Capa: Romance

Longe demais das capitais

Professores universitários afirmam que não existe uma “literatura paranaense” e que o reconhecimento dos romancistas que nasceram ou vivem no Paraná ainda depende do respaldo de vozes de outros Estados

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Há mais de dez anos, questionado a respeito de “como estava a literatura do Paraná”, o escritor curitibano Jamil Snege (1939-2003) respondeu — de maneira resumida — o seguinte: “Não existe literatura do Paraná. Já escutou alguém perguntando sobre a literatura paulistana ou carioca? Claro que não. O que existe é literatura produzida por pessoas e algumas dessas pessoas vivem no Paraná.”

A observação do Turco, como o escritor era conhecido e chamado pelos amigos, faz sentido e encontra ressonância hoje no professor de Literatura da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Venturelli e também no professor de Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Marcelo Franz.

“Enquanto for [literatura feita] no Paraná, tudo bem. O erro estaria em [dizer literatura] do Paraná, procurando entre nossos escritores algo específico daqui. Nossos autores são brasileiros e se inserem neste contexto maior, explorando o que vale de Norte a Sul”, afirma Venturelli, completando que “não existe um romance paranaense”.

Marcelo Franz diz não se entusiasmar com a definição de um “caráter” local para a criação de autores paranaenses, mas procura entender de onde isso surge. “O discurso em favor de uma literatura paranaense quer salientar que a expressão artística dos escritores do Estado seria a expansão de um ‘etos’ paranaense, que resulta de fatores como a nossa relação com o meio — o clima, a paisagem, etc. — com a constituição étnica dos paranaenses e com fatores históricos ligados à nossa colonização. Isso suscitaria e determinaria uma ‘voz’ própria”, argumenta o professor da PUCPR.

A conversa a respeito de uma possível literatura paranaense, nas palavras de Marcelo Franz, “soa muito século XIX”. “Lembremos que Wilson Martins tem um livro em que define o Paraná como “um Brasil diferente”, por ser um Estado constituído por elementos de meio, raça e socialização que o ‘particularizariam’”, completa Franz.

Subjetividades e idiossincrasias

Venturelli afirma que no Paraná, como em outros Estados, os escritores dão vazão à sua própria subjetividade, procuram caminhos pessoais para a criação e, quando escrevem, têm o seu projeto estético próprio sem qualquer ligação com outros [autores]. “Isto é natural, porque estamos na era da subjetividade e do individualismo e o romance é o gênero que mais se presta para expressar esta tendência social e, como ‘tudo’ pode ser romance, cada um aqui vai procurar suas fontes e seu ancoradouro, seja baseado em sua experiência de vida ou na imaginação pura e simples que, claro, não se descola dos processos sociais em que todos estão inseridos”, analisa. 

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Cezar Tridapalli, Carlos Machado,  Luiz Felipe Leprevost, Otto Winck e Guido Viaro. Cinco romancistas, cada qual com a sua sensibilidade e dicção peculiar.

Entre as várias longas narrativas ficcionais escritas por autores nascidos ou residentes no Paraná, Venturelli destaca A polaquinha [que também pode ser lido como um conjunto de contos], de Dalton Trevisan, “pelo diálogo sarcástico e irônico com A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo”; Uma noite em Curitiba, de Cristovão Tezza, “pela força do personagem que se vê envolvido nas mais inusitadas situações e consegue ir abrindo um caminho a machadadas”; Terra Vermelha, do Domingos Pellegrini, “pela força da pesquisa histórica”, O livro do medo, de Guido Viaro “pela força na prospecção dos personagens”; E se contorce igual a um dragãozinho ferido, de Luiz Felipe Leprevost, “pela linguagem coloquial e malandra e marginal que dá um sabor todo especial ao texto” e Para que as árvores não tombem de pé, de Maria Célia Martirani, “pela imagética e um certo sabor niilista do discurso romanesco”.

Franz acrescenta, à lista de Venturelli, Rocha Pombo — “precursor, contemporâneo dos simbolistas, que escreveu o esquisitíssimo No hospício no começo do século XX”, Jamil Snege, Miguel Sanches Neto, Paulo Sandrini e Paulo Leminski, com Catatau — o mais universal dos “nossos” textos romanescos. Além
deles, outras vozes também se afirmam como romancistas, entre os quais Fábio Campana (O guardador de fantasmas e Ai), Otto Leopoldo Winck (Jaboc), Cezar Tridapalli (Pequena biografia de desejos), Carlos Machado (Poeira fria) e Luci Collin (Com que se pode jogar).

Escritor e recém-integrante da Academia Paranaense de Letras, Venturelli observa que, entre as possíveis lacunas da longa narrativa ficcional produzida por autores que nasceram e/ou vivem no Estado, falta alguém abordar o mundo gay. “Por isto, estou me encarregando do tema”, anuncia. Ele diz ter realizado pesquisa detalhada sobre a vida noturna em Curitiba, com resultados surpreendentes. “Descobri uma outra cidade, um outro mundo que ninguém quer ver ou joga para o gueto. A população gay em Curitiba é imensa e tem marcas culturais sui generis, seus locais de encontro, suas formas de namorar, seus bares, suas boates”, comenta.

O futuro projeto de Venturelli tem possibilidades de encontrar ressonância, entre outros motivos, pelo ineditismo do tema. No entanto, o professor da PUCPR diz, não sem algum lamento, que o conhecimento dos autores locais pelo público local tem dependido — e sempre dependeu — da chancela que eles recebem da “inteligência” de fora do Paraná. “Em geral, é só quando outros centros reconhecem — com justiça ou não — os nossos autores que, ‘do nada’, reparamos que são bons e passamos a amá-los”, finaliza — e o exemplo de Cristovão Tezza, consagrado nacionalmente com O filho eterno (2007), após décadas escrevendo e publicando romances, comprova a tese de Marcelo Franz.