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Antecipação do futuro ou apropriação do presente?

José Luís Jobim, professor da UERJ, discute de que forma a ficção e os escritores dialogam com a realidade que os cerca

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A literatura antecipa questões ou se apropria de temas que estão no imaginário social? Esta é uma pergunta que poderia ser desdobrada em outras: Quando leio um texto, descubro algo sobre o mundo presente, que a obra desvenda, descobre, revela? Ou recebo do texto uma proposição antecipadora de um estado futuro desse mundo, que não fazia parte do imaginário social que conheço?

Eu responderia com um sim às duas últimas perguntas, inclusive porque há textos que podem servir ao mesmo tempo para a apropriação e a antecipação.

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis empregou uma técnica de representação da classe dominante na capital do Império que consistia em falar “de dentro” da visão daquela classe, expondo a consciência de um membro privilegiado dela: Brás Cubas. Como o narrador declara- se morto, sua narrativa pode ter um toque de franqueza crua, ao falar sobre as motivações de suas ações e de seus contemporâneos. Desse modo, a obra pode desvendar, descobrir, revelar uma série de elementos importantes para o entendimento do comportamento daquela classe no século XIX, mostrando como um certo imaginário daquela sociedade remete a uma herança real e determinada que está presente na própria constituição histórica dos sentidos que circulavam nela, como horizonte de possibilidades de explicação e justificativa para a vida social. Por outro lado, Machado também anteviu uma série de consequências que a estruturação do Estado brasileiro para beneficiar uma parcela privilegiada da população iria gerar. Hoje, quando as manifestações de rua parecem apontar para uma dissociação entre as formas de representação política e suas bases sociais, é interessante assinalar como o personagem- -narrador das Memórias póstumas antecipa um certo descompromisso com a sociedade, por parte de quem deveria representá-la. Brás Cubas queria ser deputado apenas para ficar em evidência, e sua proposta mais marcante no legislativo foi a de diminuir a barretina da guarda nacional, o que de algum modo parece prever as milhares de propostas absolutamente irrelevantes apresentadas por legisladores depois.

No famosíssimo livro 1984, publicado em 1949, George Orwell aborda questões que estão na ordem do dia, como os sistemas de vigilância, que envolvem desde redes de câmeras em locais públicos e privados até o controle de informações que circulam na internet, controle que está muito em evidência desde as denúncias recentes de um ex-empregado de agência estatal norte- -americana, afirmando que os Estados Unidos mantêm um vasto sistema de espionagem no meio digital. Como sabemos, no livro de Orwell o big brother (que hoje dá nome a um reality show de sucesso no Brasil) era o supremo mandatário, uma espécie de ditador apoiado em técnicas de marketing político de massas, homem de meia-idade, de bigodão preto e feições rudemente agradáveis, cujas características também lembram pelo menos dois contemporâneos famosos daquele autor: Stalin e Hitler. Assim, se 1984 antecipa aspectos do futuro, também desvenda, descobre e revela aspectos das sociedades sob regimes totalitários, vigentes na época de sua escrita. O slogan desses regimes, ou o dos sistemas de vigilância contemporâneos nossos, poderia muito bem ser o mesmo daquela obra: “O Grande Irmão está de olho em você”.

Se quisermos ainda outro exemplo famoso de obra que se dirigia ao futuro, mas olhando para o presente de sua época, podemos mencionar a obra de Thomas Morus (1478-1535) que gerou o uso da palavra utopia, cujo sentido hoje remete a algo ideal (ausente agora, mas desejável no futuro), algo que a imaginação elabora, inclusive com o sentido colateral de quimera, sonho, fantasia. De fato, Utopia foi título da obra em que aquele autor inglês ao mesmo tempo fez uma crítica à sociedade de seu tempo e imaginou uma sociedade ideal, que evitaria as injustiças e misérias do seu presente.

Na Utopia o leitor inglês podia encontrar uma proposição de mundo constituído de modo diferente da Inglaterra de então, habitá-lo ficticiamente e imaginar uma vida melhor do que a vigente no lugar que de fato habitava. Desse tipo de relação do leitor com obras como a de Thomas Morus pode resultar uma nova maneira de ser no mundo da realidade cotidiana, permitindo o surgimento de ações que levem à alteração efetiva do mundo real, para que se pareça mais com o mundo ficcional. No caso da literatura em geral, uma de suas qualidades mais apontadas é a capacidade de criar novos horizontes, de prover acesso a uma versão de mundo que vai além do que conhecemos. A vivência de mundos ficcionais e a apreensão dos interesses, objetivos, projetos e quadros de referência destes mundos pode alargar o horizonte do nosso mundo conhecido. Claro, quando pensamos em tipos de texto como a Science Fiction, podemos dar mais relevância à projeção do futuro configurada neles, mas quero lembrar aqui que, se pararmos para examinar mais detidamente estas espécies de texto, podemos verificar, tal como em 1984, que as projeções do futuro se enraízam no presente.

