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Irmandade marginal
(a contragosto)
Na era tecnológica em que vivemos, sobre o que os escritores de ficção científica brasileira estão escrevendo? Luiz Bras reflete sobre a produção atual em um dos gêneros mais profícuos da nossa literatura — mas que permanece à margem do mercado
O que mais me fascina na contemporânea ficção científica — ou ficção futurista, se preferir — é a maneira como seu sistema de crenças e desejos está sendo invadido sem dó pela atual realidade científica e tecnológica, e reagindo criativamente a ela. Muitos contos e romances de FC contemporâneos conseguem ser mais realistas do que a própria literatura realista.
Durante aproximadamente quatro bilhões de anos a seleção natural — um dos mecanismos básicos da evolução — moldou aleatoriamente a vida na Terra. Até onde sabemos, os seres humanos são as criaturas mais inteligentes que a seleção natural produziu. Mas parece que logo seremos superados.
Foto: Kraw Penas
Escritor que participou da chamada Primeira Onda da ficção científica brasileira, André Carneiro é autor de livros que flertam com o existencialismo.
Em diversos centros de pesquisa do planeta, cientistas e engenheiros estão construindo programas de computador cada vez mais sofisticados. São criações artificias — nada aleatórias — que imitam os complexos processos mentais humanos. Jogam xadrez muito bem, compõem música e escrevem poesia de qualidade. Mas ainda não dá pra dizer que são criaturas realmente inteligentes. Até agora.
Na velocidade que a ciência da computação está avançando, espera-se para breve o surgimento de uma inteligência artificial realmente mais inteligente que o mais inteligente dos seres humanos, capaz de nos superar até na criação artística e literária.
Quando isso acontecer, vamos sentir o mesmo assombro e a mesma melancolia que o cansado Homo erectus sentiu, num ponto qualquer da Ásia, ao ver as acrobacias mentais do serelepe Homo sapiens.
Stephen Hawking, um dos cientistas mais icônicos do planeta, que morreu mês passado, e Elon Musk, o empresário mais visionário do sistema solar, sempre foram unânimes: quando surgir, a inteligência artificial será a ruína da espécie humana.
Será que Arnold Schwarzenegger viajará no tempo como um exterminador do futuro, a mando da Skynet? Pausa dramática.
Revolução pós-humana
A esperança da humanidade pode estar em outra linha de investigação igualmente promissora: a bioengenharia. Em diversos centros de pesquisa, geneticistas estão mapeando e manipulando nosso código biológico, a fim de nos aperfeiçoar física e mentalmente.
O objetivo é eliminar as doenças, fortalecer o corpo, potencializar a inteligência e aumentar nossa expectativa de vida saudável. O cultivo de órgãos artificiais e o uso de nanotecnologia e drogas cognitivas também fazem parte do cardápio dessa terapia da juventude duradoura.
A conexão cérebro-computador, que permite que paraplégicos e tetraplégicos movam com o pensamento membros eletrônicos e até exoesqueletos, será mais uma arma poderosa do arsenal reunido contra o envelhecimento e a morte. É nesse momento que a engenharia biocibernética e a inteligência artificial unirão forças.
Seremos todos ciborgues e viveremos mil anos ou mais.
Todos nós? É melhor esperar sentado…
Apenas a pequena fatia endinheirada de nossa sociedade conseguirá pagar pelo caríssimo aperfeiçoamento fisiológico e tecnológico. A elite de bilionários dará início a um ramo de super-humanos avançados, enquanto nós… Nós continuaremos sendo nós mesmos.
Desde a obra fundadora de Mary Shelley, Frankenstein ou O moderno Prometeu, lançada em 1818, a ficção futurista — ou ficção científica, se preferir — vem apresentando uma infinidade de criaturas híbridas sempre em busca de mais vida, mais força, mais inteligência. Agora é a realidade que está tentando realizar o que antes só a religião e a ficção ousavam propor: longevidade sem data de validade.
