Um Escritor na Biblioteca | Francisco Alvim 16/12/2019 - 10:30

O poeta Francisco Alvim foi o penúltimo convidado da temporada 2019 do projeto Um Escritor na Biblioteca. Em conversa mediada pelo músico e produtor teatral Flávio Stein, o autor de Passatempo (1974) contou como sua iniciação literária passou ao largo das bibliotecas e da importância fundamental de sua irmã, morta aos 33 anos devido a uma doença grave, em seu despertar literário. “De certa maneira, devo o meu próprio interesse pela poesia ao interesse que ela tinha por mim”, conta Alvim, que começou a rabiscar alguns versos por volta dos 15 anos de idade. 
Diplomata de carreira, o mineiro de Araxá tem uma obra poética enxuta. Apesar de ter estreado há quase meio século, com o livro citado acima, publicou por editoras apenas outros dois livros de poemas inéditos: Elefantes (2000) e O Metro Nenhum (2009). Fora isso, além de muitas produções independentes e artesanais, seus trabalhos foram reunidos nas coletâneas Poemas (1968-2000), de 2004, e na plaquete Francisco Alvim — 80 Anos, lançada pela editora Quelônio em 2018. 
Essa espécie de zelo que subjaz à produção de Alvim condiz com sua visão sobre esse gênero literário. “É uma matéria complicada, essa da linguagem poética”, reflete. E, àqueles que pretendem se embrenhar pelo caminho do fazer poético, o experiente versador deixa algumas palavras: “Acenda esse desejo, cuide dele. E fique sabendo que ele vai ser uma fonte de muita tristeza, abatimento e frustração”.
 

QUADRINHOS 

Minha iniciação literária passou ao largo das bibliotecas. Eu gostava muito de histórias em quadrinhos, de gibis. Durante um bom período da minha infância fui inteiramente absorvido, em termos de literatura e de leitura, pelas revistinhas da Ebal — uma editora de HQs notável no Rio de Janeiro, e com um dono que eu achava interessantíssimo porque ele tinha uma relação íntima com cada freguês. Tinha o selinho do prédio da Ebal na contracapa das edições deles, muito caprichadas. Eu gostava muito. Foi essa a literatura que frequentei durante muito tempo, até meus 12, 13 anos. Tinha a coleção Tesouro da Juventude, que eu adorava, mergulhava naquele tesouro e não saía nunca. Tinha o Monteiro Lobato, outro fascínio. Me lembro até hoje da paixão que tive, paixão amorosa mesmo, tremenda, que poucas vezes tive como adulto, pela Narizinho. O baile que ela teve no fundo do mar, o vestido dela com todos os peixinhos do mar, é uma coisa alucinante. Até hoje vejo esse vestido na minha memória, é uma coisa incrível. É como se ela estivesse vestida de aquário, uma imaginação frondosa a do Monteiro Lobato. E tudo isso culminava, às vezes, comigo colecionando aquelas revistas todas. No dia do meu aniversário, fazíamos um combate de histórias em quadrinhos. Nós nos fechávamos em uma sala ampla que tinha na casa em Belo Horizonte e nos esbordoávamos, destruíamos a coleção de um ano inteiro. E aí, no ano seguinte, começava a coleção da Ebal novamente.
 

APOIO

O livro entra na minha vida lá pelos meus 15 anos. Tive uma irmã que foi uma grande poeta. De certa maneira, devo o meu próprio interesse pela poesia ao interesse que ela tinha por mim. Ela me deu uma grande força, descobriu que eu escrevia algumas coisas, por volta dos meus 15 anos, e teve uma atitude muito generosa — começou a me dar todo um apoio, e aquilo me fez um bem enorme, porque eu tinha uma admiração muito grande por ela. Ela, de certa maneira, prestou muita atenção no que eu estava fazendo e me tirou um pouco daquele marasmo, daquela coisa que certas adolescências têm — um tédio enorme, uma falta do que fazer colossal, um aborrecimento progressivo, uma falta de estímulo. E ela me puxou. Foi aquela mão fraterna. E aí começa uma fase diferente.
 
