Capa - Clássicos

A origem das obras fundamentais

A recepção do público e da academia, além da repercussão na mídia, podem fazer de uma obra uma referência ao longo do tempo, mas há outros fatores, incluindo o imponderável, no processo que transforma, ou não, um livro em um clássico


Marcio Renato dos Santos

O senso comum garante que o tempo é, e será, o juiz a apontar quais obras são, e serão, consideradas clássicas. De fato, os livros que resistem à chamada prova da passagem dos anos têm algo a mais: param em pé sem os apoios do tempo no qual foram concebidos, seja o marketing do contexto recente ou as redes de relações que há muito ajudam tanto a publicar como a fazer com que o autor e a sua produção encontrem caminhos e vitrines.


Na realidade, costuma dizer em sala de aula a professora Maria Zélia Versiani Machado, não existe receita para um livro se tornar clássico. Há sim uma conjunção de fatores que podem, ou não, fazer de uma obra um clássico, a começar pela leitura. “Não é apenas a passagem do tempo que faz de uma obra um clássico, mas são as leituras que os leitores fazem das histórias, das poesias, que lhes dão vida”, afirma Maria Zélia, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

“Não é apenas a passagem do tempo que faz de uma obra um clássico, mas são as leituras que os leitores fazem das histórias, das poesias, que lhes dão vida”

Maria Zélia Versiani Machado


A pesquisadora lembra que livros considerados atualmente obras fundamentais, por exemplo, A odisseia, de Homero, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, A divina comédia, de Dante Alighieri e Hamlet, de William Shakespeare, nem sempre foram categorizados dessa maneira. “A história de um livro é a história de suas leituras. Hoje, temos clareza de que os cânones são construções históricas e que muitas obras podem não ter tido a mesma sorte do que essas que chegaram até os dias atuais. Pode ainda acontecer de uma determinada obra ficar por um tempo esquecida e ser 'ressuscitada' por leitores que iniciam um novo ciclo que a coloca no circuito das leituras”, argumenta Maria Zélia.

fante

John Fante escreveu Pergunte ao pó em 1939, obra que adquiriu visibilidade apenas quando Charles Bukowski a descobriu em uma biblioteca pública, na décade de 1980


Arthur Dapieve concorda com a argumentação da professora da UFMG, em especial com a observação a respeito de obras esquecidas e que posteriormente adquirem novo ciclo. Para comprovar o que diz, ele cita Pergunte ao pó, do John Fante. O romance foi publicado em 1939, mas só conquistaria popularidade a partir da sua redescoberta, quatro décadas depois, por Charles Bukowski, que encontrou a obra nas prateleiras de uma biblioteca pública de Los Angeles. “Fante ainda estava vivo, mas quase esquecido, e morreria em 1983. Para mim, Pergunte ao pó é um clássico moderno”, diz Dapieve, jornalista, autor do romance Black music e professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

O que é o homem?

Na opinião do professor de literatura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marcos Siscar, o que faz um clássico é a necessidade que determinada época ou conjunto de leitores têm de estabelecer referências para seu passado e de constituir para si uma ideia de comunidade. O estudioso observa que a universidade, o público e a mídia participam desse processo [de construção do clássico]. “As tentativas de atribuir qualidades específicas aos chamados 'clássicos' faz parte da necessidade que temos de legitimar as nossas escolhas, de confirmar os nossos mitos”, raciocina o professor da Unicamp, também tradutor e poeta.


Além das teses, dissertações e estudos acadêmicos, da recepção do público e da crítica, e da mídia, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Biagio D'Angelo cita até o imponderável como fiel da balança na elaboração de um clássico. E mais. “Se um livro mobiliza o leitor em alguma direção, rumo a um pensamento, pode-se dizer que é um clássico”, diz Biagio, acrescentando ainda que cada pessoa pode ter a sua lista pessoal de clássicos. Para ele, Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, é um desses livros fundamentais. “A obra me perturba a cada nova leitura”, confessa o professor da PUCRS, autor de Benjamin — livro vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Infantil em 2012.
A lista de clássicos da professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Jane Tutikian inclui O vermelho e o negro, de Stendhal, Moby Dick, de Melville, Madame Bovary, de Flaubert, Guerra e paz, Tolstói e O idiota, de Fiódor Dostoiévski. Em comum, esses livros são — na avaliação da estudiosa — reveladores da natureza humana, do estranhamento das relações sociais e da própria fé. “Todos eles centram-se na pergunta primordial: o que é o homem?, e por tocarem em valores essenciais, e por fazerem isso através da percepção artística da literatura, ultrapassam seu próprio tempo, mantêm sua atualidade e manterão enquanto o homem for homem, com seus estranhamentos, com suas contradições, com sua fragmentação”, comenta Jane.

Calvino e Coelho

calvino
Noventa e nove entre cem estudiosos citam o ensaio Por que ler os clássicos, de Italo Calvino, como referência para entender o assunto. O texto do intelectual e escritor italiano traz 14 definições, como: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” Ou seja, Calvino chama atenção para o fato de que uma obra fundamental é aquela a respeito da qual o sujeito diz: “estou relendo e nunca [apenas] lendo”.

