Capa | Romance de Formação

Quando o ser está sendo

Obra que investiga por que alguém se torna o que é, o romance de formação é identificado desde a Grécia Antiga, definido como tal no século XIX e atualmente reinventado por autores como o norueguês Karl Ove Knausgard e o brasileiro Michel Laub

Marcio Renato dos Santos

Um livro considerado por estudiosos como um clássico romance de formação acaba de ser reeditado no Brasil. Trata-se de Os meninos da rua Paulo, narrativa literária do húngaro Ferenc Molnár, publicada originalmente em 1907. A obra apresenta duas turmas que disputam um pedaço de terra cercado, o “grund”. Lealdade, competição e outras questões do universo adulto, que podem e certamente devem ter impacto no futuro dos personagens, aparecem no cotidiano de garotos. Nesta nova edição brasileira, o livro — já encenado e com adaptações para o cinema — traz um texto do escritor Michel Laub.

Ele afirma que Os meninos da rua Paulo foi um dos livros que o ajudou na transição entre os gibis (“narrativas baseadas em desenho, com pouco texto”) e a literatura adulta. “Esse tipo de coisa costuma ser desprezada nas genealogias de influências de escritores, mas são tão ou mais importantes que os romances que influenciaram meu jeito de escrever, por exemplo. Se não tivesse me tornado um leitor, não teria virado escritor. É bem básico, e o livro do Molnár tem papel crucial no processo”, diz Laub, autor, entre outros, dos romances A maçã envenenada (2013) e O tribunal da quinta-feira (2016).

Laub lembra que, levando em consideração a definição clássica, romance de formação é uma obra que investiga por que alguém se torna o que é: “É um livro que apresenta a formação da identidade psicológica/moral/cultural de um personagem, construída a partir de certos fatos decisivos, em geral ocorridos na infância/adolescência”.

Guilherme Pupo
laub

Michel Laub é um autor de romance de formação, no caso, Diário da queda.

O professor na Pós-Graduação de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Lourival Holanda acrescenta que o romance de formação — ou de aprendizagem — é a narrativa em que o personagem testemunha a maneira como se formou ao longo do processo, subentende contato com o mundo, experiência. Difere do épico, acrescenta Holanda, porque neste caso um personagem já é “inteiro” quando se apresenta. “O romance de formação expõe fases, mudanças, tanto da sociedade quanto do indivíduo. Aqui o ser não é — está sendo”, completa.

O especialista da UFPE acredita que a dura realidade das ruas contada com maestria por Molnár fez de Os meninos da rua Paulo um clássico romance de formação: “O enquadramento poético impede de torná-lo libelo social menor”. Já o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Marcus Soares analisa que Os meninos da rua Paulo não é necessariamente um exemplo de romance de formação: “Embora possua aspectos que dizem respeito ao aprendizado de vida dos personagens envolvidos, especialmente em relação à descoberta dos valores que devem pautar as relações pessoais, o livro de Molnár não apresenta o percurso que paulatinamente explicita o processo de transformação por meio do qual os personagens podem atingir a sua maturidade intelectual e humana.”

No entendimento de Soares, romance de formação é uma modalidade do gênero romance, cujo enfoque se baseia no processo de transformação ou amadurecimento do protagonista, decorrente das adversidades pelas quais ele passa em sua trajetória pelo mundo, “em um percurso que o constitui, subjetiva e objetivamente, enquanto indivíduo socialmente configurado” — algo que o pesquisador diz não identificar em Os meninos da rua Paulo.

Bildungsroman & antecedentes
Apesar da polêmica a respeito de Os meninos da rua Paulo, fato é que o romance de formação começou a ser discutido como tal a partir do século XIX. O filólogo alemão Karl Morgenstern usou o termo Bildungsroman (romance de formação, em alemão) pela primeira vez na conferência “Sobre o espírito e a coesão de uma série de romances filosóficos”, pronunciada em 1810 e — mais tarde — em 1819, em outra conferência intitulada “Sobre a natureza do Bildungsroman”, na qual tratou mais diretamente do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.

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goethe

O escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) escreveu Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, primeira obra literária a ser definida como romance de formação. 

