A gênese do Vampiro 07/07/2014 - 17:30

Um dos maiores clássicos da literatura brasileira, O Vampiro de Curitiba se impôs, ao longo de cinco décadas, no imaginário de leitores de diversas gerações, fazendo de Curitiba uma cidade mitológica à maneira de Macondo

 

Luiz Rebinski Junior


Dalton Trevisan, desde sempre, teve total domínio sobre sua obra. E isso vai além da linguagem apurada e singular que o escritor criou. Ainda nos anos 1940, simultaneamente à experiência da revista Joaquim, lançou dois livros de contos — Sonatas ao luar e Sete anos de pastor — que renegou. As coletâneas escritas por um imaturo escritor de vinte e poucos anos nunca mais foram vistas desde então.

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Em 1964, o autor já despontava no cenário nacional e havia cometido duas pequenas obras-primas: Novelas nada exemplares e Cemitério de elefantes. Os livros foram editados pela José Olympio, a casa editorial que lançou grande parte dos romancistas da fabulosa geração de 1930 e que à época era o que se pode chamar hoje de cult. O que não impediu Dalton de editar por conta própria o livro que moldaria sua própria imagem diante dos leitores e, como poucas obras literárias no mundo conseguem, se inseriria no imaginário de uma cidade. O Vampiro de Curitiba, depois de 50 anos de sua publicação, extrapolou os limites da ficção e é citado até mesmo por quem nunca o leu, fenômeno reservado apenas aos clássicos.

Como tudo que cerca Dalton Trevisan é feito à sua maneira, O Vampiro de Curitiba, seu livro mais famoso ainda hoje, sofre de um equívoco editorial que grande parte da crítica, dos leitores e da imprensa desconhece. Oficialmente o livro foi lançado em 1965 pela já citada José Olympio, que o distribuiu nacionalmente. Mas para o próprio autor, seu clássico nasceu mesmo um ano antes, em 1964.

A edição feita pela Papelaria Requião, antiga anunciante dos tempos de Joaquim, é uma espécie de single do livro que seria editado no ano seguinte. Com apenas seis dos 15 contos que consagrariam a coletânea, o livro é modesto, uma edição semi-caseira sem ilustração e com pouquíssimas informações editoriais. Um modelo que Dalton Trevisan adotaria para promover sua literatura junto a leitores escolhidos a dedo. Os chamados livros de cordel do Vampiro. O livro teria mudanças significativas desde a primeira versão, sendo revisto a cada nova edição.

O jornalista Luiz Geraldo Mazza lembra que o segundo livro (oficial) do escritor, Cemitério de elefantes, já circulava no início dos anos 1960 em Curitiba antes da publicação pela carioca José Olympio. À época Mazza fazia parte de um seleto grupo de intelectuais que frequentava a Boca Maldita, no centro de Curitiba, espaço em que também transitava Dalton Trevisan. A partir de histórias ouvidas ali, Dalton colhia o substrato de parte de sua obra.

“Todo mundo sabe que o Dalton se apropria de histórias que escuta na rua. O Nelsinho, protagonista de O Vampiro de Curitiba, foi inspirado em um jornalista do Última Hora, que trabalhava na sucursal do jornal em Curitiba. Chamava-se Mauri Furtado e tinha um ótimo texto. O Dalton então se inspirou nele e no que ele escrevia sobre o lado boêmio da cidade para compor o personagem”, diz Mazza, ele mesmo já considerado um mito do jornalismo paranaense.

Personagem de muitas vidas

Com o grau de singularidade que sua literatura alcançara, Dalton Trevisan não poderia simplesmente se apropriar de um mito, precisava recriá-lo. Daí seu vampiro às avessas, que gosta mais de sexo do que de sangue. O quê, em si, já se configura outra subversão, afinal o escritor situa seu personagem em uma cidade que contraria os clichês relacionados ao sexo que o país ostenta. Nem a Curitiba fria, no clima e no trato, é capaz de inibir a libido do herói, que logo no início do livro explica que o sexo e as mulheres são, ao mesmo tempo, sua salvação e danação: “Ai, me dá vontade até de morrer. Veja a boquinha dela, está pedindo beijo — beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz”.

