RESENHA | O levante dos duplos e a era dos espelhos 26/02/2025 - 10:54

por Cristiano Castilho 

 

Best-seller imediato do jornal The New York Times, vencedor do Women’s Prize de Não Ficção em 2024, pre­sente na lista de melhores do ano do The Guardian, Time Slate e The New York Times, traduzido para mais de 30 idiomas e publicado no Brasil pela Carambaia em setembro do ano passado. As credenciais podem sugerir um livro de autoajuda "xexelento", uma obra pseu­do-religiosa ou um álbum de colorir para adultos com síndrome de Peter Pan. Mas Doppelgänger: Uma viagem através do Mundo-Espelho, é um catatau de quase 500 páginas que explica – muito, em diversos, amplos e pro­fundos sentidos – a sensação geral de inércia e principalmente de indignação acumulativa a partir de sobres­saltos com o andar dessa carruagem chamada mundo: e agora, o que fazer?

 

Naomi Klein
Capa de Doppelgänger: Uma Viagem Através do Mundo-Espelho (Carambaia, 2024)

 

A autora do livro, um misto de ensaio com autobiografia, é a jornalista canadense Naomi Klein. Ela é o que faz: colunista do The Guardian, professora de justiça climática na University of British Columbia e professora honorária de Mídia e Clima na Universidade de Rutgers. Escreveu livros importantes e premiados como Sem Logo (1999), sobre como as corporações moldam a vida contemporânea por meio da publicidade e A Doutrina do Choque (2007), em que afirma que desastres naturais, golpes e guerras têm a capacidade de ati­var ainda mais o capitalismo em seu modo rolo com­pressor. Em Doppelgänger, Klein nos entrega sua obra mais íntima e pessoal, a partir de um fato que provou ser seu tour de force: ela foi confundida com Naomi Wolf, uma negacionista, ativista antivacina e difusora de teorias conspiratórias. Uma daquelas pessoas capazes de afirmar sem enrubescer – em entrevistas a gran­des emissoras norte-americanas, inclusive – que a va­cina anti-Covid injeta DNA alienígena ou permite o ras­treamento do nosso corpo para misteriosos experimen­tos comunistas. É ridículo demais para levar a sério, e sério demais para ser ridículo.

Doppelgänger é uma palavra de origem alemã que significa "duplo ambulante", e pode se referir à ideia de que cada um de nós tem um sósia, muitas vezes uma cópia maligna, saracoteando por aí. O tema já foi explorado, sob outras perspectivas, em livros como O Du­plo, de Tolstói e O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e em filmes como O Homem Duplicado, de Denis Villeneuve, baseado na obra de mesmo nome de José Saramago. Mas a pegada de Klein é inovadora. Habilidosa em escrever sobre o uso político da tecnologia e estudiosa de estratégias de comunicação de massa, a autora investiga o seu próprio duplo a partir do submundo da desinformação, de redes digitais de teorias da conspiração, o que acaba, quase sempre, resultando em fanatismo, violência e "descolamento do real".

A partir de casos reais, estudos, citações de livros, entrevistas e digressões, Klein cria o conceito de "Mundo-Espelho". Algo como o "País das Maravilhas", aquele do livro de Lewis Carrol, em que um conchavo vira realidade, ficção vira verdade e nós mesmos nos perguntamos se ainda somos… nós mesmos.

Ao longo de seus capítulos – que têm títulos curiosos como "Encontrando Eu Mesma Na Floresta" e "Eles Sabem Sobre os Telefones Celulares" – Naomi Klein entrelaça temas diversos e atualíssimos, sempre tendo o "Mundo-Espelho" como lembrança, e/ou resposta. Cultura digital, luta antirracista, necrotecnocapitalismo, o conflito Israel-Palestina, e pitacos sobre o Brasil – país em que 57% da população não sabe identificar conteúdo satírico ou sensacionalista como informação falsa, segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2025 – entram num caldeirão ensaístico do qual é difícil sair, tendo em vista a sua prosa aproximativa e suas referências cotidianas constantes.

Um ponto alto da obra é quando Klein discute o sequestro do léxico. Ela explica como palavras como "narrativa", "liberdade" e "democracia" deixaram de significar o que significam para atender determinada ordem política ou visão de mundo. Ou exatamente o con­trário do que significam. É, em suma, a separação en­tre os signos e os significados. Klein não deixa barato quando trata de personalidades e influencers de redes sociais – que cada vez mais arregimentam fiéis e capital político. "As subculturas de fitness e saúde alternativa há muito se misturam com movimentos fascistas e supremacistas", escreve ela – o excerto pode causar es­panto, mas é bem argumentado, e inclusive insere o termo conspirituality (conspiritualidade) na treta toda.

A fé no hiperindividualismo, a atomização do indivíduo, a monetização da bizarrice e a crise das marcas pessoais – o nosso perfil no Instagram, por exemplo, uma espécie de processo de criação interna de um doppelgänger – seriam gasolina pura para alimentar o outro lado do "Mundo-Espelho", cada vez mais concreto e reluzente. Klein nos propõem também uma pergunta, cuja resposta parece estar longe, seja por falhas estratégicas de comunicação ou de um desalento sincero: qual alternativa está sendo oferecida deste lado do vidro?

 

Serviço:

Doppelgänger: Uma Viagem Através do Mundo-Espelho (2024)
Naomi Klein
Editora Carambaia
480 páginas

 

Cristiano Castilho nasceu em Curitiba (PR). Formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e tem pós-graduação em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Foi editor, repórter e colunista do jornal Gazeta do Povo. Colaborou com os veículos VICE Brasil, Folha de São Paulo e Bem Paraná. É apresentador e produtor do programa Papo Educativa, da Rádio Educativa e da TV Paraná Turismo. Em 2019, lançou o livro Crônicas da Cidade Inventada, pela Arte & Letra.

Cristiano Castilho
Cristiano Castilho | Foto: Anderson Tozato