Publicado em duas partes, inicialmente em 1795 e em 1796, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister apresenta o filho de um casal burguês que decide atuar no teatro, o que não corresponde às expectativas de sua família. Nos momentos finais, o protagonista faz uma observação a respeito de sua escolha e do que ela representou em seu percurso: “— Não sei o valor de um reino — replicou Wilhelm —, mas sei que alcancei uma felicidade que não mereço e que não trocaria por nada do mundo”.

Marcus Soares observa que o termo Bildungsroman se popularizou com Wilhelm Dilthey, em seu livro Poesia e experiência (1906), e a partir daí acabou se corporificando na tradição crítica de língua alemã com as contribuições de Georg Lukács e Thomas Mann, entre outros. Lourival Holanda lembra que, antes de Karl Morgenstern cunhar o termo Bildungsroman, evidentemente já havia narrativas de formação, da Odisseia, de Homero — “na Paideia grega ela formava o ideal do jovem [em texto que trazia o jovem ideal] em ousadia e valentia” — aos griots [contadores de histórias] afros narrando “que apontavam um norteio, formavam memória e caráter”.

Entre as obras que são referências no que diz respeito a romance de formação, Lourival Holanda, Marcus Soares e Michel Laub citam O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, e O Ateneu, de Raul Pompeia. Individualmente, Holanda menciona Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, Retrato do artista quando jovem, de James Joyce, Infância, de Graciliano Ramos e Mil rosas roubadas, de Silviano Santiago.

Já Marcus Soares destaca, entre outros livros, O mulato, de Aluísio Azevedo, O menino de engenho, de José Lins do Rego, O país do carnaval, de Jorge Amado, As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, David Copperfield, de Charles Dickens e Demian, de Herman Hesse — estes dois últimos também são indicados por Michel Laub.

Exemplares ou não
Marcus Soares analisa que o romance de formação se transformou durante a passagem do tempo. No século XVIII, ele explica, há um resultado mais positivo do percurso formativo, na medida em que o protagonista acaba se adaptando ao mundo, a despeito, ou mesmo por conta, dos percalços pelos quais passa. “Já no século XIX, o resultado é, ao contrário, expressão da própria negatividade, uma vez que o indivíduo, ao não se adaptar à realidade que o cerca, torna-se um ser melancólico ou misantropo”, comenta, acrescentando que, no século XX e contemporaneamente, há um certo niilismo existencial, no qual o percurso empreendido e a própria realidade deixam de fazer sentido.

Dialogando com Soares, Lourival Holanda afirma que a formatação da cultura mudou. O professor da UFPE percebe que, atualmente, o contexto é mais propositivo que impositivo. “Cada vida é um exemplar do possível, não necessariamente uma vida exemplar. Para o mercado livreiro, interessam tanto Bruna Surfistinha como Madre Teresa de Calcutá: são possibilidades”, afirma. De acordo com Holanda, o leitor contemporâneo tende a se enriquecer com as inúmeras e diversas leituras, ainda que pelo viés oblíquo da experiência do outro: “Tudo me é lícito, mas nem tudo é edificante, como se dizia antigamente: tudo é lícito [em literatura], cabe ao leitor eleger o que lhe parece ser elemento de sua formação, aquilo que vai ficar e edificar a sua personalidade social”.

Já Michel Laub observa que os romances de formação contemporâneos são diferentes das narrativas dos século XVIII e XIX — no mínimo — pelo fato de terem sido escritos depois. Laub aponta para um detalhe: quando um escritor contemporâneo utiliza um modelo clássico e o adapta ao seu tempo, ele se vale de outros elementos na composição do livro — caso contrário, vai apenas repetir o que já foi feito: “A mistura de gêneros e registros, por exemplo, que é bem mais comum hoje do que foi no passado, é um desses elementos”. Para exemplificar o que diz, o escritor cita O filho eterno, do Cristovão Tezza, definido por ele como uma espécie de Bildungsroman tardio. “Mas o livro não é só isso, tem vários outros procedimentos ali, como o do romance autobiográfico e até uma certa ironia com as narrativas de autoajuda. Porque, no fim, trata-se de um livro de antiautoajuda”, afirma.  

