TRADUÇÃO | Marcial 28/04/2023 - 12:29

A receita da felicidade e outros epigramas

 

por Fábio Cairolli

 

I, 57 (a menina que eu desejo)

Qual menina desejo, Flaco, e qual não quero?

    Quero a que nem é fácil, nem difícil.

Aprovo a que no meio está dos dois extremos:

    não quero quem tortura nem satura.

 

Qualem, Flacce, uelim quaeris nolimque puellam?

    nolo nimis facilem difficilemque nimis.

Illud quod medium est atque inter utrumque probamus:

    nec uolo quod cruciat nec uolo quod satiat.

 

*

VII, 3 (A um que pede os livros)

Por que não mando, Pontiliano, meus livrinhos?

    Pra que não mandes, Pontiliano, os teus.

 

Cur non mitto meos tibi, Pontiliane, libellos?

    Ne mihi tu mittas, Pontiliane, tuos.

 

*

IV, 56 (A um caçador de heranças)

Por dar grandes presentes a velhos, viúvas,

      te julgas, Gargiliano, generoso?

Nada é mais sórdido que tu, nada é mais sujo,

    que presentes chamaste às falcatruas:

assim o falso anzol engana o peixe ansioso,

    a isca assim engana a tola fera.

O que é ser liberal, o que é dar, Gargiliano,

    te ensino, se não sabes: dá pra mim.

 

Munera quod senibus uiduisque ingentia mittis,

    uis te munificum, Gargiliane, uocem?

sordidius nihil est, nihil est te spurcius uno,

    qui potes insidias dona uocare tuas:

sic auidis fallax indulget piscibus hamus,

    callida sic stultas decipit esca feras.

Quid sit largiri, quid sit donare docebo,

    si nescis: dona, Gargiliane, mihi.

 

*

III, 26 (sobre um homem de posses)

Sozinho, Cândido, tens terras e dinheiro,

    ouro sozinho tens, sozinho mirra,

mássicos tens sozinho e cécubos de Opímio,

    sozinho coração, sozinho engenho.

Sozinho, tudo tens (e achas que eu vou negar?)

   mas tens, Cândido, a esposa co’ a galera.

 

Praedia solus habes et solus, Candide, nummos,

    aurea solus habes, murrina solus habes,

Massica solus habes et Opimi Caecuba solus,

   et cor solus habes, solus et ingenium.

Omnia solus habes – hoc me puta uelle negare! –

    uxorem sed habes, Candide, cum populo.

 

(N. T.) Mássico e cécubo são denominações de vinhos finíssimos no tempo dos romanos)

 

*

VIII, 69 (Um amante dos velho poetas)

Somente os velhos tu, Vacerra, admiras

e não louvas senão poetas mortos.

Peço perdão, Vacerra, pois não vale

a pena, para te agradar, morrer.

 

Miraris ueteres, Vacerra, solos

nec laudas nisi mortuos poetas.

Ignoscas petimus, Vacerra: tanti

non est, ut placeam tibi, perire.

 

*

X, 47 (A receita da felicidade)

O que transforma a vida em mais feliz

amabilíssimo Marcial, é isto:

bens ganhos não no esforço, mas herdados,

um campo em nada ingrato, eterna chama,

pleito algum, toga rara, mente em calma,

forças inatas, corpo com saúde,

prudência honesta, amigos semelhantes,

convívio fácil, mesa sem requintes,

noite não ébria, mas de angústias livre,

cama não triste, mas, porém, pudica,

um sono que abrevie a escuridão,

não querer nada mais que ser quem és,

não temer nem pedir o último dia.

 

Vitam quae faciant beatiorem,

iucundissime Martialis, haec sunt:

res non parta labore, sed relicta;

non ingratus ager, focus perennis;

lis numquam, toga rara, mens quieta;

uires ingenuae, salubre corpus;

prudens simplicitas, pares amici;

conuictus facilis, sine arte mensa;

nox non ebria, sed soluta curis;

non tristis torus et tamen pudicus;

somnus, qui faciat breues tenebras:

quod sis, esse uelis nihilque malis;

summum nec metuas diem nec optes.

 

 

Nota do tradutor

Marcos Valério Marcial foi um poeta latino, nascido na cidade de Bílbilis, na província da Hispânia romana, entre 38 e 40 d. C.. Migrou para Roma na juventude, durante os anos terríveis de Nero. Ali, sem maiores recursos ou projeção social, se estabeleceu na obscura condição de cliente, até cerca de 80 d. C., quando escreveu o Livro dos Espetáculos, descrição da inauguração do Coliseu. A obra lhe rendeu notoriedade e proteção dos imperadores Tito e Domiciano. A partir daí, publicou, de forma praticamente ininterrupta, um livro por ano de seus Epigramas, breves e vívidos retratos poéticos da sociedade do seu tempo. A fama, contudo, não foi solução para as agruras da vida romana, e o poeta nutriu uma paixão nostálgica por sua terra e outros paraísos rurais. Em consequência da morte de Domiciano, em 96, e saturado com a realidade Romana, concretizou a sonhada volta à terra natal, onde, porém, escreveu a custo, e morreu pouco depois de 101 d. C.

Os títulos explicativos acrescentados aos epigramas não constam dos originais. 

 

 

 

Fábio Cairolli é poeta, tradutor e professor de Língua e Literatura Latina na UFPR. Natural de Santo André (SP), é formado e pós-graduado em Letras Clássicas pela USP. Além de Marcial, de quem publicou uma tradução do Livro dos Espetáculos (2018, em parceria com João Angelo Oliva Neto) e prepara a publicação da poesia completa, já traduziu o poeta Pérsio (2019) e se dedica à tradução de poetas latinos em forma de cordel, com quatro livretos já produzidos. Lançou os livros de poemas Amores (2005), Sátiras (2011) e Eneias da Silva + Janeiro (2022).