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                                                                Foto: Kraw Penas
 

PRIMEIROS VERSOS 

A minha produção literária, que veio com o apoio de Ângela, minha irmã, nasceu de um furto. Eu estava no final dessa adolescência aborrecida, com uma tendência para cometer atos de adolescente, e furtei dela uma agenda alemã, linda. Não aguentei e furtei. E comecei a escrever alguns poemas inspirados nos poemas dela. Ela tinha publicado nessa época, aos 20 e poucos anos, o único livro que lançou em vida. Essa minha irmã morreu muito cedo, com 33 anos. Eu a imitava muito, e ela descobriu. Ela gostava muito da agenda e perguntou, mas não confessei. Eu gostava da agenda também. Fui um ladrão convicto. Um dia, ela descobriu. Em vez de ficar danada comigo, falou: “A agenda é sua, e eu gostei. Quero só que você me mostre seus versos de vez em quando, quando tiver vontade”. E aquilo foi mais um ato poético que teve uma repercussão forte no meu coração. Porque, afinal de contas, é a víscera que importa aos poetas, muito mais que a cabeça. 


MORTE DA IRMà

Minha irmã morreu com uma doença muito grave. Foi um golpe profundo na nossa família, e marcou em definitivo a minha vida e dos meus irmãos. É uma dor incrível que a gente sofreu no correr da vida inteira, carregamos cada um este selo. Quando ela ficou doente, conversava muito comigo e me deixou seus poemas. Eu era o depositário, ela confiava muito em deixá-los comigo. Nunca consegui fazer nada com os poemas. Quem fez, e fez muito, foi minha outra irmã, Maria Lúcia, que publicou algumas edições dos livros dela. Ela fez diversos poemas no auge de sua doença, e são lindíssimos, chamados Poemas de Agosto. Ela falava: “Você tem que tirar tudo o que é excessivo desses poemas, não quero referência alguma. Eu quero que seja uma ausência completa de referencialidade, de tudo aquilo que não constitui a essência de uma emoção”. Ela tinha um desejo de abstração enorme.
 

LINGUAGEM POÉTICA 

Minha poesia é um furto. Trabalho muito com a conversa dos outros e, de tanto trabalhar com a conversa dos outros, acabo por trabalhar com “mim para comigo mesmo”. E tem uma quantidade de vozes que você começa a ouvir que não são suas, são vozes soltas. Quase como se fosse uma câmara de ecos e contraecos. Com isso, a imaginação se solta e você começa a perceber uma série de coisas. E, como a poesia é um instrumento, uma matéria dúctil, ela capta tudo. É como se fosse planta, uma chapa imantada, muito mais do que a prosa. A prosa não tem isso. O poema irradia. Ele tem outras falas por trás, outras vozes que entram nele. Às vezes até o título é uma voz que surge a mais. Quando você termina um poema, vem um título que é como uma terceira ou quarta fala que surge e comenta aquilo que está escrito. É uma colagem também. É um campo de experimentação. Quando as linguagens ficam confusas e ela própria se cansa, ela produz uma espécie de usura, tem um gasto muito rápido e intenso. E de repente se renova porque tem uma necessidade, uma força interna, que a leva ao processo de renovação. Por estar perto da necessidade de ter formas novas para coisas novas. Tem um movimento que ela cria que é muito dela, da poesia, e isso traz dificuldades. Essas coisas são muitas vezes mal resolvidas, porque o plano de experimentação não leva a nada, ele se esgota em si próprio. É mais uma aspiração do que propriamente uma conquista, e os defeitos do poema surgem como a evidência de que a prosa esconde muito mais. Na poesia, o que é ruim aparece logo. É difícil enganar. Você engana o poeta, e o poeta se engana. Bandeira dizia uma coisa, coberto de razão: “Procure o poema, não o poeta”. Frequentemente os poetas pensam que estão fazendo poesia, mas não estão. Há uma coisa muito curiosa com a poesia. Não é mistério, essas coisas para mim não existem. Sou muito materialista na minha relação com a literatura, não acredito em mistérios. Acredito na matéria, e é uma matéria complicada, essa da linguagem poética.
 