Autoficção ou não
Há dois autores contemporâneos intransponíveis quando se fala de romance de formação: o norueguês Karl Ove Knausgard e o brasileiro Michel Laub. “Ambos lidam com as trajetórias de formação de seus personagens, aproximando-se significativamente de suas próprias trajetórias pessoais enquanto indivíduos históricos”, comenta Marcus Soares. Knausgard escreveu uma série de seis romances autobiográficos chamada “Minha luta”, enquanto Laub é autor, entre outros títulos, de Diário da queda (2011), um romance de formação elogiado, entre outros, pelo autor norueguês: “Desde já um clássico”.

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O norueguês Karl Ove Knausgard escreveu uma série de seis narrativas ficcionais longas definidas como romances de formação.

Laub observa que ele e Knausgard usam, entre outros recursos, a primeira pessoa e alguns dados autobiográficos, mas o autor de Diário da queda não considera que esses elementos sejam centrais nos livros. “Até porque escrevi uns quatro ou cinco livros assim, e um conta uma história totalmente diferente da outra. Portanto, eu teria que ter quatro ou cinco histórias da minha vida, o que não é o caso”, comenta, pontuando que Knausgard cola as suas narrativas em eventos que ocorreram — “ou que ele diz que ocorreram com ele mesmo”. 

De acordo com Laub, é comum a um escritor fazer autoexames da própria vida. “Isso faz parte da personalidade de quem escreve — e vive examinando a vida dos outros. Então, escrever de modo autobiográfico é sempre algo que está à mão, uma tentação. E a narrativa de formação é uma boa moldura para isso”, acrescenta Laub.

Lourival Holanda não deixa de considerar A ilha da infância, o terceiro volume da série autobiográfica de Knausgard, um romance de formação — mas, para ele, Infância, de Graciliano Ramos, é mais contundente. Já Diário da queda, de Michel Laub — na avaliação de Holanda — é um texto maduro: “É fácil reconhecer no livro de Laub elementos do romance de formação. Surpreende pela aposta ganha: é um texto ousado e forte”.

Tomar a medida do mundo
Questionado a respeito dos limites entre romance de formação e autoficção, Michel Laub diz que, diferentemente dos livros que se voltam para fatos que formam uma identidade — geralmente transcorridos na infância e adolescência —, a autoficção pode ser uma obra sobre eventos ocorridos semana passada, com outros propósitos. “Mas todas essas classificações não são importantes, acho. Elas servem só para considerações acadêmicas”, opina Laub.

Lourival Holanda chama atenção para o fato de que um romance, inclusive o Bildungsroman, tem alguma liberdade por não estar, necessariamente, condicionado a fatos históricos: “Já a autoficção fica em regime de liberdade condicionada: deve manter a coerência temporal”. 

Marcus Soares afirma que a autoficcção pode ser entendida como uma estratégia que alguns escritores usam para se aproximar de outro gênero narrativo, a biografia. No entendimento do estudioso da Uerj, enquanto todo romance é ficcional, textos de autoficção não pertencem necessariamente ao gênero romanesco, “como seria o caso de muitos perfis construídos nas redes sociais, especialmente no Facebook”.

Independentemente desta questão, pontos de contato entre Bildungsroman e autoficção, Marcos Soares observa que o romance de aprendizado pode vir a ser uma porta de entrada para a leitura: “O mais importante, do ponto de vista do desenvolvimento intelectual, é a criação do hábito de leitura, independente do gênero utilizado”.

Michel Laub tem a impressão de que não há porta de entrada única para a leitura. “Se dá para falar em algo assim em termos mais universais, provavelmente falaríamos dos livros infantis que os pais leem para os bebês ou crianças pequenas, e esses poucas vezes são narrativas de formação”, comenta o sujeito que se tornou leitor, entre outros motivos, após conhecer Os meninos da rua Paulo — assunto mencionado no início desta reportagem.

Já Lourival Holanda pondera que uma narrativa que apresenta os fatos de uma vida pode atrair e até, por que não?, formar leitores: “Facilita ao leitor o espelhamento e a preciosa inteligência da curiosidade. Os mais jovens se veem vendo a vida alheia: é um modo de tomar a medida do mundo.”