Reportagem | Dramaturgia no Brasil 22/12/2020 - 13:50

Ler teatro: uma experiência visual e imaginativa

Conheça alguns dos dramaturgos que têm publicado suas obras no Brasil, as editoras com coleções voltadas para esse nicho e exemplos de obras que traduzem tom de voz e outras particularidades cênicas para as páginas do livro

Helena Carnieri

 

Talvez a ideia de ler uma peça de teatro em livro soe estranha — afinal, o lugar dela não seria no palco, na boca de atores que lhe deem vida? Para dramaturgos, estudiosos e editores literários apaixonados por todas as manifestações cênicas, não necessariamente. Duas correntes de pensamento têm guiado as publicações de dramaturgia na contemporaneidade. A primeira vê o registro impresso do texto como uma forma de preservar para a posteridade a memória do espetáculo, por natureza algo efêmero. A segunda defende a peça escrita com esses argumentos e vai além, considerando-a uma potência capaz de ser saboreada em si mesma. Leitores entenderão — que o digam os amantes de Shakespeare, Molière...

No Brasil, dramaturgos ativos no século XIX, como Martins Pena, Joaquim Manoel de Macedo e mesmo Machado de Assis têm sido resgatados em edições que situam sua escrita para os palcos no contexto artístico da época. Já entrando no século XX, o Rei da Vela (1937) surge como importante marco do modernismo no teatro pelas mãos de Oswald de Andrade — porém só seria montada pela primeira vez 30 anos depois, em 1967, pelo Teatro Oficina.

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A escrita prolífica de Nelson Rodrigues marcou para sempre os palcos nacionais.

 

A escrita prolífica do fenomenal Nelson Rodrigues também marcaria para sempre os palcos nacionais. O jornalista escreveu 17 peças entre 1941 e 1978, divididas pelo crítico Sábato Magaldi entre psicológicas, míticas e tragédias cariocas — com trânsito rápido entre o papel e o palco, mas também grande interesse por parte de leitores. De Rodrigues viria o marco do modernismo em cena, com a estreia em 1943 de Vestido de Noiva, dirigida por Zbigniew Ziembinski.

Para vários autores do nosso tempo, além de divulgar o trabalho, a publicação se revela a consolidação de um período de pesquisa. “É muito apaixonante a possibilidade de um texto receber várias leituras. O diretor de uma peça é um leitor, assim como o leitor que compra a dramaturgia numa livraria é também um leitor. Isso reforça o texto dramatúrgico como um texto que possibilita leituras, que se abre ao jogo, por isso a publicação me soa importante: ela faz a ponte tanto entre o texto e a cena porvir, como entre texto e leitoras e leitores”, afirma o autor carioca Diogo Liberano.

A paulista Janaina Leite, vencedora do Prêmio Shell de Teatro (SP) na categoria dramaturgia, em 2020, por Stabat Mater, agora publica Conversas com Meu Pai + Stabat Mater, Uma Trajetória de Janaina Leite pela editora Javali, especializada em dramaturgia. “Vejo esse trabalho como uma trajetória de pesquisa no campo da autobiografia, do teatro do real, com um texto que traz particularidades como a heterogeneidade de materiais”, diz a autora.

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A paulista Janaina Leite em encenação da peça Stabat Mater. Foto: Divulgação

 

O mineiro Anderson Feliciano explica por que considera importante registrar em livro sua obra: “É por acreditar que esses escritos podem contribuir com o agenciamento de necessárias mudanças na experiência sensível do comum e também por ampliarem as possibilidades de fabularmos outros possíveis mundos para nossas complexas existências”.

Outros autores nacionais com produção recente são Grace Passô, Cidinha da Silva, Dione Carlos, Diego Araúja, Jé Oliveira, Rodrigo Gerônimo, Marco Fábio de Faria, André Luiz Dias, Ana Regis, Marcos Coletta, Talita Braga, Aline Filócomo... a lista continua. “Vejo que estamos criando uma rede muito bonita, ainda que, muitas vezes, sejamos inviabilizados”, pondera Feliciano.

Apesar do extenso rol de nomes, pesquisadores como Afonso Barbosa de Souza consideram que ainda há uma “carência gigantesca” na publicação do gênero no Brasil. “Um reflexo disso é que, por exemplo, um dos prêmios editoriais / literários do Brasil, o Jabuti, não tem a categoria de dramaturgia”, critica.

 

Livro e performance
E quais seriam as características próprias do “teatro lido”? Doutora pela USP e entusiasta da publicação de dramaturgia, a paranaense Lígia Souza Oliveira escreve no ensaio “O Livro em Performance” que “tanto as dramaturgias que são publicadas anteriormente à encenação quanto aquelas que dela resultam encontram no livro uma potência para demonstrar a complexidade da escrita teatral frente às mil contradições de sua relação com a cena”.

Apaixonada pelo tema, ela conversou com o Cândido e apontou alguns exemplos importantes de publicações que manifestam essa potencialização do encontro entre artes cênicas e visuais no campo do livro.

