VI CONCURSO LITERÁRIO LUCI COLLIN (UFPR): CONTO | Entalhe 18/12/2024 - 11:28

por Aura Grube

 

O gradiente verd'amarelado da grama emoldurava a casinha de madeira e, da janela lateral, Seu Antunes via germinarem as sementes, as que a esposa plantou, a que plantou na esposa. Dona Glória, os beija-flores, as pacas e o vento faziam coro na fecundação do quintal. O rebento veio antes de madurar, tico de gente, focinho de pai, batizaram Alberto.

(Antunes tinha raízes aéreas, amores de sertão e de mar, até conhecer Glória e perder o rumo de volta para a estrada. Glória e seus olhos d'água, perdida na voz macia de Antunes a dizer que se emendava, até jurar jurou, por ela, até parava em casa).
Depois do poço, na borda do córrego, crescia uma pequena de pernas finas, recém-parida da terrafogo. Jatobá, filha única e órfã, invejava Alberto no colo da mãe e tomava emprestada a voz de Dona Glória, carregada pela brisa, todo fim de ano é fim de mundo e todo fim de mundo é tudo que já tá no ar, tudo que já tá.

Os dois foram apresentados quando as rosas-do-­campo estavam em flor. A criança bamboleante ensaiava a primeira dentre tantas caminhadas de sua vida, dois passos à direita, um à frente, volta e meia um passo a mais. Fechou os olhos, tronco-a-tronco, passou os braços em torno da cintura roliça da árvore, como se reencontrasse um velho amor. Em resposta, Jatobá sacudiu a cabeleira e orvalhou o menino.

As manhãs eram feitas de espera para a árvore des­de então. Passava Seu Antunes, de sobrancelhas sempre franzidas, sempre a caminho da rua, passava Dona Glória, sempre muda, sempre de olhar no chão, passava o gato. Alberto só aparecia depois que o sol coroava Jatobá, estilingue na mão, a mirar tudo que se movia, os pés nos pés d'alface. A árvore, antes tão só e grave, cedia à algazarra, o garoto a enfeitiçava com seu gargalhar e ela aprendia a ser feliz.

Apreciavam o chilreio do inhapim, do tiziu, do curió, até a cantoria ser interrompida pelos urros do pai lá de dentro, espelhos em pedaços, gritos da mãe abafados, então eles se calavam. O menino descontava nos passarinhos, mortos às dezenas, Jatobá via Alberto arder e aprendia a odiar.

Se os ventos traziam nuvens, pingos grossos e ligeiros faziam da poeira lama, transformada por Alberto em esculturas de tatu-canastra e calango junto da amiga. Se os dias eram azuisdourados, Jatobá e o menino repousavam aninhados. O garoto buscava na árvore abrigo para as tempestades que irrompiam em casa, dia a dia a dia a dia, até que o dia não veio.

A lua inovou, cresceu, minguou e encheu, as andorinhas vieram e se foram, Jatobá passou a enxergar a cidade por trás do casebre, cobriu-se de adornos branc'estrelados, Alberto não viu. Os primeiros fios espessos cobriram o rosto do homem, de sobrancelhas sempre franzidas, na cintura a arma do pai.

Dona Glória regava as plantas com os olhos desde que Seu Antunes deixou de aparecer na janela lateral, desde que seu filho deixou de ser menino. Alberto saía quando a estrela d'alva despontava e de quando em quando só voltava n'outro dia, girava nos pés e outra vez na rua. Não amparou Jatobá quando os primeiros frutos rebentaram. 

Muitas vezes o homem bamboleava, como o pequeno andarilho, e a árvore torcia para ele dar dois pas­sos à direita, um à frente, volta e meia um passo a mais, ele não vinha, ele não vinha. A vida toda dedicada a o­lhar, a admirar, a amar Alberto, agora tudo em seu entorno era ruína, o quintal, a casa, a família. A primave­ra dos seus dias retornava à memória, mas seguia plan­tada, sempre a adiar os planos, a ansiar a volta do calor inicial.

O inverno chegou em fevereiro para Jatobá. Alberto tinha os olhos maiores que o rosto, tingidos de carmim, os dentes cerrados à mostra, como um cão em sofrimento. Carregava nos ombros madeira e metal, unidos com um único propósito, recém-tratados, a lâmina a refletir o céu. O homem aproximou-se da árvore e desferiu um golpe, Jatobá implorou, dois, três, Ja­tobá sangrou, Alberto desferiu dez, cem golpes, um so­pro, o tombo.

Jatobá.

 

Aura Grube é escritora, bacharel em Direito e mestranda em Estudos Literários. Este texto, publicado de modo inédito nesta edição do jornal, ganhou o primeiro lugar no VI Concurso Literário Luci Collin, promovido pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) na categoria Conto. Publicou contos em coletâneas e revistas digitais independentes