Tríade nada trivial
É certo que a vida sem data pra acabar nunca foi uma exclusividade da ficção científica ou da tecnociência. Muito próximas dos mitos religiosos, também a ficção fantástica e a ficção sobrenatural trataram incontáveis vezes desse tema. Basta lembrar que uma das primeiras obras conhecidas da literatura mundial, a Epopeia de Gilgamesh, do século XII antes de Cristo, fala da busca pela imortalidade.
A ficção fantástica, a ficção sobrenatural e a ficção científica são gêneros literários aparentados, que lidam com nossos anseios às vezes conflitantes de permanência e transcendência. A causalidade, a força da gravidade, a biologia, a geologia, a atmosfera — enfim, as regras gerais que conhecemos e seguimos em nosso mundo — ou funcionam total ou parcialmente de modo estranho (ficção fantástica) ou podem ser subvertidas total ou parcialmente por meio da magia ou da tecnologia (ficção sobrenatural e ficção científica).
Jeronymo Monteiro é considerado pelos especialistas o pai da ficção científica brasileira. Em sua homenagem, em 11 de dezembro é celebrado o Dia da Ficção Científica Brasileira.
Na história literária brasileira, nossa ficção fantástica e nossa ficção sobrenatural conquistaram prestígio institucional e reconhecimento público graças a Murilo Rubião, José J. Veiga, Álvares de Azevedo, Mário de Andrade, Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles, Erico Verissimo, Lygia Bojunga e Jorge Miguel Marinho, entre outros.
Nossa ficção científica, no entanto, continua praticamente invisível, apesar do gigantesco número de contistas e romancistas talentosos que se dedicaram e se dedicam ao gênero. Qual a razão desse preconceito? Não faço ideia. Um mistério ainda pouco compreendido é por que o leitor brasileiro não prestigia a inquietante FC brasileira.
Estranhos no paraíso artificial
A necessidade historiográfica, sempre cartesiana, divide em quatro fases a história da ficção científica na terra brasilis. Na primeira fase, iniciada no final do século XIX, não existe propriamente um movimento coordenado, mas obras esporádicas, em que a preocupação com questões científicas e tecnológicas tem papel central.
Publicado em 1875, o romance de ideias O doutor Benignus, do português-brasileiro Augusto Emílio Zaluar, é a primeira obra de ficção científica escrita no Brasil. Essa narrativa inaugural, inspirada em parte nas ficções de Jules Verne, conta as aventuras de um médico-cientista e sua comitiva, pelo interior selvagem do Brasil. O ponto alto da viagem do doutor Benignus é o encontro com o representante de uma avançada civilização alienígena, vindo do Sol.
Publicado pela primeira vez em 1875, o romance de ideias O doutor Benignus, do português brasileiro Augusto Emílio Zaluar, é a primeira obra de ficção científica escrita no Brasil.
De 1875 a meados do século XX — do final do Império ao início da nossa gloriosa República —, um punhado de autores começa a esboçar o mapa da ficção futurista brasileira: Afonso Schmidt, com a novela Zanzalá; Albino Coutinho, com o romance A liga dos planetas; Emília Freitas, com o romance A rainha do Ignoto (primeiro romance de FC publicado por uma brasileira); Gastão Cruls, com o romance A Amazônia misteriosa; Lima Barreto, com os contos “Congresso pamplanetário” e “A nova Califórnia”; Machado de Assis, com o conto “O imortal”; Menotti del Picchia, com o romance A república 3000 ou A filha do inca, e Monteiro Lobato, com o romance O choque das raças ou O presidente negro, entre outros.
Pela fidelidade ao gênero, dois ficcionistas surgidos nesse período merecem destaque: Berilo Neves, autor de três coletâneas de contos que obtiveram certo sucesso comercial — A costela de Adão, A mulher e o diabo e Contos do século 21 —, e Jeronymo Monteiro, incansável autor, editor e divulgador da ficção futurista entre nós. Seus romances Três meses no século 81 e Fuga para parte alguma e a reunião de contos Tangentes da realidade são referências obrigatórias.
