Capa | 20 Livros: Parte 1

20 Livros em 20 anos

 

Estar sendo/Ter sido (1997), de Hilda Hilst
HildaHilst

Estar sendo/Ter sido é o último livro em prosa escrito por Hilda Hilst e representa um dos grandes momentos de sua ficção. Constrói-se como um longo fluxo de consciência de um homem que, ao completar 65 anos, descobre que nada pode ser mais relevante em sua vida do que se preparar para o momento de sua morte. Fazer-se abandonar pela mulher é a primeira providência que toma, mas a lembrança dela, bem como a de outras amantes, é constantemente renovada pelas presenças do irmão e do filho, os quais, embora não compreendam a sua apatia pela vida, permanecem fielmente ao seu lado. Na segunda parte do livro, após sofrer um colapso e ser internado, a cena básica já não é composta pelos familiares, mas por uma criada de quarto, um barman e vários vira-latas. A lembrança da mulher é então substituída pela de várias outras personagens de outros livros de Hilda Hilst, de modo que a novela se produz igualmente como evidência da unidade do conjunto da sua obra em torno da imaginação da morte.

Alcir Pécora é professor de teoria literária da Unicamp e autor de Máquina de gêneros.

Trecho:
“Diz que é advogada. minha casa dá frente para a rua de areia, e a biblioteca e o jardim dão para o mar. durmo na biblioteca. vejo-a passar. é elegante. pequena. anotei ontem essas linhas sobre Lucina, mas não quero falar disso por enquanto. sei que sonhei comigo mesmo deitado sobre um esquife, não dentro do esquife, mas sobre a tampa. havia algo enrolado no meu pescoço. um pano negro. eu estava lá deitado. devia estar morto, mas por que sobre a tampa e não lá dentro? chamavam-me: Vittorio! Vittorio! levanta-te! e não é que eu me levantava? ‘conclamatio’. era esse o nome que davam àquele ritual, não era? o morto era o ‘conclamato’. durmo sempre na biblioteca porque é assim: minha casa tem a frente voltada para a rua de areia, o fundo é um vasto jardim e é também minha biblioteca e bar; dando para o mar. Oroxis limpa os livros a cada dia. por causa do bolor. põe os livros de cabeça para baixo porque não sabe ler. odeio criados. são presunçosos, ressentidos e sempre te odeiam.”

Estar sendo/Ter sido (1997), de Hilda Hilst, 1ª edição, editora Nankin, 1997.



Ó (2008), de Nuno Ramos

Ó
Ó, de Nuno Ramos, publicado em 2008, pertence a uma estirpe rara na literatura brasileira, na linha de Água viva (1973), de Clarice Lispector, por ousar implodir os limites da representação e a retórica do lugar, por se abrir livremente a correspondências entre as formas sensíveis da matéria e a escrita do mundo. A meditação exacerbada e a vertigem da linguagem levam a momentos epifânicos em que conhecimento e criação poética se confundem na revelação do “patrimônio selvagem do sujeito”. E como “todo conhecimento vem do corpo”, dele irradiam as redes de sentido que dão massa e volume aos blocos textuais — corpus erótico — em que a palavra se abisma. Para o escritor, a deformidade que constitui o saber contemporâneo parece ser fruto desse enfrentamento das palavras e das coisas, levado ao extremo da tagarelice ou do silêncio.


Wander Melo Miranda é professor de teoria da literatura e literatura comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É autor de, entre outros livros, Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago.

Trecho:
“Meu corpo se parece muito comigo, embora eu o estranhe às vezes. Tateio minuciosamente as pequenas saliências da pele, os pequenos pelos que vão crescendo enquanto caem, e empalidecem, e parecem, aos poucos, cobertos de giz. Embora só consigam crescer em torno do meu queixo e sobre a minha boca, sempre os aparei todos os dias, pois quando não o fazia cofiava, é este o verbo, aquele conjunto unido de pequenos cabelos ininterruptamente, com a voluptuosidade de quem precisasse fumar ou beber ou arrotar, mas parecendo aos demais que adotava uma posição reflexiva e até mesmo irônica, o que não era a minha intenção. Para evitar desentendimentos, desde a primeira adolescência raramente deixei de cortálos durante o banho, como um inimigo constante que precisasse controlar. Pois bem, quando fiquei alguns dias sem tomar banho e me olhei no espelho, percebi círculos calvos em meu queixo. Os pequenos pêlos haviam caído em rigorosa geometria, como aqueles círculos em plantações de milho, ou trigo, na Europa, Austrália e nos Estados Unidos, que muitos tomam por sinais extra-terrestres.”

Ó, de Nuno Ramos, editora Iluminuras, 1ª edição, 2008.

 


Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato
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Eles eram muitos cavalos é uma espécie de “Sampa” no panorama da literatura brasileira contemporânea. Assim como a canção de Caetano, o romance de Luiz Ruffato alcança a façanha de sintetizar algo que, por sua absurda complexidade, resiste à síntese: a cidade de São Paulo. Uma visita guiada à vertigem, da qual este livro polifônico traz notícias inquietantes. Em 69 episódios, Ruffato lança mão de um arsenal de recursos formais para narrar o caos e seus personagens aturdidos, gente habituada a ser coadjuvante em sua própria biografia. O resultado é uma radiografia que busca rastrear o que de humano resta nas relações de pessoas engolidas pela voracidade da metrópole. Um contundente testemunho de um tempo e de um lugar. 


