SÉRIE ESPECIAL | Mulheres contra a Ditadura 15/07/2024 - 09:46

Cheguei ao mundo quando o pior e o melhor aconteciam 

Por Marise Manoel

 

A conversa desta Mesa Poesia e Resistência tematiza um momento complexo do nosso país, ainda em estudo. Estamos aqui para um rápido relato do como vivemos o clima de agitação cultural, no tempo da chamada Geração Mimeógrafo ou Poesia Marginal. E como vivemos o “tempo da maldade”, como cantou Chico Buarque (música João e Maria, de 1978), da odiosa e abjeta ditadura militar, que praticou tortura e censura sobre corpos físicos e textuais, sobre nossas ideias e ideais. Estes tão admiravelmente utópicos.

Os anos de 1970 foram difíceis, pesados, obscuros. Havia muito medo, medo de sair de casa, de ir e voltar do trabalho, de fazer reunião, de andar sem documentos, de desaparecer. Foram anos tensos, os chamados Anos de Chumbo. O medo de que falo não é sinônimo de covardia, não, ao contrário. É um medo encorpado de ódio e nojo, como bem o definiu dr. Ulisses Guimarães, quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, dizendo “temos ódio à ditadura; ódio e nojo”. Como sabem, a ditadura militar vitimou centenas de pessoas, a maioria jovens sonhadores, de forma perversa e arbitrária.

 

Lembro de ter muitos poemas escritos, calhamaços, quando ganhei um prêmio no Concurso de Poemas Abertura da União Paranaense de Estudantes – UPES, em 1980 (livro Abertura IV, Curitiba, UPES, 1980). Foi um terceiro lugar, porém meu coração ficou aos pulos, porque participava da Comissão Julgadora do Concurso meu poeta de cabeceira, o gigante Ferreira Gullar. Após a premiação, fomos convidados a jantar com o poeta no restaurante Bar Palácio, onde mulheres eram proibidas de entrar desacompanhadas. O jantar foi uma delícia! Considero esta uma história exemplar de resistência cultural e poética.

 

Aprendi a ler poesia e poetas, afortunadamente, com o poeta Reinoldo Atem, que conheci em atividades consideradas subversivas de que costumávamos participar: os singelos Varais de Poesias. Tratava-se de folhas de papel, artesanalmente elaboradas por poetas de diferentes dicções, que mostravam poemas pendurados em cordas muito frágeis. A poesia estava na praça, acessível a todos os passantes. Nessa época, eu escrevia muito, mas lia pouco os poetas. E Reinoldo me ajudou a mudar essa situação, radicalmente.

Neste tempo de mais de quarenta anos de lida com a poesia, publiquei livros, poemas em folhetos, revistas, jornais, antologias, coletâneas. Cito, em especial, as Coletânea de poesias (Casa do Poeta do Paraná, Curitiba, 1983) e Tardes literárias pulsa palavra (Casa do Poeta do Paraná, Curitiba, 1994), ambas da Casa do Poeta. O sentido maior desses encontros era o de estarmos juntos, num ambiente de leitura de poemas e discussões político-estéticas.

Lembro ainda de duas outras coletâneas de poemas. O livro Carpe diem – poemas, que foi lançado pela Editora Posigraf, em 1990, mas teve sua organização pensada anos antes (apoio Secretaria de Estado da Cultura e Habeas Coppus Bar). Nessa obra, somos doze poetas, o artista plástico e ilustrador Jair Mendes, o fotógrafo Haraton Maravalhas, a jornalista Adélia Maria Lopes e outras figuras que agitavam o ambiente cultural do final dos anos oitenta. O livro também traz uma homenagem ao poeta Paulo Leminski, na perfeita fotografia do mestre Macacheira. E quem faz a orelha do livro é o poeta e escritor Wilson Rio Apa, homem de incontestável brilhantismo.

A outra obra que merece destaque é a Coletânea do Bife Sujo (Edições Clandestinas, Curitiba, século XXI, 1987). Com capa do artista plástico Claúdio Kambé, a coletânea reuniu artistas de grande projeção na cultura paranaense, juntando poetas, escritores, cartunistas, artistas plásticos, fotógrafos, desenhistas e outros bichos esquisitos. Dois deles estão nesta Mesa, Nilson Monteiro e esta poetinha aqui.

 

mulheres contra a ditadura
foto: Dias Junior

Autora exibe exemplar de Mundéus – poemas escolhidos (2022)

 

 

Minha produção não é extensa, pelo que me considero uma poeta bissexta, ou seja, vez ou outra, dou às caras por aí. Mais precisamente, para responder ao tema da Mesa, nunca me considerei uma poeta marginal, pois não reúno pelo menos dois traços mais evidentes que distinguem esses poetas, ou esse movimento literário: a impressão de livro em mimeógrafo (reproduzi apenas poemas soltos desse modo, e o faço até hoje – haverá distribuição de filipetas poéticas ao final do evento) e as marcas linguísticas abundantes dos palavrões, gírias e intervenções sintáticas agressivas e polêmicas.

Sempre editei meus livros, aí sim, marginalmente, com o apoio dos amigos e com crédito bancário. E marginal tem sido a forma de distribuição de meu trabalho. Uma vez distante do eixo cultural e editorial Rio-São Paulo, restava-nos, e falo de muitos, sair de bar em bar, levando exemplares debaixo do braço. Primeiro foi o Galo sem turno, livro de poemas que publiquei em 1980 – ainda ontem, folheando o livro da Heloisa Teixeira, Rebeldes e marginais – cultura dos anos de chumbo, 1960-1970 (Bazar do Tempo, Rio de Janeiro, 2024), li que ela dedica o livro àqueles que lhe mostraram “a urgência aflita de mudar o mundo”. Há mais de quarenta anos, escrevi a epígrafe de meu Galo, onde se lê: “aos que querem mudar”. Logo depois, publico o Perfil de sal, em 1983.

