Reportagem | Retratos da Leitura no Brasil 27/10/2020 - 12:38

Sem tempo para romance

Em meio a uma queda significativa no número de leitores, especialistas e coordenadores da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil avaliam um crescente desinteresse em relação aos autores brasileiros e à narrativa longa

 

Bruno Raphael Müller

 

O Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores nos últimos cinco anos. Como medida de comparação, é como se toda a população da Nova Zelândia, em meia década, nunca mais optasse por abrir um livro. Esse talvez seja um dos recortes que mais chamam a atenção na 5ª edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, apresentada no início de setembro pelo Instituto Pró-Livro e pelo Itaú Cultural.

Porém, para compreender o que ocorreu de 2015 a 2019 nos 208 municípios que participaram do levantamento, é necessário se debruçar com mais atenção: a prática e interesse pela leitura, afinal, tende a transitar a partir da escola, de casa, da biblioteca e, é claro, do imaginário das pessoas. No Brasil, ao menos por agora, eles se tornaram ainda mais escassos: 52% dos entrevistados, o equivalente a 100 milhões de brasileiros, declararam ter lido um livro nos últimos três meses, inteiro ou em partes.

Entender essa queda, avaliam os especialistas em literatura, exige uma atenção às pistas. O principal motivo, dado por 47% dos entrevistados, é que não se lê mais por falta de tempo; em segundo, 9% disseram que dão preferência a outras atividades.

“Em meio à reprovação pessoal e social de não estar na escola, os respondentes podem ter se salvaguardado, criando um dado positivo sobre si mesmos, no inconsciente”, pondera José Carlos Fernandes, jornalista e professor do curso de Comunicação Social na Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Ler a pesquisa é mais entender ‘o que o entrevistado quis dizer com o que disse’ do que ‘o que disse’ de fato. Nesse sentido, diria que a pesquisa tem de ser lida em parceria com outros estudos, que ajudem a entendê-la. E não ser lida como absoluta, mas como estímulo para investigar nuances regionais.”

 

Curitiba à frente
Na comparação com a média nacional, a propósito, Curitiba tem números positivos: 63% da população, o equivalente a 1,1 milhão de pessoas, leu pelo menos um livro nos últimos três meses. É mais do que em São Paulo (60%), Belo Horizonte (53%) e Rio de Janeiro (47%). Diferentemente do que ocorre no restante do país, em que a Classe C é responsável por 47% do total de leitores, na capital paranaense a Classe B responde por mais da metade das pessoas que leram um livro recentemente. Na avaliação de Fernandes, no entanto, os números da capital não podem servir como parâmetro para traçar um perfil do leitor paranaense.

“Em miúdos, o Paraná não é Curitiba, Maringá, Londrina, Ponta Grossa, Cascavel e Foz do Iguaçu. Há 10 anos, o empresário Marcelo Almeida custeou uma versão da Retratos exclusiva para o Paraná. Mandou imprimir e depois não deixou circular os resultados, pois entendeu que a pesquisa tinha furos e que daria informações erradas”, conta. “Mesmo assim, o saldo da pesquisa mostrava um estado que não conhecia nem Dalton Trevisan, nem Paulo Leminski — os índices de quem os conhecia oscilava entre 3% e 9%. O que quer dizer isso? Não se lê Dalton na escola por causa da temática — que pode incluir erotismo e daí as bancadas conservadoras saem do ralo — nem Leminski, pois se lê pouca poesia na escola. Ou seja, a leitura no Paraná parecia limitada à escola. O Sul não existe da maneira como se pensa, o Paraná também não. Diria que o estado que passou por uma revolução agrícola e urbanística não passou por uma revolução no campo da cultura, ainda que seja o estado de grandes artistas visuais, músicos, escritores e coisa e tal.”

Detentora da Cadeira 27 da Academia Paranaense de Letras, a escritora Marta Morais da Costa vê com otimismo o cenário no estado, apesar de reconhecer que ainda há muito o que melhorar. Para a autora, as políticas públicas são fundamentais para reverter o quadro de diminuição de leitores. Nesse contexto, cita as bibliotecas como um espaço que deve ser fortalecido e ampliado nas cidades brasileiras.