No que diz respeito à apropriação de temas que estão no imaginário social, a primeira pergunta que poderíamos fazer é sobre o grau de dependência em relação a esse imaginário. Se o texto apenas pretende ater-se à maneira de perceber e definir o âmbito do real nos termos em que esse é compreendido em certo instante, pode até ser considerado “realista” porque constrói um mundo que é, de alguma forma, visto como referente ao mundo real.

Nesse sentido, o Realismo como escola literária do século XIX tinha lá as suas especificidades (e incluo aí a sua costela naturalista, como parte de um mesmo corpo doutrinário, embora mais radicalizado). Claro, a primeira especificidade estava relacionada à crença programática na reprodução da realidade na obra literária. Hoje, esta ideia de uma representação absolutamente “realista” está em xeque sob inúmeros aspectos, a começar pelo fato trivial de que o elemento constitutivo da obra literária é a linguagem, e temos dificuldade de aceitar que a linguagem é apenas algo transparente, através de que seria possível mostrar a realidade “tal como ela é”. Afinal, contra esta hipótese haveria uma série de perguntas que se poderiam formular: Como poderia a realidade, tal qual ela existe ou existiu, ter existência também na linguagem, a não ser que imaginássemos que não há diferença entre a realidade e a linguagem? Se o discurso sobre a realidade é sempre posterior à percepção da realidade, a própria temporalidade posterior deste discurso em relação ao que se percebe como realidade não geraria também uma diferença? A ideia de reprodução da realidade na substância da linguagem não estaria em contradição com a própria diferença material entre a realidade e a linguagem?

As perguntas poderiam multiplicar- se ilimitadamente, se quiséssemos nos estender, mas não é este o caso, aqui. Se retornarmos ao período literário que no século XIX compreendeu o Realismo/Naturalismo, veremos que a produção literária deste período apresentou também uma série de constantes: no que diz respeito ao gênero, uma preponderância do narrativo; no que diz respeito aos temas, um predomínio do contemporâneo; no que diz respeito às formas de saber, uma pretensão à incorporação das “novidades” (positivismo, darwinismo, fisiologismo, etc.). Claro, a relação com formas de saber prestigiosas no oitocentos não escondia as pretensões do discurso realista/ naturalista. De algum modo os autores daquela escola supunham estar não somente reproduzindo o real, mas também dando ao leitor um conhecimento sobre ele.

Se hoje consideramos o substrato daquele suposto conhecimento como datado, como pagando um pesado tributo a uma certa ciência daquela época (em grande parte ultrapassada) com seus pressupostos deterministas e mecanicistas, é sempre bom lembrar que naquela época não era esta a visão.

E no que diz respeito à escrita literária, interessa-nos assinalar aqui que a escola realista/naturalista engendrou um certo modo de escrever para criar um efeito de real. Este modo de escrever incluía, entre outras coisas, procedimentos descritivos exaustivos que supostamente concretizariam a imitação do real, através de um inventário detalhado de seus elementos componentes.

No entanto, a narrativa realista/ naturalista tinha entre suas metas a de oferecer ao leitor mais do que uma experiência estética, pois supunha estar dando a este leitor também um conhecimento sobre a realidade.

No caso dos romances, esta suposição entrava em conflito com a própria ficcionalidade dos personagens, mas podia ser resolvida de forma ao menos parcialmente satisfatória com a observação de que os personagens específicos podiam não ser “reais”, mas o tipo humano e social que representavam era, assim como as situações em que se encontravam no mundo ficcional, as quais encontrariam correlatos no mundo real.

Hoje sabemos que esta atitude dos escritores diante do real, esta ideia de representação ou imitação do real aparece em outros momentos posteriores ao século XIX, estando presente inclusive no quadro das crenças ainda vigentes para os escritores do século XXI, embora as técnicas literárias correlatas a esta ideia não sejam as mesmas do período realista/naturalista. Provavelmente os autores daquele período dos oitocentos teriam uma dificuldade muito grande de entender, por exemplo, os rótulos de realismo mágico ou maravilhoso, criados para explicar uma certa literatura hispano-americana do século XX. Afinal, como poderiam aqueles autores realistas-naturalistas entender rótulos cujos próprios termos constituintes, para o olhar do século XIX, estariam em franca contradição entre si?

No século XXI, entretanto, as contradições são outras... e a conversa sobre elas certamente é muito longa.

José Luís Jobim é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Seu livro mais recente é Literatura e cultura: do nacional ao transnacional. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Ilustração: Rafael Campos Rocha