O livro Mundéus – poemas escolhidos, que lancei em 2022 (Mundéus – poemas escolhidos. Curitiba, 2022), reúne alguns poemas desses dois primeiros livros da década de oitenta e poemas novos. Produzi o livro como antologia, com indicações bibliográficas em alguns poemas, na certeza que iria morrer na pandemia do Covid19; quis reunir minhas criaturinhas preferidas em um só compêndio... Vaidade! Tudo é vaidade!

 

Se fizemos resistência? Creio que sim! Lembro das bandeirolas poéticas que distribuíamos em eventos literários; do bar do Cardoso, o querido poeta de Poenau (Alberto Cardoso. Poenau – poesia e proesia. Curitiba,1988), versado na cultura caiçara; e do livro Feiticeiro Inventor, de 1985 (Feiticeiro Inventor - antologia. Curitiba, Criar, 1985. Seleção e organização de Hamilton Faria). Esse título foi escolhido e retirado do poema Retrato de Helena Kolody, para o livro tão bem pensado e organizado pelo poeta aqui presente, Hamilton Faria. A antologia reúne um grupo de poetas muito ativos nas décadas de 1970 e início dos anos de 1980. Ali estamos com o Alberto Cardoso, a Alice Ruiz e o Paulo Leminski, o Thadeu Wojciechowski, o Nilson Monteiro, o Reinoldo Atem e o Hamilton Faria, incansável organizador da obra.

Gostaria de mencionar ainda, com muito carinho, apenas dois nomes importantes para a literatura paranaense, dentre muitos, cuja produção vem de longe. Lembro deles pela densidade e beleza de suas obras. Os escritores e poetas Sérgio Rubens Sossélla, de Tatuagens de Nathannaël (Fundação Cultural, 1981), que produziu dezenas de livros de maneira artística e artesanal; e Wilson Bueno, escritor vanguardista e editor premiado do jornal O Nicolau (1987), que foi apresentado à vida literária pelo Paulo Leminski, com a publicação de Bolero’s Bar (1986).

 

Vivíamos num regime de exceção, em que resistir era um imperativo ético, existencial, contra todas as misérias e abandonos, contra todo tipo de violência e discriminação. Nessa luta, a poesia diária nos deu algum alento. E para homenagear Paulo Leminski, também contemplado neste Festival da Palavra pelo seu aniversário, citamos aqui seu famoso poema: “En la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas” (Caprichos e relaxos, 1983).

Pensamos que não importa muito o que o poema diz ou mostra; se ele é panfletário, engajado, concreto, psicodélico, marginal. Importa mais a sua forma no mundo, a presença incômoda de uma pausa entre barulhos utilitários; um modo de ser resistência ao cerceamento ideológico e à cristalização da linguagem.

A poesia pode se apresentar dura ou suave, em versos longos ou curtos e de leitura fácil. Aqui relembro Gullar: “... A luta de resistência / se trava / em todo lugar / por cima dos edifícios / por sobre as águas do mar” (Toda Poesia. Poema Verão, p.238).

O poema é sempre resistência! Maltrajada e andarilha, ou vestindo o fardão, a poesia traz a palavra rebelde e renovada. A palavra que diz e não diz, grita e silencia, abre fissuras na linguagem e ressoa sentidos múltiplos, rearranjando e subvertendo a ordem sintática, a ordem do mundo, a inércia. Resistir é retirar a palavra da tropa, libertá-la das ordens do dia, para que possa pensar coisas impossíveis, “seis delas antes do café da manhã” (fala da Rainha Branca. Alice através do Espelho. Lewis Carroll, 1865).

Todo poema é resistência! É lutar com palavras, como disse Drummond. O poema se dá como contraponto ao preconceito social e linguístico. Fazer versos é se defender, gritar, cantar um novo mundo. Pode parecer piegas, mas penso que somos irmanados com o irreverente poeta português Luís Vaz de Camões (Os Lusíadas. Lisboa, 1572): náufragos, atravessamos o mar da Conchinchina para salvar nossos manuscritos. Escrevemos para salvar nossa humanidade pessoal e coletiva.

 

Escapando – e chegando ao final desta fala –, para o grande palco da resistência, o teatro brasileiro, relembro, com a leitura de Heloisa Teixeira aqui já citada, o musical Opinião (de Oduvaldo Vianna, Armando Costa e Paulo Pontes, e elenco formado por Zé Keti, João do Vale e Nara Leão), dirigido por Augusto Boal, cuja estreia se deu logo após o golpe militar de dezembro de 1964: “mais do que nunca é preciso cantar”. Continua sendo assim: mais do que nunca, é preciso cantar e ousar fazer poemas, para arejar as instituições sociais, língua e linguagem, no horizonte da elaboração permanente de novas utopias.

Afinal, Política Cultural não é mais uma questão de Segurança Nacional. Será?

 

Muito obrigada,

Marise Manoel

 

II FESTIVAL DA PALAVRA

PMC/FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA/

INSTITUTO CURITIBA DE ARTE E CULTURA

guia.curitiba.pr.gov.br

POESIA E RESISTÊNCIA

Quando: 18 de junho de 2024, das 9h às 10h

Onde: Memorial de Curitiba

Descrição: Bate-papo entre os poetas que produziram em Curitiba e outras cidades do Paraná nas décadas de

1970/1980, quando a expressão pela palavra sofria censura e a poesia mais livre na forma era considerada marginal.

Poetas Thadeu Wojciechowski / Marise Manoel / Hamilton Faria /

Bebeti A. Gurgel / Reinoldo Atem. Mediação: Nilson Monteiro. Curadoria: Luci Collin