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Quando a insensatez é a base de tudo

Gênero literário estabelecido no século XIX por Edward Lear e Lewis Carroll, o nonsense tem antecedentes na antiguidade e impacto no cenário cultural contemporâneo, do cinema de Tim Burton às letras de Djavan, incluindo a ficção de James Joyce


Marcio Renato dos Santos

Conversando com varejeiras azuis foi lançado há poucos meses no Brasil e segue recebendo atenção dos jornais brasileiros, de São Paulo ao Rio Grande do Sul. O livro traz trechos da prosa, poemas e desenhos de Edward Lear (1812-1888), o pioneiro da literatura nonsense (que significa sem sentido ou absurdo). O interesse da imprensa cultural e o respectivo impacto, e influência, nos leitores indicam que o gênero literário tem público. Dirce Waltrick do Amarante, que assina a tradução de Conversando com varejeiras azuis, diz que Lear é relativamente pouco conhecido no Brasil, apesar de ter uma obra extensa que teve impacto em diversos artistas. 

Professora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Dirce conta que, no século XX, o legado nonsense de Lear influenciou, por exemplo, o escritor norte-americano Donald Barthelme e os ingleses W.H. Auden e D.H. Lawrence. “Deve-se mencionar que sua obra inspirou James Joyce, sobretudo na composição de Finnegans Wake”, ressalta. Na música, a sua poesia foi musicada pelo compositor russo Igor Stravinsky. Já os seus desenhos influenciaram importantes artistas gráficos, como os norte-americanos Edward Gorey e James Thurber. 

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Edward Lear, o avô de todos os movimentos modernos que “brincam” com a lógica e com a linguagem.

Alguns estudiosos analisam que Edward Lear fez uma arte baseada na insensatez e, nesse sentido, o artista inglês teria sido o primeiro “absurdista” de um movimento cultural nascido na Europa e que englobaria escritores tão diferentes como Alfred Jarry, Franz Kafka, Ionesco, Samuel Beckett, além de diversos pintores modernos e também autores latino-americanos, como Sousândrade, Qorpo-Santo, Macedonio Fernández e Wilson Bueno. 

O nonsense de Lear pode ser exemplificado pelos limeriques, pequenos poemas, traduzidos por Dirce Waltrick do Amarante. Em um deles, o leitor se depara com: “Havia uma jovem de Horta,/ Que sentou atrás da porta;/ Quando foi espremida, disse: ‘Santa Aparecida!’,/ A valente jovem de Horta.” Há outros, entre os quais: “Havia um velho de Formoso,/ Que era muitíssimo vigoroso;/ Ficou de pernas pro ar até o colete corar,/ Esse eclético de Formoso.” 

Dirce explica que Lear escreveu os primeiros desses poemas cômicos para divertir crianças. Eles eram compostos apenas de quatro ou cinco versos (conforme a disposição gráfica adotada), acrescentando-lhes sempre os seus próprios desenhos. “Assim, quase por acaso, surgiram os seus primeiros poemas cômicos, os quais foram chamados por seu autor simplesmente de ‘nonsense’. No final do século XIX, todavia, os versos nonsense de Lear passaram a ser reconhecidos também como limeriques, denominação que nunca foi usada por ele. O termo associava definitivamente os poemas de Lear a uma tradição de poesias curtas da literatura inglesa que ele acabou ajudando a consolidar”, comenta a pesquisadora da UFSC. 

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Aspirador cultural 

No mesmo contexto em que Lear escreveu a sua obra, Lewis Carroll também produzia literatura nonsense — mas eles não se conheceram. Pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), Carroll é autor do célebre romance Alice no país das maravilhas (1865) — leia mais na página 26. A professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Myriam Ávila observa que o nonsense vitoriano (referência ao período do reinado da rainha Vitória, de 1837 a 1901) é filho direto da Revolução Industrial e do domínio colonial britânico. “Nele, pela primeira vez, produtos industrializados e a linguagem da publicidade invadem a literatura, marcada por um profundo dissenso entre uma sociedade pautada pelo capital e o indivíduo que tenta resistir à reificação daí decorrente”, afirma Myriam, também coordenadora do grupo de pesquisa Poéticas do estranhamento, do CNPq. 

A estudiosa da UFMG explica que o surgimento da palavra nonsense não é determinado. “Mas esse tipo específico de humor ou procedimento linguístico já era praticado na Idade Média e pode ser encontrado mais tarde na obra de William Shakespeare”, acrescenta. De acordo com Myriam, tanto Carroll como Lear usaram a palavra nonsense em suas primeiras obras publicadas, o que mostra que ela já estava em circulação naquele momento. 