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        Foto: Kraw Penas
 

“ETA-FERRO” 

O Fausto que aparece no poema “ETA-FERRO”, do livro Elefantes, é meu pai, com quem convivi a vida inteira. Eu o adorava, e seus últimos dez anos ele viveu comigo e com minha mulher em Brasília. Era um homem notável, com uma imaginação fulgurante, uma sensibilidade, um arrojo e experiência de vida extraordinária. E tinha uma fala incrível, então volta e meia ele aparece nos meus poemas. O Deusdedit, que também é citado, era meu padrinho — primo do meu pai, filho da tia Rosinha que também aparece e que era uma professora do meio rural brasileiro. Era uma geração, essa do meu pai, que se urbanizou. Eram todos meninos e meninas da zona da mata mineira, fazenda de café, e ele está contando sobre essas fazendas — Pouso Alegre, Pombal, fazendas que foram acabando. É um poema que tem esse tom da finitude.
 

TUDO É POESIA 

Para falar sobre o papel da poesia na sociedade contemporânea recorro ao Bandeira novamente, que é um poço de sabedoria e genialidade, um poeta extraordinário, porque parece que a poesia é a própria língua que ele usa. É uma coisa extraordinária o grau de materialidade que têm os poemas do Bandeira. Ele escreve na corrente, não contra a corrente. Drummond e Cabral são poetas que escrevem ásperos, pela necessidade do embate, do conflito, do confronto com a língua. O Bandeira, não. O Bandeira vai guiar muito mais do que uma doçura, uma expressão de beleza. O português dele não existe, é uma música que não é música, é a poesia em si. E ele dizia uma coisa extraordinária, que vivemos em uma espécie de plano como se não tivéssemos nascido, como se estivéssemos em uma redoma envoltos em um líquido amniótico. E esse líquido, essa redoma, é a poesia. A vida é poesia. Tudo é poesia. É uma visão extrema, tem uma radicalidade total. Nesse sentido, por caminhos contrários, lembra um pouco a visão de Mallarmé quando ele faz seu grande poema “Um Lance de Dados”. É uma cena muito bonita e está em uma das cartas em que Valéry fala dele. Valéry frequentava muito a casa que Mallarmé tinha às margens do Sena. Eles saíam de noite. Mallarmé acompanhava Valéry numa noite estrelada, até que ele disse: “Acho que fiz um verso de loucos, porque é como se eu estivesse grafando o cosmos”. É esse envolvimento entre o plástico, o físico e o sensorial, que na visão de Bandeira é um líquido amniótico dentro do qual você nunca se desligou e que te envolve. E, ao mesmo tempo, você tem uma relação com o cosmos, isso mostra o espaço da poesia. Que não tem nada a ver com História, essa miséria que a gente vive, nosso cotidiano. E não tem mistério algum nisso, é uma coisa que nos transcende, mas que não tem nenhuma espiritualidade. É uma força da matéria, dessa coisa incrível. E aí sim é um mistério, até porque a gente não sabe o que é a vida, o que nos faz estar aqui agora, nessa presença, e daqui a pouco não estar mais. Apodrecer. Tudo apodrece, tudo morre, tudo acaba, como o poema diz. São coisas que nos deixam perplexos.
 