Nascido no dia 11 de dezembro de 1908, Jeronymo Monteiro é considerado pelos especialistas o pai da Ficção Científica Brasileira. Em sua homenagem, no dia 11 de dezembro é celebrado o Dia da Ficção Científica Brasileira. Esses foram os pioneiros que prepararam o terreno para a expansão da Primeira Onda, ocorrida nos anos 1960 e 1970. Nessa época, nossos autores encontram principalmente nas Edições GRD, de Gumercindo Rocha Dorea, e na EdArt, de Álvaro Malheiros, uma plataforma ampla e sólida, para constantes lançamentos.
Os ficcionistas da Primeira Onda que mais se destacam, com uma prosa menos estilizada, mais subjetiva e existencialista, são André Carneiro (Diário da nave perdida e O homem que adivinhava, contos), Dinah Silveira de Queiroz (Eles herdarão a Terra e Comba Malina, contos), Fausto Cunha (As noites marcianas e O dia da nuvem, contos), Levy Menezes (O terceiro planeta, contos), Mauro Chaves (Adaptação do funcionário Ruam, romance) e Rubens Teixeira Scavone (O homem que viu o disco-voador, romance, e Degrau para as estrelas, contos). Todos esses livros estão fora de catálogo há décadas.
Foto: Reprodução
A ficção fantástica e a ficção sobrenatural brasileira conquistaram prestígio institucional e reconhecimento público graças a autores como Murilo Rubião (à esquerda) e José J. Veiga
Pindorama tecnopunk
A passagem da Primeira para a Segunda Onda é bastante difusa. Essa transição geracional ocorre ao longo dos anos 1980. Ainda temos a rabeira da Ditadura Militar, mas também temos, nas livrarias, na tevê e nas salas de cinema, o melhor da FC do hemisfério norte.
A comunidade de fãs, chamada fandom (diminutivo da expressão fan kingdom), está crescendo. Fanzines começam a circular, espalhando não apenas resenhas e artigos sobre a FC internacional (literatura e cinema), mas também ficções brasileiras. A editora Record, uma das maiores do país, passa a publicar aqui a Isaac Asimov Magazine.
Uma das edições da revista Isaac Asimov Magazine, publicada no Brasil pela editora Record
A produção se diversifica. Começam a surgir contos, novelas e romances mais maduros e ambiciosos. Menos presos aos estereótipos da velha guarda anglófona. O espectro de possibilidades narrativas, antes muito restrito ao formato clássico, já não descarta tão rápido a fragmentação, o fluxo de consciência, o nonsense, o anticlímax, enfim, as experimentações modernas e pós-modernas.
Cresce sensivelmente o número de autores talentosos que se dedicam exclusivamente à ficção científica. As principais referências da Segunda Onda são Alfredo Sirkis, Ataíde Tartari, Carlos Orsi, Fabio Fernandes, Finisia Fideli, Gerson Lodi-Ribeiro, Guilherme Kujawski, Ivan Carlos Regina, Ivanir Calado, Jorge Luiz Calife, Lucio Manfredi, Octavio Aragão e Roberto de Sousa Causo, entre muitos, muitos outros, exercitando os mais diferentes subgêneros da ficção científica (veja o quadro na página 26).
Braulio Tavares, Fausto Fawcett e Guilherme Kujawski, filhos legítimos da Segunda Onda, publicam A espinha dorsal da memória (Braulio, contos), Santa Clara Poltergeist (Fausto, romance), e Piritas siderais (Guilherme, romance), três obras-primas da literatura brasileira, que muito me influenciaram.
Outra importante obra da FC brasuca dessa época é a badalada distopia de Ignácio de Loyola Brandão, Não verás país nenhum. Surgido fora do círculo do fandom, esse romance conseguiu escapar da invisibilidade que praticamente anula nossa ficção científica para o grande público.
Em 1985 é inaugurado em São Paulo o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC). Essa iniciativa institucional reúne um grande número de autores e aficionados. A bem-vinda convergência traduz-se em uma nova expansão da FC brasuca. Os sócios-militantes promovem encontros, mostras e debates — quase sempre acalorados —, e colaboram com o fanzine Somnium, boletim oficial do clube.
