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Divergência como marca

Fragmentada e com uma atração brutal pelo cotidiano, a geração de poetas surgida nos anos 2000 tenta juntar um “século em cacos”, nas palavras de José Castello. Neste breve ensaio, o crítico aponta as principais vozes da nova safra de poetas brasileiros

José Castello

A poesia brasileira já não tem mais a feição compacta e o esplendor que notabilizaram os grandes navegantes do século XX. Drummond, Bandeira, Vinicius, Cabral, Cecília, Schmidt, Murilo — quem ainda pode sonhar com esse time impecável? Uma inspirada geração intermediária, porém, se dedicou a costurar os dois séculos. Nela se destacam Manoel de Barros e Hilda Hilst, já falecidos. Ela nos deixa, hoje, poetas — de idades diversas e vozes ainda mais distintas — do peso de Adélia Prado, Antonio Carlos Secchin, Nelson Ascher, Antonio Cícero, Armando Freitas Filho, Chacal e alguns grandes bissextos como Silviano Santiago. Todos ativos e em plena forma. Poetas que, cada um do seu modo, descerraram as portas de entrada do século XXI. E que continuam a caminhar, com firmeza, à nossa frente.

Fazendo a ponte entre os dois séculos, veio a afirmação de um quarteto: Paulo Henriques Britto, Nuno Ramos, Eucanaã Ferraz e Alberto Martins surgiram para confirmar que a poesia brasileira continua densa e inventiva. Nascidos (com exceção de Britto, o mais velho) em torno dos anos 1960, eles chegaram ao século XXI em plena maturidade. Prontos para dirigir a nova caminhada. São quatro grandes poetas maduros, donos de si e de voz inconfundível. Juntos, empurraram a porta do novo século.

            Foto: Rodrigo Valente
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Para o escritor José Castello, Ana Martins Marques é “a maior poeta da nova geração”.

 Há nesse quarteto, antes de tudo, a afirmação de um elo essencial entre poesia e risco. Paulo Henriques Britto, no já clássico Macau, diz: “O dia levanta a cabeça/ num gargarejo fatal:/ a tarde lhe rasga a carótida./ Noite”. A poesia nos defronta não só com o perigo, mas com a passagem cada vez mais acelerada e louca do tempo. O século XXI é voraz e não se pode fazer poesia sem nela incluir essa voracidade ou, pelo menos, o medo de que ela venha a nos dominar. Nesse novo tempo, é preciso ser rápido e sincronizar com a mudança: “Também os anjos mudam de poleiro/ de vez em quando, se rareia o alpiste/ indeglutível que é seu alimento”, diz Britto em outro poema. Vivemos o nascer de um século que atravessamos aos tropeções, o peito ofegante, um século que, a todo momento, nos empurra e ameaça nos esquecer.

Estamos todos “em trânsito”, como nos avisa Alberto Martins em seu livro mais brilhante. Nada mais é fixo. Nesse cenário, o poema se torna um veículo. “Usuário/ que neste mundo engarrafado/ usa o poema/ como meio de transporte”. Enquanto isso, “em cima da mesa/ muitas coisas permanecem/ inconclusas”. Lá se foi o tempo do bom acabamento, do fecho impecável, da face definitiva. A poesia, agora, é estridente e instável como a vida. Resta ao poeta, para além de todas as escolas e de todas as estéticas, contentar-se com o agora. Em Escuta, Eucanaã Ferraz escreve: “Se tudo te parece frágil é verdade é frágil tudo;/ mas venho te dizer que tudo permanecerá vivo/ nesta hora em que te digo agora”. A precariedade do agora se torna, assim, um elemento decisivo da nova poética.

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A paulistana Annita Costa Malufe é autora dos livros de poemas Quando não estou por perto (2012) e Um caderno para coisas práticas (2016). 

