhos, puxar o ar no fundo do pulmão, sabendo que não poderá respirar durante a prova, e buscar a borda do outro lado, 50 metros apenas. Logo ali, Pedro, encosta os dedos aqui na borda, segura para não cair e espere eu contar até 5, está bem? Diz a professora Joana, assim que Pedro pula na piscina. Ela pega alguns itens em uma caixa cheia de brinquedos aquáticos: um patinho de borracha, uma estrela-marinha, duas bolas e um anel bem pequeninho. Agora eu vou jogar 5 objetos em algum lugar da piscina, você tem que encontrá-los e me entregar de volta. Sorri a professora para o feliz Pedro, que concorda batendo uma das mãos na água, fazendo uma bagunça que ele adora sempre que está na aula de natação. Sua mãe viu quando ele encostou os dedos na borda do outro lado da piscina: foi o primeiro! Chegou na frente de todos os outros! Grita ela, sem perceber que estava atrapalhando a aula de hidroginástica ao lado de onde estava o filho, bem no momento em que a professora arremessa para o alto os 5 objetos que caem espalhados por toda a raia e, lentamente, deslizam pela água e pela luz refletindo as cores do arco-íris, como em um prisma, que chegam até a superfície da água.

Pois assim, mergulha Pedro para buscar o que está parado no fundo da piscina. 


CARLOS MACHADO nasceu em Curitiba, em 1977. É escritor, músico e professor de literatura e línguas estrangeiras. Publicou os livros A voz do outro (contos 2004), Nós da província: diálogo com o carbono (contos, 2007), Balada de uma retina sul-americana (novela, 2008) e Passeios (contos, 2016). O conto publicado pelo Cândido faz parte do livro inédito Flor de Alumínio