 

“Há, por exemplo, clássicos espanhóis que não o são aqui. Daí alguns falarem em 'clássicos universais' sempre me pareceu meio pretensioso e etnocêntrico”

Arthur Dapieve
 


 Italo Calvino


A professora de Literatura Brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Ana Cláudia Viegas é entusiasta da tese de Calvino. “Acho que essa é uma das características de um clássico: permitir sempre novas descobertas a cada releitura — daí sua permanência.”


A leitura de Por que ler os clássicos não é fechada, ao contrário: amplia horizontes e induz à reflexão, despertando dúvidas, por exemplo: há clássico produzido recentemente? A professora da UERJ acredita que sim. “Como não há um conceito fechado do que seja um clássico, pode-se falar [sim] de um livro recente como um clássico, no sentido de já se destacar entre seus contemporâneos, e ser considerado [fundamental] pela crítica logo após seu lançamento. Diz-se hoje, por exemplo, do escritor Milton Hatoum: ele 'já nasceu clássico'. Quando um livro ou autor recente é chamado de clássico, me parece que se sugere ou se aposta que ele veio pra ficar”, afirma Ana Cláudia Viegas.


E Paulo Coelho? Pelo fato de ter boa recepção por parte do público, a sua obra pode ser chamada de clássica? Jane Tutikian, da UFRGS, diz que não. Ela analisa que a produção de Coelho diz respeito a uma literatura esotérica com forte apelo de marketing. “E isso não o torna menos qualificado naquilo que faz! Entendo que o sucesso de Paulo Coelho, e em proporção menor as literaturas de autoajuda, esteja vinculado à mudança de século, às ideias e temas de sentimento finissecular, de morte, de decadência, de insegurança que marcaram esses períodos em toda a história. Apenas isso. É fenômeno datado. Não fica”, avalia a especialista da UFRGS.


coelho
Maria Zélia Versiani Machado, da UFMG, dialoga com a colega gaúcha e completa o raciocínio a respeito de Paulo Coelho. “Não se pode confundir sucesso de vendas com qualidade literária que gera interesse de leitura renovado para além do tempo de produção, que caracterizaria um clássico”, diz Maria Zélia. Ela recorre a Italo Calvino, para quem o clássico é aquela obra que pede, até mesmo exige, releitura, e faz uma pergunta — em relação à produção de Paulo Coelho. “Conseguimos reler algumas obras? Esta pode ser uma boa medida”, completa a estudiosa da UFMG, sugerindo que a literatura do Mago — que ultrapassa 130 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo — não é clássica, entre outros fatores, por não “pedir” releitura.

Paulo Coelho

Relação com o porvir

Italo Calvino, em seu célebre ensaio, faz uma afirmação a respeito dos livros fundamentais: “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”. E quais são essas obras que, muitas vezes, desconhecemos, apesar sabermos de suas existências e que, quando as lemos, elas nos surpreendem? 


Arthur Dapieve, da PUC-Rio, cita, entre outros, Ulysses, de James Joyce; O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger; O deserto dos tártaros, do Dino Buzzati; O leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa e Ficções, de Jorge Luis Borges. Jane Tutikian, da UFRGS, acrescenta Odisseia, de Homero, Eneida, de Virgílio, O processo, de Kafka e Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. 


E a literatura brasileira? Não é referência entre os clássicos universais? Qual seria o problema? “A língua é outro fator que influencia. Uma lista de clássicos universais dificilmente inclui um escritor brasileiro, porque o português é uma língua muito pouco conhecida e a literatura brasileira, pouco traduzida”, comenta Ana Cláudia Viegas, da UERJ.


“Se um livro mobiliza o leitor em alguma direção, rumo a um pensamento, pode-se dizer que é um clássico”

Biagio D'Angelo

Mas há, sim, clássicos da literatura brasileira. A professora da UERJ cita São Bernardo, de Graciliano Ramos, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Macunaíma, de Mário de Andrade, a obra poética de Carlos Drummond de Andrade e Iracema, de José de Alencar. Dapieve completa a relação com Dom Casmurro, de Machado de Assis, Vidas secas, de Graciliano Ramos e O encontro marcado, de Fernando Sabino. Jane Tutikian lembra de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e A hora da estrela, de Clarice Lispector.


“Há, por exemplo, clássicos espanhóis que não o são aqui. Daí alguns falarem em 'clássicos universais' sempre me pareceu meio pretensioso e etnocêntrico”, opina Dapieve. Biagio D'Angelo, da PUCRS, observa ainda que há clássicos regionais, obras que são lidas — e “amadas” — apenas em uma região. Os escritores Josué Guimarães, Simões Lopes Neto e Erico Verissimo são, na opinião dele, referências máximas entre os gaúchos.


“E também existem obras que podem ser clássicas pela linguagem ousada e por apresentarem rupturas e intervenções inéditas”, observa o professor da PUCRS, citando como exemplo O mez da grippe, de Valêncio Xavier — obra construída a partir de recortes de notícias de jornais.


Enfim, mais do que resistir à chamada prova do tempo, a relação de um livro com o porvir pode ser outra. Pelo menos é assim que pensa Jane Tutikian. Para a professora da UFRGS, não é o tempo que ajuda a obra a se tornar um clássico. “A obra ajuda o tempo na medida em que ela, sendo sua representação simbólica, se torna maior do que ele [o tempo]: ela [a obra] se torna uma obra de todos os tempos”, argumenta.