Novos caminhos
Agora, ainda mal acostumados ao novo milênio, chegamos a um tempo de frágeis experimentos e de tentativas — ideia muito bem expressa em Tente entender o que tento dizer, antologia organizada este ano por Ramon Nunes Mello para a editora Bazar do Tempo, do Rio de Janeiro. Livro que se torna uma espécie de síntese — incompleta, certamente, mas vital — da nova era. Espécie de guia e mapa do que já começou a chegar. Uma lanterna — a que devemos, aqui, nos apegar com coragem. Antologia que repete, um pouco, os passos dos 26 poetas hoje, coletânea dedicada à “poesia marginal” que Heloisa Buarque de Hollanda organizou em 1975. Só que agora eles já não são 26, mas 96. A poesia e os poetas se multiplicam.

O título, que parece arrancado do poema “[Tente entender:]”, de Letícia Brito, mas talvez também de “Tente passar pelo que estou passando”, de Heyk Pimenta — dois nomes a não esquecer —, sintetiza, com impressionante lucidez, o impasse, mas também a energia de um tempo no qual o outro, a alteridade e a diferença se impõem como as grandes questões. Na verdade, sua origem está em uma epígrafe tomada de empréstimo a Caio Fernando Abreu: “Então, serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas, por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer” (da crônica “Primeira carta para além dos muros”, publicada em O Estado de S. Paulo em 21 de agosto de 1994, seis anos antes do novo século, que Caio não chegaria a viver). Naquele momento, Caio F. começava a ter coragem de falar publicamente a respeito de sua experiência com a Aids, que o mataria pouco depois. 

A chave, é evidente, se esconde no verbo “tentar”. Nosso século ainda não tomou corpo, ao contrário, apresenta uma face bastante obscura. É um século que ainda não nasceu de todo e que apenas balbucia. Ainda assim, é preciso seguir em frente e, aos poetas, cabe continuar a escrever, sem temores, se ceder às dúvidas, sem esmorecer. Por em execução, empreender, começar — o dicionário aqui me ajuda. Tentar falar, portanto, de um começo, ainda impreciso, ainda inseguro, muito pouco dono de si, mas que, ainda assim avança. Há uma nova poesia que, ainda que vacilante, se desenrola e se afirma.

Há, também, uma mensagem que ficou inacabada, que se interrompeu abruptamente: a de Rodrigo de Souza Leão (1965-2009). Em suas palavras talvez possamos encontrar (ainda que obscura) alguma pista. “Não há nada que o sol não revele/ principalmente hoje/ quando a neve fecunda o óvulo negro/ do asfalto/ e dessa combinação/ surge o óbvio” — ele nos diz na décima “Elegia ao nada”. Rodrigo escreveu e morreu em busca dessa claridade solar que a tudo resolvesse, ainda que a tudo dissolvesse em nada também. Porque o óbvio é nada — é pura repetição. A mensagem inacabada que ele nos deixa diz isso: o óbvio nos espreita logo ali à frente e precisamos saber dele nos desviar, ou seremos esmagados. Foi o que Rodrigo fez o tempo todo.

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O poeta Paulo Henriques Britto, nascido nos anos 1950, é uma das vozes mais importantes da poesia brasileira hoje. Em 2018 lançou sua mais recente coletânea de poemas, Nenhum mistério.

Impasse
A coletânea organizada por Ramon Nunes Mello traz um tema de fundo: “Poesia + HIV/ AIDS”. Carrega em seu interior, portanto, o perigo da contaminação. O contágio é, de fato, uma palavra síntese de nosso novo século, quando as escolas não mais se sustentam, as tendências se evaporam e as diversas vozes se misturam. Fronteiras se dissolvem; como ainda insistir na ideia dos grupos? O mundo — hipnotizado pela grande bolha cibernética — se torna, mais que nunca, movediço. Todos nos contaminamos, sem parar e sem desejar, e a poesia trabalha com isso. “Eis o poeta/ que ruge/ com todos/ os pelos/ do corpo/ arrepiados”. Esse urro é a nossa voz.