Em Por Elise (Cobogó, 2012), de Grace Passô, as rubricas nem sempre descrevem as cenas. “Elas compõem imagens poéticas que instigam o leitor a expandir as possibilidades de leitura”, explica Lígia. A autora mineira também traz em Vaga Carne páginas em branco e outros elementos que perseguem a potência do uso da voz e das pausas da encenação.

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Grace Passô é um dos importantes nomes da recente produção dramatúrgica nacional. Foto: Divulgação

 

Outro livro em que o uso poético do trânsito entre literatura e palco se destaca é Insetos (Cobogó, 2018), de Jô Bilac. Nas páginas da esquerda, a obra traz a versão do autor e, na direita, a versão modificada para a adaptação cênica. “Conforme o leitor percorre as páginas, pode compará-las. As cenas são nomeadas com diversas espécies de insetos: formiga, mariposa, besouro, barata, etc., e na rubrica inicial encontramos a seguinte indicação: ‘[o leitor] notará que uns ficam parados, outros voam para longe, e outros ainda, pousam logo ali, algumas páginas adiante’”, exemplifica a pesquisadora.

Na seara internacional, foi surpreendente a adaptação em quadrinhos da peça A Cantora Careca (1949), de Eugène Ionesco. Para a obra em HQ, criada pelo francês Robert Massin em 1964 a partir da montagem de Nicolas Bataille, os próprios atores foram fotografados como modelo das ilustrações. “A ideia era não só fazer uma adaptação gráfica, mas transportar para o ambiente gráfico do papel as dimensões da peça encenada, tanto de tom, volume e entonação quanto as espaciais”, declarou o escritor e designer Gustavo Piqueira, que pesquisou a obra e publicou livro a respeito (A Cantora Careca de Massin, Lote 42, 2018).

A obra de Massin inspirou outras criações, como a versão em livro de Navalha na Carne (Senzala, 1968), de Plínio Marcos, que conseguiu driblar a ditadura e levar ao público essa obra repleta de denúncia social e erotismo utilizando a estética da revista ilustrada. Feito que os colegas Boal, Guarnieri e o Teatro de Arena muitas vezes não alcançaram, devido ao policiamento de seus trabalhos de teatro.

 

Editoras apostam no teatro
Se ainda é um nicho no mercado editorial, a dramaturgia tem seu público cativo — cada vez é mais comum entrar num teatro e encontrar no hall uma mesa com diversas publicações à venda. Um dos fundadores da editora especializada em teatro Javali, de Belo Horizonte, o ator e diretor Assis Benevenuto Vidigal, conta que a empreitada surgiu em 2015, muito em função da carência com que artistas como ele se deparavam. “Sempre tivemos dificuldades de encontrar textos contemporâneos de teatro publicados. Eu viajei por diversos países latino-americanos, onde percebi que a publicação de dramaturgia era muito mais valorizada. Pensando na produção de conhecimento, na formação de público tanto de literatura quanto de teatro, na potencialidade transversal da dramaturgia com a política, a sociologia, a filosofia — e tantas outras áreas —, e principalmente na riqueza dramatúrgica que vinha surgindo em Belo Horizonte, decidimos criar uma editora que publica teatro”, resume Vidigal.

A casa edita quatro tipos de escrita ligadas ao teatro: teoria, memórias, dramaturgia e traduções. Pela coleção Teatro Contemporâneo, já publicou 19 livros, incluindo uma série de sete novas obras em novembro de 2020.

No quesito distribuição é que a situação se complica. “Não estamos nas grandes livrarias. Parece que não há espaço para nós lá, no mainstream. É muito custoso disputar um espaço, quase kafkaniano. No final das contas, a gente tem os livros perdidos, não pagos, e com todos os descontos não vale a pena. Aliás, o teatro que a gente publica já nos indica isso, não são peças ‘comerciais’”, desabafa Vidigal.

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Para a editora Temporal, Oduvaldo Vianna Filho é “fundamental para a história e para o teatro do país”. Foto: Divulgação

 

Pensando na carência de publicações de dramaturgia contemporânea nacionais e internacionais, surge em 2018 a Temporal, que, desde então, editou nove obras, incluindo as últimas peças escritas por Oduvaldo Vianna Filho, que a casa considera “fundamental para a história e para o teatro do país”: Rasga Coração, Papa Highirte e A Longa Noite de Cristal. “A edição de Rasga Coração traz consigo um dossiê de pesquisa, um apanhado de mais de 300 páginas feito pelo autor em seu caderno pessoal durante um ano de investigação na Biblioteca Nacional, com o objetivo de coletar dados históricos e sociais para o que viria a ser, mais tarde, considerada sua obra-prima”, explicam o editor Philippe Curimbaba.

A coleção internacional teve início com a publicação até então inédita no Brasil de O Poder do Sim, de David Hare, que aborda a crise econômica de 2008. Além do texto artístico, publicações como esta trazem o precioso substrato teórico — nesse caso, textos de Anna Stegh Camati (Uniandrade) e Leda Maria Paulani (USP). A Temporal também trouxe o autor até então inédito no Brasil Jean-Paul Alègre, de Eu, Ota, Rio de Hiroshima, obra que aborda a bomba de Hiroshima (1945) sob outro ponto de vista.

