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Resistência nos pinherais

A insatisfação contra o regime que se instaurava impulsionou uma série de jovens paranaenses a escrever obras literárias que ainda precisam ser lidas e estudadas, uma vez que radiografam os anos de chumbo a partir de sensibilidades incomuns


Thaís Reis Oliveira

O período mais conturbado da história nacional recente não poderia passar despercebido pelos ficcionistas brasileiros. No Paraná, não foi diferente: a literatura feita no estado guarda uma afinidade pouco explorada com os anos de repressão. O golpe de abril de 1964 uniu jovens escritores em torno de um objetivo comum: demonstrar sua insatisfação contra o regime que se instaurava. Figuras importantes da cultura paranaense como Jamil Snege, Fábio Campana, Walmor Marcellino, Sylvio Back, Nelson Padrella e Domingos Pellegrini foram contagiados pelo zeitgeist da época.

Kraw Penas

Foto: Kraw Penas

Para o pesquisador Marcelo Franz, professor de Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), é importante ressaltar a diferença de propostas estéticas de cada autor. “Se algo os aproxima é a vivência radical do clima de questionamento da repressão da qual eles chegaram — em tons diferentes — a ser vítimas”, completa. Entre as obras publicadas na época, Marcelo Franz destaca Tempo sujo (1968), de Jamil Snege. “É um livro interessante do ponto de vista formal pelo que a voz narrativa reflete e nos leva a refletir. É de um engajamento ‘chic’, não dogmático ou ingênuo”, pontua.

O sete da discórdia

Sete de Amor
Foi lançado em Curitiba o primeiro livro de ficção contra o golpe publicado no Brasil, a coletânea de contos 7 de amor & violência (1965). A primeira edição do livro era envolta por uma tarja preta que trazia a frase, assinada pelo crítico literário e contista Hélio Pólvora: “A primeira experiência ficcional que toma a ‘revolução’ (vai mesmo entre aspas, porque não se entende revolução sem povo) como pano de fundo, mostrando como ela repercutiu na palhoça do camponês esquecido e como reagiram os jovens angustiados de uma grande cidade”. O livro reunia escritos de Elias Farah, Nelson Padrella, Sylvio Back, Valêncio Xavier e Walmor Marcellino, então jovens rapazes se iniciando na literatura. “Víamos tanta estupidez, tanta burrice, que precisávamos ser contra. A idiotice não era escondida como é hoje”, relembra Padrella, que nos anos depois lançaria o livro Meu Bim-Bim com o pseudônimo de Franz Hertel. O livro já tinha vendido 1.500 exemplares — número notável para a época — quando foi apreendido pela Delegacia de Ordem Política e Social (Dops). O departamento também interditou uma segunda tiragem do livro, que só foi reeditado vinte anos depois pela Criar Edições, de Roberto Gomes.

Jornalista e poeta, Walmor Marcellino foi a voz local mais marcante na luta contra o regime. O autor de Malvas, fráguas e maçanilhas (1994) era partidário de uma militância definida. Para o escritor e crítico literário Miguel Sanches Neto, “as duas forças que movem a poesia de Marcellino são a experiência pessoal e a experiência coletiva. É do atrito entre elas que brota uma poética em que a memória assume um papel de relevância”. O exemplo mais prolífico da presença da ditadura na ficção paranaense está nos livros de Fábio Campana. Embora seja mais conhecido como editor e jornalista, Campana tem uma extensa obra na qual as memórias da repressão são peças-chave na construção narrativa. A obra mais destacada de Campana é o romance O guardador de fantasmas (1996) que, segundo análise do escritor e professor de literatura da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Venturelli, “faz um mergulho no projeto revolucionário que não desfez o oco interior do personagem”. Entre outros livros do autor, estão Restos mortais (1978), No campo do inimigo (1981), Paraíso em chamas (1994, reeditado em 2013) e Ai (2007).

Um dos mais premiados autores paranaenses, Domigos Pellegrini também retratou a repressão em algumas de suas obras. O londrinense esteve envolvido no combate à ditadura na cidade, como evidente no seu livro de estreia O homem vermelho (1977). O conto emblemático dessa fase de Pellegrini é “O encalhe dos 300”, no qual uma crise rodoviária serve como metáfora sobre a falta de investimento no interior do Paraná. Recentemente, o autor revisitou os tempos de ditadura no romance memorialista Herança de Maria (2011), uma de suas obras mais recentes.

A jornalista, escritora e ativista ambiental Teresa Urban (1946-2013) foi uma das figuras mais atuantes no ativismo paranaense. Em meio ao seu legado, ela deixou um relato sobre a ditadura impresso nas páginas de 1968 Ditadura Abaixo (2009), graphic novel escrita em parceria com o quadrinista e ilustrador Guilherme Caldas. A obra revisita o passado por meio de recorte de jornais, anúncios publicitários, letras de canções e reproduções de fichas do Dops, onde Teresa foi fichada por “subversão”. Apesar de não ter problematizado direta e frontalmente os anos de chumbo, o contista Dalton Trevisan não passou incólume pela tesoura da ditadura. O vampiro teve seu conto “Mister Curitiba”, vencedor do concurso de contos eróticos da revista Status, censurado pelo regime em 1976. O decreto-lei 1077, de 26 de janeiro de 1970, que instituiu a censura prévia no Brasil, previa como passíveis de censura os livros que ofendiam a moral comum e que podiam “destruir a base moral da sociedade”.

Segundo Marcelo Franz, a censura da expressão de pensamento se baseia na leitura superficial do discurso, mas podem haver outras formas de censura, como a restrição dos próprios meios de divulgação. O pesquisador cita o exemplo da ascensão da poesia marginal nos anos 1970 — que tinha entre seus adeptos poetas como Paulo Leminski e Alice Ruiz — como uma forma que os artistas encontraram para contornar as restrições que o mercado editoral impunha na época: “A chamada ‘poesia marginal’ é um conjunto de buscas por alternativa (não só nas atitudes, mas também nos meios de expressão) a um quadro em que as editoras não estavam permeáveis a novas propostas, restando aos artistas criar de modo artesanal”.

Escrever para curar

Campana
Mais do que relatar, a literatura, muitas vezes, tem a função de remediar traumas do passado. “Há, da parte dos autores, uma tendência a fazerem uso da alegoria e do fantástico como meios de refletirem a situação em que se encontrava o intelectual (e o ativista político) desse tempo. A experiência do trauma é expressa num discurso que revela as dimensões da fragmentação, do desconsolo e da resistência face ao que a realidade impunha”, pontua Marcelo Franz. “Ao invés de armas, usávamos tudo o tínhamos na época, as palavras”, comenta o artista plástico e escritor Nelson Padrella.

Para Fábio Campana, a literatura não acaba com o sofrimento, “mas permite que você o expresse e consiga encará- lo, que passe e compreendê-lo melhor”. O envolvimento do autor com a política começou ainda na adolescência, em Foz do Iguaçu. Anos mais tarde, Campana esteve na luta armada e foi detido e torturado na Base Naval da Ilha das Flores. “Fiquei por muito anos sem conseguir falar sobre minha época de prisão”, conta.

Franz analisa que, em uma época de reclusão como a dos anos de chumbo da ditadura, a introspecção tende a aumentar e a atitude de contestação fica menos política e mais comportamental. “A ‘libertação’ é uma busca da consciência individual e os direitos que se reivindica — sem se seguir a cartilha de uma opção partidária – são os da satisfação pessoal com respeito às individualidades. É mais existencial, contracultural... e tão contestadora como a da luta contra a repressão política”, finaliza o estudioso da PUC-PR.