Não se pode ter tudo — e a maior poeta dessa nova geração, Ana Martins Marques, não aparece na coletânea de Ramon. Saltando para fora da antologia, precisamos ouvir um pouco o que Ana tem a nos dizer sobre o novo mundo cheio de ciladas e artifícios que agora somos obrigados a enfrentar. Em Da arte das armadilhas, ela descreve o novo impasse que cerca hoje os poetas: “Resta saber/ se as armadilhas/ são as mesmas/ Mas como sabê-lo/ se somos nós/ as presas?” É, portanto, às cegas que o poeta se mexe nesse novo espaço estético. Um espaço cheio de arapucas, iscas em que os poetas tropeçam a cada momento, e apesar disso, dessa instabilidade insuportável, ou por causa dela, eles devem continuar a escrever. Alerta Ana: “Seguimos alegres e tristes/ cheios de pensamentos/ até o topo da cabeça/ fechados de medo/ próximos do mar/ mas nunca o bastante”. Há um risco (uma distância real) que afasta os poetas do extenso real. A eles cabe aceitar essa distância e fazer alguma coisa disso

Útil, aqui, retroceder um pouco até os mais velhos, os que se oferecem como mestres à geração do novo século, e ouvi-los também. Começo por Chacal, salvo engano, o único que está presente nas duas antologias históricas. Em “Escrevo” com todas as letras, já no título, ele faz a defesa da pluralidade e da mistura. “Toco com todas as teclas/ pinto com todas as cores/ não quero mais do mesmo/ eu quero mesmo o outro”, nos alerta. A busca da alteridade, corra-se o risco que for, está na base do projeto da nova geração, e Chacal, sempre antenado, já a antecipa. Mas como nomear uma geração que tem a divergência como marca? Não é preciso seguir um caminho: a proposta agora é seguir todos os caminhos. Haja pernas.

Podemos recuar e chegar ao mais velho deles, Silviano Santiago, e também nele encontraremos a mesma ânsia pela divergência. No afirmativo “Sim”, poema que abre a coletânea, Silviano escreve: “Observo-me, sou eu não sendo eu./ Tenho sido sem ter/ sido./ Tento ser sem ter/ sido./ Não somos todos? Tudo saber e nada conhecer”. Aqui é a fronteira do Eu que incha e explode. O poeta, nesse caso, se aproxima do filósofo, que escreve para se perguntar quem afinal ele é. O tom afirmativo — o “sim” do título não apaga, contudo, a dúvida. No século XXI, o poeta precisa suportar o paradoxo de ser “não sendo eu”. Mas, nesse caso, quem ele é? Aqui um desfiladeiro de perguntas se descerra, a acolher novos poemas. “Pergunto à Vida se ainda faz/ sentido lhe emprestar sentido./ Responde-me que sim”. Só a aceitação do paradoxo como verdade é capaz de sustentar uma direção. Ainda que à custa de muita dor. Vale a pena escutar outro dos mais experientes, Armando Freitas Filho, que em “Cego amor”, delicado, mas enfático, adverte: “O rigor do amor/ tem dois gumes./ Um com a nua faca/ sem nenhum cuidado./ Outro na bainha/ é pura carícia”. Há uma beleza nessa divergência de direções. Mais que beleza: é ela que, com seu atrito, acende o fogo da vida. “Os dois são incontidos;/ o primeiro tem a mesma/ sede de viver que o outro”. No choque de opostos, no esfarelar de qualquer verdade imóvel, ergue-se o novo século. Armando sugere então que, diante desses atritos, sejamos delicados. Até por que, “no escuro dos corpos”, vemos muito pouco.

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O poeta Ramon Nunes Mello reuniu 96 poetas na antologia Tente entender o que tento dizer. 