Apesar de o nonsense existir — de acordo com alguns estudos — desde a Grécia Antiga, foi a partir da publicação de Um livro de nonsense (A book of nonsense), de Edward Lear, em 1846, que ele passou a ser visto e estudado pelos críticos como gênero literário legítimo — foi literatura infantil que depois se tornou de interesse de adultos. 

Myriam Ávila explica que, por exemplo, o nonsense anterior, o da Idade Média, era marcado pela ideia de “mundo às avessas”, configurando um elemento de carnavalização que se opunha ao rígido sistema hierárquico da época. “Mas acredito também que o nonsense é uma atitude frente à linguagem que provavelmente ocorre e ocorreu nas mais diversas culturas, em todas as épocas. Apenas não chegou a uma realização tão acabada quanto no século XIX inglês, com Carroll e Lear”, argumenta. 

No entendimento da professora da UFMG, mais do que tratar de determinados assuntos, o nonsense acolhe todo tipo de ruído e zunzum circundantes, como um aspirador cultural, sem querer organizá-los em um discurso coerente, mas submetendo- os a fórmulas prévias que contrastam com essa desorganização: “Assim, acaba produzindo uma contraforma inesperada da sociedade, profundamente crítica, sem que isso seja explicitado. A linguagem é coloquial, corriqueira, mas também marcada por palavras incompreensíveis, inventadas ao sabor do momento.” 

Zum de besouro um ímã 

Um dos teóricos favoritos de Myriam Ávila, Klaus Reichert, afirma que o nonsense vitoriano derivava sua força de não saber a que perguntas estava respondendo. “Hoje, quando temos muita consciência de tudo, as perguntas tornaram-se explícitas e suas respostas cada vez mais previsíveis”, observa a especialista, destacando que, para ela, o nonsense mais interessante em âmbito mundial é veiculado nas últimas décadas pelo rock and roll, talvez mais em sua vertente punk. 

A pesquisadora diz admirar os momentos de nonsense na poesia de Sérgio Medeiros (que nesta edição traduz trecho de um romance de Lewis Carroll na página 28), e ela não deixa de mencionar que, na canção brasileira, Luiz Melodia e Djavan também têm momentos de puro nonsense. “Açaí”, de Djavan, de fato, tem um trecho — em alguma medida clássico — devido à ausência de sentido, apesar da inegável potência melódica: “Açaí, guardiã/ Zum de besouro um ímã/ Branca é a tez da manhã.” A letra de “Magrelinha”, de Melodia, também traz imagens inesperadas e flerta com o absurdo: “O beijo meu, vem com melado decorado cor de rosa/ O sonho seu, vem dos lugares mais distantes/ Terras dos gigantes/ Super-homem/ Supermosca/ Supercarioca/ Supereu.” 

Já Dirce Waltrick do Amarante afirma que o nonsense está disseminado na literatura contemporânea. Para comprovar a afirmação, ela cita o cineasta e escritor Tim Burton. “Ele está trazendo esse gênero para o cinema, como todos sabem, mas também escreve ótimo nonsense para as crianças.” No âmbito latino-americano, Dirce destaca o ficcionista César Aira, que publicou, em 2004, um estudo de fôlego sobre Lear — leia mais sobre Burton e Aira na página 27. 

A professora da UFSC observa que o nonsense no Brasil pode ter surgido no Sul com Qorpo-Santo (1829-1883), e teve continuidade em pleno vigor na mesma região com Manoel Carlos Karam e Eve Ferretti, entre outros. “Suas obras desconstroem a lógica, embaralham o sentido e ganham o leitor com muito bom humor (macabro ou não), como sempre fez o nonsense, em todos os seus modos de expressão”, diz, completando que o gaúcho Qorpo-Santo foi contemporâneo de Carroll e de Lear e que escreveu coincidentemente, embora sem influência dos autores ingleses, uma obra nonsense aqui no Brasil.

Efeito “nonsênsico” 

De acordo com Dirce Waltrick do Amarante, ao longo de sua trajetória de escritor, Edward Lear — “o ‘avô’ de todos os movimentos modernos que ‘brincam’ com a lógica e com a linguagem” — modificou e ampliou o sentido do termo nonsense. “Ele e Carroll, o outro pai desse gênero literário e contemporâneo, alteraram de tal forma o significado dessa palavra, que, hoje, parece difícil defini-la sucintamente ou estabelecer limites para ela dentro do campo literário”, comenta. Por isso, talvez, o termo nonsense tenha recebido dos estudiosos da literatura definições tão distintas. 