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“A característica mais marcante de O Vampiro de Curitiba, para mim, está na habilidade de destacar num instante, num lampejo, as paixões e angústias das personagens, apresentadas em seu habitat — Curitiba. Sem falar na invisibilidade moral daquele que espreita e nos apresenta essa realidade”, opina Berta Waldman, autora de Do Vampiro ao cafajeste, um dos estudos mais conhecidos sobre a obra do contista paranaense. A Editora da Unicamp prepara uma nova edição do livro, a sair no segundo semestre deste ano, que virá acrescida de outros 30 ensaios que Berta escreveu nos últimos anos a respeito da obra de Dalton Trevisan.

O poeta e professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP) Augusto Massi lembra que antes da estreia nacional com Novelas nada exemplares, Dalton Trevisan já era um escritor bastante experimentado na ficção: havia escrito livros que mais tarde renegaria e esteve à frente de uma publicação, a revista Joaquim, em plena sintonia com o que de melhor se produzia em termos literários no Brasil e no mundo.

“Ao publicar O Vampiro de Curitiba, o escritor já tinha 20 anos de bagagem. Era alguém que dominava as regras do ofício. Mais: as obsessões do contista são registradas pela crítica e pelos leitores como um traço de originalidade. Este livro consolida a sua posição na cena literária”, diz Massi.

Com os dois primeiros livros que circularam nacionalmente, Dalton Trevisan já avisava a que vinha. Com a primeira coletânea, Novelas nada exemplares (uma referência irônica às Novelas exemplares de Cervantes), o escritor levara o I Concurso Nacional de Contos do Paraná. Mais do que repercussão nacional, com Novelas e Cemitério de elefantes o escritor dá início à saga, que já dura mais de meio século, de Joões e Marias soterrados pelo comezinho e cotidiano.

Os livros ficaram marcados por trazerem alguns dos contos mais célebres do autor, como “Uma vela para Dario”, uma história terrível sobre a perversidade humana que ainda hoje é lembrada, citada e serve de referência para leitores e escritores de diversas gerações. Assim como a metáfora do conto-título “Cemitério de elefantes”, usada pelo autor para descrever bêbados jogados à margem do rio Belém, permanece como uma imagem forte que ajuda a explicar, hoje, o fenômeno do crack, que tomou conta de ruas e praças de Curitiba.

No entanto, ainda que quase todas as características que consagrariam Dalton Trevisan como um gênio da literatura mundial já estivessem presentes nos primeiros trabalhos, é com O Vampiro de Curitiba que a prosa do escritor ganha um personagem que percorrerá um volume inteiro, ainda que sempre de modo não-linear, a confundir o leitor sobre a real identidade de Nelsinho, um ser ao mesmo tempo normalíssimo e estranhíssimo. “O Vampiro de Curitiba representa o primeiro momento de cristalização de um estilo”, arrisca Augusto Massi.

A própria estrutura do livro já confunde. Apresentado como novela, traz 15 histórias autônomas em que Nelsinho sempre ganha novas características: ou seja, a estrutura e a temática da obra convergem em um tipo de fragmentação, ambas esteadas por uma linguagem singularmente econômica.

Em cada esquina um vampiro

A ideia de que Dalton Trevisan criou uma cidade só sua não é nova entre os críticos. E se for correta a pensata, O Vampiro de Curitiba certamente figura como um momento importante para sedimentar tal fenômeno. As desventuras de Nelsinho ajudam a modelar uma cidade que, pelo menos aparentemente, é a Curitiba real, capital do Paraná. Mais uma vez Dalton confunde tudo ao moldar sua literatura a partir de um ícone real, mas suscetível ao talento do escritor.

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Nessa toada de criar uma mitológica Curitiba, o escritor fez de lugares obscuros da cidade real pontos antológicos que qualquer leitor forasteiro teria curiosidade de visitar. “O que não falta, nem nunca faltará, imagino, é bisbilhoteiro a visitar Curitiba com o propósito de identificar um vampiro que apareceu nesta cidade na década de 1960, mas deve continuar suplicando os beijos das virgens e suas carótidas. Algo assim como quem visita Moscou à procura do ‘Capote’ de Gogol”, diz o imortal Antônio Torres.