Outras editoras não exclusivas do teatro valorizam esse gênero artístico, como a paulista Cobogó, que mantém a Coleção Dramaturgias desde 2013. A editora Isabel Diegues escreve na revista Dramaturgias 1, do Sesc, que chegou a reunir em feira mais de 30 editores de dramaturgia. No mesmo artigo, ela explica que seu interesse em “pensar e publicar o texto escrito para o teatro” é “refletir a respeito do que faz um texto ser dramaturgia, para pensar sobre o que de cada texto é encenável ou não, para descobrir se o arrebatamento depende de sua encenação, para entender o quanto a performatividade das palavras (e das ideias escritas) contida no texto é impulso para a encenação, se o texto precisa da encenação ou se prescinde do corpo vivo para alcançar determinados sentidos e imagens”.

A Sete Letras é outro exemplo de editora que tem uma coleção dedicada à Dramaturgia. “Em Dramáticas do Transumano, as palavras exploram o espaçamento, a fonte, o tamanho e a disposição na página. Influenciadas também pelas construções concretistas de Haroldo de Campos, desenvolvem outras edificações sonoras a partir da imagem da palavra impressa”, relata Lígia.

Apesar de sua condição de nicho, existe representação do teatro em outras casas editoriais, como a Hucitec, criada em 1971, com uma coleção que completa 50 anos em 2021 e é composta por 102 títulos, que incluem Murro em Ponta de Faca, de Augusto Boal, A Mochila do Mascate, de Gianni Ratto, e diversos escritos teóricos, como O Parto de Godot e Outras Encenações: A Rubrica como Poética da Cena, de Luiz Fernando Ramos.

Outras casas como Patuá e Giostri, de São Paulo, têm apreço pelas publicações teatrais, e surgem ainda experiências dedicadas a divulgar o trabalho de artistas negros, como a série Aquilombô, frente editorial do fórum “Aquilombô — Fórum Permanente de Artes Negras”, espaço em que convergem teatro, música, literatura, performance e residências. A estreia se deu em 2018 com a edição em livro inédita do texto teatral Uma Boneca no Lixo, de Cristiane Sobral, com ilustrações de Manu Militão.

 

       Cenário paranaense

Publicações do Paraná são ocasionais, mas consistentes

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Uyara Torrente participou da estreia virtual da peça Penélope (2020), de Lígia Souza. Foto: Reprodução / Facebook

 

Um dos principais dramaturgos brasileiros hoje saiu da cena paranaense. Autor de Nômades, Maré, PROJETO bRASIL e Preto (todos pela Cobogó) e NÓS e OUTROS (Javali), Marcio Abreu (da Cia. Brasileira) falou ao Cândido sobre sua visão a respeito de publicar e editar dramaturgia. “Não é apenas registrar, mas ampliar as possibilidades de fruição, diálogo e circulação que uma obra pode ter. Um livro de teatro gera muitos desdobramentos”, garante. Ele lamenta que as publicações brasileiras ainda sejam “muito tímidas e inconstantes, sem dar conta da pluralidade e força da nossa dramaturgia”. Para ele, “é fundamental que existam mais editoras e outros modos de publicar e distribuir livros de teatro”.

Enquanto isso, autores paranaenses seguem na lida para tornar seus escritos e de seus grupos experiências para além do registro da cena. É o caso de Penélope (Lalettre), que a autora Lígia Souza lançou em 2020 concomitantemente à estreia online da peça, que tem Uyara Torrente e Pablito Kucarz na cena virtual. 

Aqui, da companhia Súbita, é outro exemplo de obra recente do Paraná que, para usar os termos de Lígia, “pensa a publicação”: “A capa tem uma abertura não usual, e o livro pensa as possibilidades do papel como algo que dialoga com a fisicalidade do teatro — como instância da presença e oralidade”, explica. O grupo também publicou os solos de sua série Habitat.

Se um forte estímulo foi trazido em anos anteriores a autores curitibanos pelo edital Oracy Gemba de Fomento à Literatura Dramática, da Fundação Cultural, na última década a cidade ganhou reforços com o Núcleo de Dramaturgia do Sesi. Além da formação de autores, o projeto prevê algumas publicações de seus textos, a exemplo da nova fornada: Hérnia, de Val Salles; Aqui Você Atravessa de Ossos Fechados, de Beatriz Vasconcelos; Retilíneo, de Carlos Canarin; Arapuca ou Eva Dando Voltas no Paraíso, de Janaína Fukushima; e Os Senhores Repararam que a Viscondessa de Mataburros é Uma Porca?, de Alan Norões.

Outros grupos que investiram em publicações incluem CiaSenhas (Narrativas em Cena traz, inclusive, um álbum com a narração das peças), Vigor Mortis (Palco de Sangue, entre outros), Obragem, Delírio (de Edson Bueno), e recentemente, Francisco Mallmann com América (Urutau, 2020).

 

Helena Carnieri é jornalista e mestre em Estudos Literários. Escreve crônicas no blog A Vida é Palco, do portal Bem Paraná.