VERSOS ESPONTÂNEOS 

Os poemas “Acontecimento” e “Muito Ótimo” são mais de envolvimento e integração. Com a natureza, com o cosmos. Essa vertente é justamente a da História, daquele dia a dia. Isso é fruto de uma ambição e me lembro de uma coisa que o Mário Faustino disse. Nos anos 1960, ele fez um trabalho admirável — ele e sua geração. O Goulart e o Reinaldo Jardim criaram o suplemento dominical do Jornal do Brasil, que brilhou nos anos 1950, 1960, no cenário artístico e da literatura brasileira. Com as vanguardas, as neovanguardas, o concretismo e tudo mais. O Mário tinha uma inspiração que era de fazer, a cada cinco anos, um livro que fosse do plano da poesia. Era uma pretensão que ele externou em certos textos críticos. Eu não o faria com aquele rigor, ele era um artista muito rigoroso, que tinha um ideal estético de rigor. E eu, ao contrário, sempre tive uma tendência a ser mais tolerante com as imperfeições e cultivá-las. Não intencionalmente, mas ver e sentir o que há de inventivo na espontaneidade, no improviso, na falta de soluções inteligentes para certas circunstâncias. Não se apertar muito, não se exigir muito nesse plano. Você tem que prestar atenção em mil coisas. A vida é uma sucessão de perigos. Por mais confortável que seja a vida de cada um, é impressionante a quantidade de perigos pelos quais a gente passa no correr de uma vida. Então o tempo fica sendo muito reduzido, pelo menos no meu caso. É daí a necessidade da coisa curta. Era falta de tempo. Mas havia, também, esse desejo de ter a poesia sempre ao lado, de não deixá-la. Ela cria uma tensão no seu espírito e fica numa espécie de tocaia, mas que pode sair. E às vezes, num elevador, você tem que descer num andar e ouve uma frase, e o corte da sua saída já cria um poema. É daí essa dinâmica, esse ritmo que os cortes têm. São frases absolutamente banais, corriqueiras, do dia a dia, mas a maneira que elas produzem na escrita dá um certo choque e revela esse estado de tensão no qual elas nascem. E vem aquela coisa do poema ter muito mais do que está escrito. O que está em volta de um poema.
 

DIPLOMATA 

Acho que não faria a poesia que faço, e que fiz, se não tivesse sido diplomata. Como também, se fosse engenheiro, eu provavelmente faria uma outra poesia. O impacto foi enorme, não só do ponto de vista de interesses crescentes que fui tendo, de entendimentos. Na medida do possível desse outro grande enigma que é esse nosso país. É uma maneira de entender, ou de não entender, o Brasil, porque você está ali em uma instituição de governo. Uma instituição basilar que tem uma força política extrema. Você vê muitas coisas, e eu fui, sobretudo, espectador. Não sou um formulador de política externa. Posso ter sido, em algumas circunstâncias profissionais, um agente. Mas você vê muita coisa, e sobretudo você vê, como no poema “Entranhas”, a figuração dos personagens, dos dramas humanos que vão se criando naqueles entrechos, como se fosse um teatro onde você não conhece o texto e é obrigado a atuar. Quantas vezes eu saía de casa entrando em um tipo de relação pública, de espaço público, sem ter noção. A única noção que um diplomata tem é saber quem manda, de onde vem o poder. Às vezes é uma coisa prazerosa, um negócio que constrói, e você está fazendo parte de algo que vai desenrolar em um projeto, em uma atividade concreta. Outras, não. Outras é um puro jogo, e às vezes um jogo de foice. De pressões muito fortes e externas, pressões de estrangeiros em cima de você. Nunca tive essas pressões, porque nunca ocupei nenhuma função realmente de comando dentro do Itamaraty.
 
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        Foto: Kraw Penas
 

VIAGENS

Saí pouco. Tive uma carreira diplomática muito peculiar nesse sentido, preferi ficar no Brasil. Tive tempos, inclusive, em que me desliguei do Itamaraty e fui trabalhar na José Olympio. Foi uma carreira não muito convencional. Meu primeiro posto foi na Unesco, depois fui para Paris. De 1971 a 1975, fiquei fora do Itamaraty, numa licença, e aí volto para Brasília, onde fico 20 anos. Depois, já saio como chefe de missão. Fui para Barcelona, depois fui para Roterdam como Cônsul Geral, e depois fui Embaixador na Costa Rica. Foram esses os países em que estive. Foram uns 12, 15 anos, mas os colegas, em geral, ficam 30 anos. O poema “Entranhas” traz um pouco desse drama humano dentro de uma instituição privada e, no entanto, na vida íntima do indivíduo: “Irei com prazer, senhor embaixador / Mas antes preciso saber / se aquela putinha também / vai / — Seu filho da puta / O coronel saca a pistola / Não teve medo / — Atira, seu filho da puta / atira / A exoneração não tarda / foi parar em parte / alguma / (alguém ajudou, senão...) / Lá se aposenta / dias depois, já de regresso / passa em Madri / aluga o carro para um passeio / sofre o enfarte e morre / na estrada / fica nu — roubam / tudo / Não tinha família / Leva uns dias no necrotério / até que o acham / Deixou setecentos mil dólares / um apartamento / Da aposentadoria / não desfrutou um só / dia”. De repente, ele se vê abandonado porque entra em confronto com o poder e acaba morrendo. É o limite da força humana dentro de um poder do Leviatã que esmaga o indivíduo.
 