“O que se percebe, no entanto, é que há uma diminuição de bibliotecas públicas no país (sejam escolares ou não): diminuiu de 67% para 47% o número de bibliotecas”, alerta. “A biblioteca é uma instituição cultural democrática e fundamental para o desenvolvimento do país, em todas as áreas: pensamento, ciência, economia, história, literatura, artes e profissões, entre outras. Se acreditarmos como Amadou Bâ, que ‘quando um velho morre, é uma biblioteca que queima’ (e ele está se referindo aos velhos contadores de histórias), quando uma biblioteca desaparece, é o futuro que se queima, é um passo em direção ao atraso.”

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Ilustração: DW Ribatski

 

Acesso à literatura
A coordenadora da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, Zoara Failla, reforça que em nenhum momento existiu a pretensão de avaliar as bibliotecas brasileiras por meio da pesquisa. “Perguntamos aos brasileiros de mais de cinco anos de idade que representação eles têm sobre as bibliotecas em sua localidade”, diz. “O que percebemos é: a grande maioria percebe a biblioteca como um local para estudantes e não a identificam como um espaço para acesso à literatura.”

Apenas 17% dos brasileiros frequenta a biblioteca “sempre” ou “às vezes”. Dentro dessa amostragem, 90% considera o espaço bom e bem conservado, e 57% diz que o principal motivo para visitar é a qualidade do acervo. Isso se deve, avalia Zoara, devido às aquisições feitas pelos governos para estes locais. Em um cenário de possível tributação no valor dos livros num futuro próximo, uma das consequências negativas seria uma diminuição da capacidade de renovação das bibliotecas para novas obras.

“O aumento no preço não impacta só no comprador, mas impactará também nas bibliotecas: há um orçamento público para isso e um incremento de valor na casa de 12% resultará em uma redução de acervo semelhante. A cadeia toda será impactada”, afirma. A pandemia da Covid-19, estima, talvez já tenha dado início ao processo de elitização da leitura. “Vinte e dois por cento dos entrevistados dizem que o preço é um fator importante na compra de livro. Se associarmos a crise recente ao aumento no valor dos livros, essa população de 27 milhões (porcentagem de leitores da Classe D/E) certamente não terá condições de ler livros”, lamenta.

Já José Carlos Fernandes credita à insegurança nas cidades um maior distanciamento, principalmente de crianças e jovens, dos espaços públicos. “Em tese, a pesquisa Retratos deveria ser de estímulo para cartografias das novas políticas de bibliotecas, como se esboçou fazer no Ministério da Cultura do início dos anos 2000. A tragédia maior é o abandono dessas investigações”, opina.

 

Autores brasileiros
Quando leu a pesquisa, alguns dados chamaram a atenção de João Luís Ceccantini, professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O mais chocante: praticamente não havia autores brasileiros entre os 50 mais mencionados no gênero de literatura infantil, juvenil e young adult.

“Lygia Bojunga, Marina Colasanti e Ziraldo, entre mais de 50 autores, simplesmente não aparecem na pesquisa”, lamenta. “Há um descompasso na mediação para que esses livros cheguem até esses leitores. Será que é só na escola ou há falta de políticas públicas e, ao mesmo tempo, não se investe na formação de mediadores? Há um clichê que se diz por aí que ‘os jovens não leem’. A atual pesquisa reforça que, se há alguém que lê hoje, são os jovens. Eles leem muitos livros que são pensados para eles, mas é duro que a maioria é títulos estrangeiros; nos títulos nacionais, apesar de haver boas ofertas, quase não aparecem menções.”

