Capa | Imaginação utópica

Utopia nas vanguardas 

A imaginação idealista dos filósofos (Platão, Thomas More e outros) e dos visionários sociopolíticos (Robert Owen, Étienne Cabet e outros) também fecundou artistas e escritores transgressores, gerando os projetos utópicos batizados de vanguardas artísticas e literárias

Nelson de Oliveira

Romantismo
No final do século XIII, a mesma força reformadora que gerou a Revolução Francesa deu à luz o poderoso movimento romântico, que dominou a maior parte do século XIX. Byron, Goethe, Beethoven, Hugo, Delacroix, Wagner, Leopardi, Garrett… Mais de uma centena de grandes escritores, músicos e pintores idealizaram uma realidade fantástica, em que a razão e o equilíbrio luminosos recuaram diante da emoção e do desequilíbrio sombrios. Era a utopia da natureza subjetiva, povoada por anjos demoníacos e demônios angelicais.

Simbolismo
Certa liberdade poética me permite reunir as muitas tradições antipositivistas e anticientificistas — incluindo o barroco e o maneirismo — numa única grande utopia da natureza subjetiva. Não era a valorização de nosso EU mais profundo, não-racional, exatamente o que os visionários do simbolismo também promoviam? A sinestesia erótica, satânica, alucinógena de Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Cruz e Sousa e outros demiurgos revelaram que a grande Arte é uma multiplicidade mística de paraísos artificiais.

Futurismo
Seguindo outra orientação ideológica, exaltando o desenvolvimento tecnológico e industrial, Filippo Marinetti inaugurou em 1909 o vasto movimento futurista. Celebremos a eletricidade, louvemos a velocidade! Essa utopia internacional, capitaneada por Marinetti, Umberto Boccioni, Carlo Carrá, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade, entre outros profetas da técnica e da máquina, produziu obras de arte e também manifestos, muitos manifestos, sancionando para todo o século XX essa forma passional de expressão.

Modernismo de 22
Entre nós, o movimento mais eloquente foi a algazarra iniciada com a Semana de Arte Moderna. O escandaloso coletivo que organizou a Semana ora convergia divergindo ora divergia convergindo, mais tarde promovendo rupturas artísticas e literárias no país todo. Rupturas quase sempre contrastantes: umas nacionalistas, outras futuristas, umas regionalistas, outras ufanistas etc. A principal utopia desse desbunde libertário foi expressa no Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade, lançado em 1928. Sua divisa era: “Só a antropofagia no une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”

Geração beat
Bem menos programática e bem mais relaxada foi a boemia beat, forte nos anos 1950, embrião do movimento hippie. Pense numa ilha abastecida de drogas e álcool, riscada por estradas em que transitavam vagabundos e viciados, iluminada por bares e espeluncas onde escritores sem grana misturavam a poesia do jazz e a metapoesia do budismo, e você estará pensando na Utopia de Allen Ginsberg, William Burroughs, Jack Kerouac e outros famigerados beatniks.

Dadaísmo
Liderados por Tristan Tzara, Hugo Ball e Hans Arp, o iconoclasta movimento dadá surgiu em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial. Os terroristas culturais do Cabaret Voltaire botaram fogo no circo das artes, explodiram ultrapassadas poéticas e a própria estética. “A beleza está morta” era a palavra-de-ordem de sua utopia negativa, enquanto a Europa ardia em chamas.

Surrealismo
Fundado em 1924, esse é o mais revolucionário movimento de vanguarda desde o romantismo. Propondo nada mais nada menos do que a transformação da humanidade inteira, os manifestos de André Breton e a infinita obra de centenas de visionários harmonizaram o inconsciente freudiano e o comunismo marxista, as tradições esotéricas e o primitivismo criativo das sociedades não-civilizadas. A utopia surrealista não deixou de fora sequer o macrocosmo. Uma das projeções mais belas de todo o século XX foi o novo mito dos Grandes Transparentes, oferecido nas noções preliminares do Terceiro Manifesto do Surrealismo.

Concretismo
No Brasil, se o tropicalismo foi o movimento pop mais importante da segunda metade do século XX, o concretismo foi o movimento erudito mais radical e impactante. Capitaneada por Augusto e Haroldo de Campos e Decio Pignatari, a república utópica concretista mandou pra guilhotina o verso e os versejadores, elegendo a palavra plena — som, sentido e design — a unidade do poema. Também mandou pra guilhotina a música sentimental e a pintura figurativa, elegendo a geometria sonora e visual a quintessência do novo Estado artístico. Racionalista e matemático, o concretismo foi a nêmese do surrealismo e da geração de 45.