TREMORES 

A sensação que dá é que a inteligência política do país — o norte, a coerência, a razão política — desapareceu. É feito uma espécie de tábula rasa de tudo. E a sensação que se tem é que eles próprios não sabem. O grau de crueldade que nós atingimos como sociedade é uma coisa inimaginável. Você acorda com reportagens pungentes, as pessoas correndo das favelas e os repórteres atrás com o microfone. Vi várias vezes. A pessoa está fazendo a barba, e de repente leva um tiro na garganta. Um menino brincando na rua... É uma coisa desesperante. Ou você acredita nos reinos de outros mundos, ou você não sabe para onde olha. Acho que isso vai acabar muito mal, tenho muito medo. Nasci com medo nesse país, já nasci tremendo. Sofro de uma coisa camada “tremor essencial”, nome lindíssimo. E, a esse tremor essencial, acrescentei mais dois: o “existencial” e o “reverencial”, que é o da minha profissão. Vivo com esses três tremores.


MATERIALIDADE E ALMA 

O plano da rima, dos versos, é a materialidade da linguagem. A parte da alma do poeta é exatamente essa química que se opera entre a linguagem fecundada pela vivência de cada um, pelo tempo de vida e de transcurso, das purezas e impurezas que é o transcorrer da vida humana. Quando esses dois planos se fecundam mutuamente, você pode ter a poesia. Mas isso não é sempre o que ocorre. Às vezes ocorre com muita intensidade nas coisas absolutamente geniais, e só o tempo vai dizer. É uma linguagem que fica. A Divina Comédia, por exemplo, está aí há quatro séculos. Você pega Ilíada, que é outra maravilha, você pega Baudelaire. E agora você pega no Brasil o Cobra Norato, do Raul Bopp, ou Cão sem Plumas, do João Cabral — ao meu ver, uma das maiores poesias sociais que o Brasil já fez, se não a maior. Talvez tão grande quanto A Rosa do Povo, do Drummond.
 

DALTON E LEMINSKI 

Dalton é uma figura extraordinária e devo a ele lições incríveis, do ponto de vista do conhecimento. A elipse de Dalton é extraordinária, tem um ritmo. E a capacidade ficcional dele, de trazer para esse plano tonalidades que não são expressas. Ele me ensinou coisas do arco-da- -velha. Não sei se fui um bom aluno, mas adoro o Dalton. Não perco um livro dele, e ansiava, e ia atrás dele, correndo atrás. Adoro. Leminski é uma figura. Eu o conheci, mas tive pouco contato. Acho ele um poeta de um interesse muito grande. De vez em quando ele tem uns acertos prodigiosos que atualizam muito a experiência da nossa geração, inclusive em planos muito interessantes. Essa história de que a poesia não diz tudo, é essa coisa que irradia, que tem um espaço que não é dito e que escapa à vontade do poeta. Nesses momentos, acho que ele tem poemas fantásticos, realmente muito bons. Aquele em que ele começa com aspirações de ser o poeta mais genial de todos, o poeta isso e aquilo, e depois vai se acomodando. Um poema de grande impacto. É toda uma época, toda uma dicção, um ensaísta muito interessante. E estudioso, você sente que ele procurava. E ele sentiu como poucos o que há também de frustrante no exercício da poesia. Tem muitos poemas fracos dele, assim como tem em todos nós. A poesia é muito frágil.
 