Ceccantini avalia com pessimismo o atual momento, principalmente para os novos autores brasileiros. Para ele, o momento propõe múltiplos canais de divulgação, porém poucos receptores. “Nunca antes tivemos tantas possibilidades, facilidades e diversidade para um jovem autor trazer seu livro a público. Mas está se tornando uma coisa de ‘entendidos’, de nicho… uma ação entre amigos. O risco de termos obras médias para boas de ficarem esquecidas e nunca serem lidas por ninguém é bem grande”, reflete.

 

Cultura de abandono
O imediatismo de um mundo totalmente imerso nas redes sociais trouxe consequências negativas, avaliam os entrevistados, para um gênero em específico: o romance. Se dispor a ler por horas, dias e meses uma obra parece pouco recompensatório se comparado à duração de uma série de TV, por exemplo.

A leitura do gênero, na pesquisa, cai de 32% na faixa de 25 a 29 anos para 20% entre os 50 e 59 anos e desaba a 13% para leitores com 70 anos ou mais. “Você não vê um livro do Rubem Fonseca ou um romance nacional entre as obras mais lembradas”, lamenta Ceccantini. “Há a pulverização de autores, obras e não vemos um reflexo de um esforço coordenado da nação para a literatura chegar a algum lugar.”

A leitura fragmentada por parte do brasileiro — como da Bíblia, uma das obras mais lembradas na Pesquisa — também cria uma cultura de abandono parcial ou total de um livro com mais frequência, avalia José Carlos Fernandes. “A velocidade, os meios eletrônicos e as próprias práticas escolares reforçam a leitura de partes em vez do todo”, avalia José Carlos Fernandes. “Mais do que lamentar, é preciso lidar com isso e projetar esse fato nos programas de leitura. Por exemplo, cresce a compra de audiobook, há a febre dos podcasts.”

Zoara Failla diz que, inclusive, as redes sociais foram um tema de discussão durante a edição deste ano, justamente pelo fato de que poemas e contos acabam reverberando, ocasionalmente, em grupos de WhatsApp ou por meio de fotos no Instagram.

“Para nós foi difícil separar e dizer ‘bom, vamos considerar isso literatura?’. É possível que alguém que tenha lido uma poesia do Manoel de Barros nas redes fique tão entusiasmado que, tomara, vá atrás de ler outras. Mas é um fenômeno difícil de avaliar”, conta.

Para Marta Morais, a “falta de tempo” que boa parte dos entrevistados atribuiu para não ler mais nem sempre tem a ver com o relógio. E, à medida que o tempo de vida fica mais escasso, ocorre uma inversão de valores: a literatura dá lugar à religião. Um processo, avalia ela, de visão equivocada do significado da literatura durante toda uma vida.

“Quem reconhece o valor da leitura não perde tempo e até o fabrica”, diz. “Apesar de todos os esforços de parte dos agentes que se dedicam a promover a leitura, os números em quase todas as regiões do Brasil e em muitos aspectos apresentam um declínio relevante. Por mais que se insista no valor social, psíquico, estético, cultural e emocional de obras literárias, os resultados da pesquisa indicam que os leitores maduros ainda veem a literatura como entretenimento, demandando um tempo de ócio. Existe a preferência por narrativas curtas, o abandono da poesia e a queda do romance.”

Nesse contexto, estaríamos vivendo uma geração focada em leituras superficiais, alheia ao investimento em uma obra que exija tempo e dedicação, muitas vezes as mais recompensadoras. Assim, a situação de melhorar o que os brasileiros leem passaria a ser uma questão não de décadas, mas de séculos.

“O papel da literatura fica restrito a uma disponibilidade de ânimo de espíritos ainda dispostos a viver a diversidade, equivocadamente atribuída a idades mais jovens”, reflete. “A velhice parece excluir das necessidades de leitura a imaginação, a ludicidade, a linguagem criativa, personagens diferentes da pessoa do leitor, mundos não conhecidos ou experiências vicárias de vidas diferentes.”

 

BRUNO RAPHAEL MÜLLER é jornalista. Vive em Curitiba (PR) e já trabalhou para a Revista Rolling Stone Brasil, Gazeta do Povo e RPC.