Fantasmas na máquina
Iniciada no final dos anos 1990, a Terceira Onda é a que estamos vivendo, desdobrando, espalhando, repercutindo… Nunca se escreveu e publicou tanta ficção futurista no Brasil. Mesmo assim, a dimensão dessa agitação não parece compatível com o baixo interesse das livrarias, da crítica jornalística, das festas e dos prêmios literários, das grandes editoras e dos leitores.
Isso certamente é reflexo de nosso proverbial complexo de vira-lata. O leitor brasileiro não prestigia o escritor brasileiro, principalmente quando o assunto é a nossa ficção científica. Noto essa indisposição nos blogues e até nos debates sobre FC. Autores estrangeiros são mencionados e recomendados aos montes, até mesmo por autores brasileiros que quase não leem seus pares e pouco conhecem a história do gênero no Brasil.
Apesar disso, a Terceira Onda avança. Devagar, mas avança. Cresce exponencialmente o número de autores talentosos. A web é seu ambiente natural e o e-book, uma forma barata de publicação. Investem em revistas eletrônicas, reúnem-se em pequenas editoras, organizam coletâneas e antologias (de papel ou eletrônicas).
Surge o Anuário Brasileiro de Ficção Fantástica, de Cesar Silva e Marcello Simão Branco, com o objetivo de mapear as três ficções brasucas: científica, fantástica e sobrenatural.
A pesquisa acadêmica brasileira, quase sempre avessa ao contemporâneo, também começa a prestar mais atenção a esse gênero tão controverso. Graças à chegada de jovens pesquisadores, é claro. Entre eles os rigorosos Ramiro Giroldo (UFMS), que estuda a fundo a obra de André Carneiro (mestrado) e Fausto Cunha (doutorado), e Rodolfo Londero (UFSM/Unicentro), pesquisador da ficção ciberpunk e da literatura pós-moderna brasileiras.
Vários escritores ingressam nos programas de pós- -graduação, ampliando esse time.
Nos Estados Unidos, também a brasilianista norte-americana M. Elizabeth Ginway tem se dedicado a analisar nosso cenário tupiniquim.
Uma lista dos autores que formam e propagam a Terceira Onda jamais poderia deixar de fora Alexey Dodsworth, Aline Valek, Alliah, Ana Cristina Rodrigues, Antonio Luiz M. C. Costa, Brontops Baruq, Cirilo Lemos, Clinton Davisson, Cristina Lasaitis, Daniel Borba, Edson Aran, Enéias Tavares, Fabio Kabral, Giovanna Picillo, Hugo Vera, Ivan Hegen, Lady Sybylla, Larissa Caruso, Leandro Dupré Cardoso, Lidia Zuin, Marcelo Augusto Galvão, Márcia Olivieri, Maria Helena Bandeira, Miguel Carqueija, Mustafá Ali Kanso, Romeu Martins, Ronaldo Bressane, Santiago Santos, Sid Castro e Tibor Moricz. Mas essa lista está longe de ser completa. Há outros guerrilheiros, muitos outros.
Foto: Divulgação
Fausto Fawcett, autor da ficção Santa Clara Poltergeist
Luta amada
No Brasil, a verdadeira literatura marginal é a ficção científica. Visite uma livraria, compre ingressos para a Flip, observe as listas do Jabuti e do Prêmio Oceanos e me diga se não é a FCB que está à margem da margem do nosso mercado editorial.
Enquanto isso, nossa literatura mainstream, presa a um aqui-agora meio antiquado e subdesenvolvido, continua ignorando a iminente revolução pós-humana noticiada no início deste artigo.
Então, seja marginal, seja herói. Prestigie a FC brasuca. Há subgêneros pra todos os gostos e sensibilidades. Desperte o ciborgue geneticamente aperfeiçoado que há em você e comece a ler hoje mesmo um dos livros resenhados, por exemplo, no blogue colaborativo Ficção Científica Brasileira (ficcaocientificabrasileira.wordpress.com).
Luiz Bras é coordenador do Ateliê Escrevendo o Futuro e autor das novelas Anacrônicos e Não chore, da rapsódia Distrito federal, do romance Sozinho no deserto extremo e das coletâneas de contos Máquina Macunaíma e Paraíso líquido.