É o caso da “Ponte Preta”, uma pequena ponte no centro da cidade famosa hoje por complicar motoristas de caminhão, que não atinam para sua diminuta altura e acabam entalados. Mas na ficção de Dalton, no conto “Debaixo da Ponte Preta”, esse anti-ponto-turístico da cidade foi celebrizado com uma história de estupro narrada em tom policialesco e com várias versões. Aqui, Nelsinho ganha a forma de um pré- -adolescente desorientado que violenta a menina Ritinha.

“Com este livro, Curitiba entra no mapa da literatura latino-americana, junto com Macondo, como já se observou”, diz Berta Waldman, citando a mitológica cidade de Cem anos de solidão, que teria sido inspirada em Aracataca, local onde Gabriel García Márquez viveu grande parte de sua infância.

Augusto Massi sugere que o fato de, pela primeira vez, Dalton estampar Curitiba no próprio título de uma obra, criou um vínculo simbólico poderoso entre o autor e a cidade. “Um pouco à maneira do Mário de Andrade, que transformou a provinciana São Paulo numa moderníssima Pauliceia desvairada, Dalton soube galvanizar Curitiba e o mito universal do Vampiro. A força de todo mito está em ser recontado, viajar, correr mundo. De lá pra cá, só cresceram as lendas em torno de Trevisan e o pequeno reino da Transilvânia”, diz o professor e poeta, que durante dez anos atuou como publisher da editora Cosac Naify.

Influências

Outra maneira de medir a força de O Vampiro de Curitiba é por meio do rebuliço que causou na mente de leitores de diversas matizes e gerações. Luís Henrique Pellanda, que tem no centro de Curitiba a matéria-prima de suas crônicas, teve no clássico de Dalton Trevisan um substituto para os livros infantis que não leu quando criança. “Depois dele minha inocência já era, e acredito que foi isso o que a obra significou para a cidade também. Foi lendo O vampiro que descobri ser possível escrever sobre o mundo a partir de Curitiba, ao mesmo tempo em que percebia que todos os livros do mundo eram, também, sobre Curitiba.”

Vizinho de Dalton no bairro Alto da XV, próximo ao centro da cidade, o escritor e tradutor Caetano Galindo ressalta a produção “coerente” do escritor ao longo de mais de cinco décadas, em que escreve um livro “incomparável”. Também contista, Galindo, que venceu o Prêmio Paraná de Literatura em 2013 com a coletânea Ensaio sobre o entendimento humano, recorre à ideia de que o conjunto de contos do curitibano, na verdade, compõem um só livro, comparável a um gigantesco romance-painel.
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“Mas O Vampiro veio num momento em que ele estava em excelente forma (tudo bem que ele nunca esteve em forma) e tem esse grande atrativo, realizado ali melhor talvez que na Polaquinha, de sintetizar temas, obsessões e registros típicos dos contos em uma personagem mais bem delineada. Mais estável e continuada. Dar nome ao vampiro, destilar um Nelsinho dos vários ‘tarados’ da cidade gerou uma presença, para todos os leitores, inesquecível”, diz Galindo.

Já o escritor Felipe Munhoz, nascido em 1990. é a prova de que O Vampiro tem atravessado gerações fazendo a cabeça de leitores. Paulistano, Muhoz viveu durante muitos anos em Curitiba e diz que a leitura da obra de Dalton Trevisan o ajudou a entender seu lugar na cidade em que passou grande parte da vida. “O Vampiro de Curitiba está relacionado a uma época de amadurecimento e descobertas. Uma época em que eu buscava compreender a ficção, a literatura séria; e que, através da literatura, buscava compreender as angústias que me atingiam. Além de compreender como funcionava a cidade — Curitiba — em que eu viva; e qual era meu lugar — paulistano — nessa cidade. Parece que foi ontem, parece que já faz cinquenta anos.”

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