Século em cacos
Uma das vozes mais potentes do novo século XXI é Angélica Freitas — nascida, como Fabricio Corsaleti, Fabiano Calixto, Annita Costa Malufe, Marilia Garcia e a já citada Ana Martins Marques, no bojo dos anos 1970. Em um poema narrativo de título longo, “Célio no céu, com toda a sorte de pedras preciosas”, e se debruçando sobre o passado, ela nos diz: “Era uma cidade/ com tão poucas possibilidades/ que toda essa atividade/ me parecia fascinante”. Trata Angélica do fazer e do viver “apesar de”. Também no século XXI, espremidos entre as tensões da nova época, os poetas parecem dispor de um intenso material que, no entanto, não conseguem acessar. Do quase nada — um século em cacos, fragmentado e sujo —, Angélica arranca, porém, versos fascinantes. “Me pergunto se naquela época/ você já sabia, mas a pergunta é ociosa./ e me lembro/ do brilho nos teus olhos”. Apesar da claridade intensa que cega, conseguir ver. Apesar dos fragmentos que se rasgam por todos os lados, chegar a saber. Nem que seja só um pouco.”

 Detenho-me, agora, em Rafael Iotti e seu “Um poema a Leonilson”. Escreve: “Ouço a tua voz como quem ouve/ uma confissão anônima”. Na grande dispersão do mundo virtual, as vozes se tornam sussurros, confissões apenas esboçadas, nada mais que rascunhos. A poesia do século XXI brasileiro se fragmenta como um objeto depois de uma grande explosão. Há rastos por todos os lados, pegadas sujas, multiplicidade de sentidos, e não adianta tentar costurá-los porque eles não se encaixam, nem se interessam pela exatidão. Ainda pisando o legado da “poesia marginal”, os novos poetas têm uma atração brutal pelo cotidiano. Não se importam com a perfeição, tampouco com a legibilidade. Simplesmente escrevem, cada um deles agarrado a seu torto caminho. Observada desde dentro, essa poesia talvez pareça confusa e perdida; mais à distância, ela ganha os contornos de uma grande nebulosa, a respeito da qual nos interrogamos: o que se esconde ali?

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A poesia de Silviano Santiago também traz a mesma ânsia pela divergência encontrada nos poetas da nova geração.

Trancados todos no berçário de poemas, os poetas balbuciam palavras incompletas, gaguejam, arriscam-se, cientes de que a nova aventura está apenas começando e quase nada à frente se pode enxergar. Em um poema dedicado à memória do cenógrafo e artista visual Flávio Império, uma sensível Annita Costa Malufe descreve — como num quadro — a posição de espera na qual essa geração agora se abriga. “Eu nas coxias esperando a hora de/ voltar para casa a mesa cheia de gente/ e a noite esvaindo lenta pela rua”. A ideia dos bastidores — daquilo que está oculto, mas muito próximo — é útil para entender a posição dessa nova geração. Ainda se preparam; guardam o sentimento de que não entraram completamente em cena; ainda se resguardam — mas nada disso os leva a desistir de esperar. O século XXI está logo ali e basta só um pouco mais de força para atravessá-lo.

É a advertência que nos faz o jovem Ramon Nunes Mello em “Acto de fé”: apesar de toda a turvação oferecida pelo novo século e apesar mais ainda da violência que se alastra em torno, não abdicar da palavra. Não desistir de escrever. Em seu poema, a violência é ultrapassada pela confiança em um futuro. Os ataques às palavras se multiplicam, ela cambaleia e se fragiliza; mas é dessa estatura claudicante, porém ainda cheia de vida, a que poesia continua a ser escrita. A poesia é só um ponto de partida, e não de chegada. “No poço/ fundo/ sem fim/ amém”. A palavra, “amém”, com seu rasto místico, fala de uma aprovação e de um desejo, e é neles que o poeta deve persistir.


José Castello nasceu no Rio de Janeiro (RJ) mas está radicado em Curitiba (PR) desde os anos 1990. É jornalista e escritor. Pratica diversos gêneros, como a biografia, a crônica, o jornalismo e o romance. Dentre seus livros, destacam-se Vinicius de Moraes: poeta da paixão (1994), João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma (1996), Inventário das sombras (1999), Ribamar (2010) e Dentro de mim ninguém entra (2016).