Ao considerar o nonsense como gênero literário, o pesquisador Wim Tigges analisa que este será bem-sucedido se, ao mesmo tempo, convidar o leitor a uma interpretação e afastar a sugestão de que encerra um significado mais profundo. “Quanto maior a distância, ou a tensão, entre aquilo que é apresentado, as expectativas de interpretação e a frustração dessas expectativas, mais ‘nonsênsico’ será o efeito”, explica Dirce. 

Ela diz que outros estudiosos também definem o nonsense como um jogo no qual as forças da ordem, na mente, disputam com as forças da desordem, fazendo com que aquelas fiquem em suspenso. Isso resulta numa tensão entre presença e ausência de significado que afasta, consequentemente, qualquer sugestão de emoção, pois a perplexidade é tudo o que permanece. 

A norte-americana Susan Stewart costuma dizer que o nonsense depende de uma pressuposição de sentido. “Sem o sentido não existe o nonsense”, é uma das máximas de Susan, professora universitária e crítica literária. Para ela, esse absurdo contrasta com o mundo razoável, positivo, contextualizado e “natural” do sentido, na qualidade de arbitrário, de aleatório, de inconsequente, de meramente cultural. “Enquanto o sentido é sensorial, tangível, real, o nonsense é um ‘jogo de vapores’, irrealizável, uma ilusão temporária”, já escreveu Susan em alguns de seus estudos. 

Autora de Rima e solução: a poesia nonsense de Lewis Carroll e Edward Lear (1996), Myriam Ávila confessa que, pelo fato de apresentar, há algumas décadas, a sua versão teórica do conceito, talvez esteja perto de parafrasear o dito de Walter Smetak sobre a música: “falar sobre o nonsense é uma bobagem; fazer/ ler nonsense é uma loucura”. Ainda assim, a pesquisadora gostaria que seu modelo semiótico do nonsense fosse mais levado em conta pelos estudiosos de hoje, por considerar que ele ajuda a compreender como esses textos produzem seu efeito específico. “Mas a compreensão é uma coisa superestimada. Talvez devamos começar a desentender de tudo”, pondera. 

“Uma transcendência dos sentidos”

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O professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Bernardo Bueno afirma que o nonsense não é tanto um gênero, mas uma característica presente em textos de gêneros variados. “Alguns dos textos que fazem uso do nonsense são mais humorísticos, outros mais críticos”, diz. 

Por outro lado, afirma Bueno, nonsense não é a falta de sentido, mas uma variedade de sentidos, uma transcendência dos sentidos mais comuns. “Dessa maneira, se assemelha um pouco ao Teatro do Absurdo, como em Esperando Godot, de Samuel Beckett.” No entendimento do professor da PUCRS, nonsense é um desafio à interpretação de um texto. 

Bueno chama atenção para a ficção de Haruki Murakami [foto], que, segundo o especialista, trabalha com certos elementos do nonsense, como uma referência aos sonhos e sua lógica (ou falta de), como em Caçando carneiros. 

“O problema ao tratar de nonsense é, a princípio, a falta de uma definição objetiva”, comenta. Para Bueno, aspectos do nonsense misturam-se com as ideias de humor, comédia, absurdo, surrealismo. “É um termo rico, mas impossível de classificar e identificar complemente.”

Outras ondas

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O nonsense viabilizou outros movimentos estéticos, como o dadaísmo e o surrealismo. “O dadaísmo tem em comum com o nonsense as palavras inventadas e a recusa a fazer sentido”, diz a professora da UFMG Myriam Ávila. O dadaísmo surgiu em Zurique em 1916 e entre os seus articuladores figuram os artistas Tristan Tzara e Hans Arp. 

“Já o surrealismo pretende ser uma exploração, não da linguagem, mas do inconsciente, assumindo um caráter mais onírico do que lúdico”, afirma Myriam. Paris, da década de 1920, é o cenário do começo do surrealismo, e André Breton [foto] é apontado como o mentor deste movimento artístico. 

A estudiosa da UFMG comenta que talvez o lado mais lírico de Edward Lear tenha algum ponto de contato com o surrealismo. “Mas tudo isso teria de ser mais investigado, comparando textos”, acrescenta.