FARDO 

Não acho que poesia seja para todos, inclusive não é nem para os próprios poetas. Frequentemente os poetas pensam que estão fazendo poesia e não estão. Tem muitos poemas fracos. Mas é claro, a coisa se organiza ao redor de determinados nomes porque eles trabalham mais, têm um compromisso maior. Sartre, aliás, tem uma passagem sobre isso quando ele compara como surge um escritor nos Estados Unidos e na França. Na França é o seguinte: André Breton está lá em uma aula nos seus 15 anos, ouve o professor falar sobre Mallarmé e fica todo entusiasmado. Aí André Breton fala: “Eu quero ser igual, vou ser esse sujeito”. E, no caso do André Breton, até que dá um pouco certo, mas outros ficam pelo caminho. É assim com os poetas como com os jogadores de futebol. É a tragédia da vida, você tem que carregar suas ambições e frustrações.
 
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        Foto: Kraw Penas
 

MUITAS DÉCADAS 

Leio os jovens escritores, mas reajo pouco porque 80 anos são muitas décadas. Você fica cansado, lento, as coisas começam a demorar muito. Para amarrar o sapato você leva muito mais tempo do que levava. Então, ler as coisas levam muito mais tempo, e raciocinar sobre elas... Você esquece. Às vezes preciso ler três, quatro vezes o mesmo texto. E tem uma porção de coisas que tenho vontade de ler, e em geral não tenho uma personalidade muito forte para dizer que vou ler um só tipo de coisa. Leio tudo e vira uma bagunça danada, uma desordem mental colossal.


AO JOVEM POETA

Primeiro é o querer, o desejo. Acenda esse desejo, cuide dele. E fique sabendo que ele vai ser uma fonte de muita tristeza, abatimento e frustração. Se você tem estrutura para aguentar isso, vá em frente. Não conte com o resultado. É uma mão aberta para o nada, pode dar certo como pode não dar. Depende de sorte, de você estar presente em certas horas, de relações, e coisas da vida. Eu tive muita sorte. Já adolescente, estava cercado de gente, no Rio de Janeiro, que estava fazendo a mesma coisa. Mas sobretudo essa capacidade de querer e de suportar a frustração. E de não querer nada em troca.
 

FUTURO DA LITERATURA 

O futuro a Deus pertence, se existe um Deus. É muito difícil saber. Para muita gente a literatura acabou, as artes acabaram e o que existe hoje é diversão. Há pouco tempo, li uma entrevista do [Giulio Carlo] Argan, que é um crítico notável, e ele estava inteiramente convicto de que a arte tinha acabado. E, como ele, muita gente acha que hoje em dia o que existe é diversão. Não sou desse parecer. Acho que, enquanto houver o homem, a arte responde a uma série de coisas que são necessidades humanas, para as quais não vejo fim.


AVANÇO TECNOLÓGICO

Tudo que acontece com o homem é matéria de matéria, começa a existir, e nunca é empobrecedor. Tem aspectos empobrecedores, sem dúvida, mas é assim desde as cavernas. Você tem que fazer opções. E tem que enfrentar a tremenda realidade. Quando a gente pensa em como lidamos com a realidade, e o que é a história do homem, é uma coisa sem limites, mas você fica absolutamente mudo. Como é que descobriram que, por exemplo, sal é gostoso na comida? Como descobriram que uma plantinha não sei da onde dá um efeito como o da maconha? Como descobriram desde essas coisinhas até essas coisas como a teoria da gravidade? São coisas inconcebíveis, como o homem vai se relacionando com essa realidade. E é dessa relação que a História surge. Então não pode ser uma coisa ruim. Não pode. Só pode ser uma coisa que enriquece, que vai criar novas realidades, e você vai ter que lidar com elas e com aquilo que trazem de destruição. A morte está dentro da vida, e vice- -versa. Você tem que superar e encontrar uma solução para esse impasse, senão você acaba se extinguindo. E a gente corre esse risco, claro. Isso é só mais um dos riscos. A vida é um risco permanente.

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