Marçal Aquino publicou, entre outros livros, O amor e outros objetos pontiagudos, Faroestes e Cabeça a prêmio. Foi o roteirista dos filmes Os matadores, Ação entre amigos, O invasor, Nina e Crime delicado.

Trecho:
“Bem dado, de baixo pra cima, o chute que atingiu as costelas à mostra do vira-lata catapultou-o para o meio da rua, onde, aterrizando meio de banda, escapuliu ganindo, sem atentar tamanha crueldade. Só empós escapar ligeiro por entre valas fétidas e becos sonolentos, escuridões e clareiras, é que, encorajando-se, tornou ao revés. Já ninguém não havia extorquindo a manhã nascitura. Parou, resfolegante, o coraçãozinho às corcovas, estendeu-se sobre o corpo trêmulo, a confusa recém-lembrança. Por que fora agredido? Arfando, a língua lambe o pelo duro, amarelo-sujo, tenta escoimar os doloridos. Por quem fora agredido? Os dentes agudos mordiscam ao léu, à cata de invisíveis pulgas. Exausto, a cabeça pende sobre as patas esticadas, cerra os olhos, o rabo sossega, suspira. Aos poucos, os caquinhos coloridos assentam no fundo do caleidoscópio.”

Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, página 28, Boitempo Editorial, 1ª edição, setembro de 2001.

 


Chove sobre minha infância (2000), de Miguel Sanches Neto

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Tratando-se de indicar uma ficção “emblemática”, publicada nos últimos 20 anos, não tenho dúvida: Chove sobre minha infância, romance de Miguel Sanches Neto, publicado pela Record em 2000 e republicado, pela mesma editora, 12 anos depois. Justifico aqui a minha escolha com palavras que escrevi quando do aparecimento da obra: Admirável pela coragem, pelo despojamento, pela grandeza de alma (até no reconhecer as pequenezas), pela poderosa arte de que é feito, é livro que certamente vai ficar entre os mais belos e dilacerantes da literatura nacional. Sem dúvida, no período aqui considerado, nenhuma ficção brasileira me emocionou tanto quanto Chove sobre minha infância. Meu voto, portanto, nesta escolha de prosas literárias “emblemáticas” dos últimos 20 anos, é para esse grande livro.



Ruy Espinheira Filho é escritor e poeta. Publicou os romances Ângelo Sobral desce aos infernos e Um rio corre na Lua. Em 2012, teve grande parte de sua produção poética reunida na antologia Estação infinita e outras estações.

Trecho:
“A morte de meu pai é o início de minha história, mas havia uma longa e bem narrada pré-história. Se eu não retornar a ela, talvez não seja compreendido. Por que mexer nestas coisas que doem?, me perguntaram. Descascar a ferida apenas para sofrer mais do que normalmente se sofre nesta vida em que nada cicatriza completamente? Sofrer com a lembrança é um reconforto. Tudo passou e sobrevivemos, tivemos força para manter a sanidade, para seguir nosso caminho. A dor do passado, ao contrário da dor do presente, é uma espécie compungida de felicidade. Sim, sinto prazer olhando aquele tempo, me vendo sozinho no mundo, órfão em vários sentidos.”

Chove sobre minha infância, de Miguel Sanches Neto, página 17, 1ª edição, Record, 2000

 



Becos da memória (2006), de Conceição Evaristo
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Refletindo sobre a difícil situação dos negros após a abolição, Carolina Maria de Jesus dizia que “hoje estavam aqui, amanhã ali, como se fossem folhas espalhadas pelo vento. Eles tinham inveja das árvores, que nasciam, cresciam e morriam no mesmo lugar”. É esse mesmo sentimento de desenraizamento e de não pertencimento que envolve e dá força ao romance Becos da memória (2006), de Conceição Evaristo. A partir da narrativa do desmonte de uma favela em Belo Horizonte, a autora faz emergir um fascinante conjunto de personagens, especialmente mulheres, que se deslocam pelas vielas do lugar carregando consigo pouco mais que seus corpos e suas histórias. Negros e pobres, descendentes de escravos quase todos, com a demolição da favela se tornam, mais uma vez, “folhas espalhadas pelo vento”. E o romance — gesto político que se faz estético, ou vice-versa — se organiza, então, como abrigo e espaço de empoderamento para personagens que não costumam ter lugar em nossas cidades ou em nossa literatura.

Regina Dal Castagnè é professora titular de literatura brasileira da Universidade de Brasília, pesquisadora do CNPq e editora da revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea.

Trecho:
“Já Tio Totó sempre fora um homem de risos e sorrisos fartos. A gargalhada dele retumbava. Ele viera de pais escravos. Viera são, salvo e sozinho da outra banda do rio, deixando nas águas, o melhor de seu. Viera de uma primeira e de uma segunda mulher morta. Viera de filhos mortos. Estava no terceiro casamento, cumpria seu tempo de vida com seus 90 e tantos anos. E há até bem pouco tempo, ria gostoso, ria liberto. Seu riso, sua gargalhada foi rareando quando ele começou a envelhecer. Tio Totó custou a se tornar um velho. Aos 80 era um moço. E gostava de repetir: eu não sou de morte fácil, de vida difícil, sim! De todas as suas histórias, a que ele gostava mais de contar e repetia sempre era a da travessia do rio. Sempre começava assim: ‘Cheguei são e salvo e sozinho na outra banda do rio. Gostaria de ter morrido, mas estou aqui.’”

Becos da memória, de Conceição Evaristo, 1ª edição, Editora Mazza, 2006.

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