REPORTAGEM | Carrinho Fantástico: na contramão da tendência 28/02/2025 - 12:14

Por Isa Honório

 

Lá vai ele. Imponente e um pouco desajeitado, logo encontra um espacinho na calçada para se exibir. O carrinho catador de reciclagem dourado e todo adornado com colar de flores carrega prateleiras coloridas cheias de livros. O Carrinho Fantástico é uma das ações de incentivo à leitura da Passos da Criança, ONG que atende a comunidade da Vila Torres, em Curitiba. A escolha pelo carrinho é uma homenagem aos muitos trabalhadores da reciclagem que moram no bairro.

Logo que ele se instala na entrada do projeto, onde também é servido um almoço para pessoas em situação de vulnerabilidade social, alguns curiosos se aproximam do Carrinho e arriscam pegar algum livro para levar. Kenni Rogers, arte-educador da Passos e idealizador da biblioteca itinerante, faz algumas sugestões personalizadas e ajuda o novo leitor a se encon­trar: “O que você gosta de ler? Tem literatura ilustrada, ficção…”. 

Funciona assim: é só chegar, escolher uma obra e aproveitar a leitura. Devolver não é obrigatório, quem emprestou pode repassar o livro para outra pessoa. O importante é que ele não fique parado. Na estante do Carrinho Fantástico, estão romances, biografias, gibis, livros infantis, ilustrados e de autoajuda. Tem Leminski, Kolody, Monteiro Lobato e até Vladimir Nabokov. 

 

O "Carrinho Fantástico" da Passos da Criança

A ação com o Carrinho acontece toda primeira segunda-feira do mês para o público geral, e semanalmente para o público de 5 a 14 anos, que é o foco da Passos da Criança. Após um ano focados no incentivo à leitura, 50% das crianças emprestam livros. O número está acima da média nacional de leitores. De acordo com a edição de 2024 da Pesquisa Retratos da Leitura, 53% dos brasileiros não leem livros de qualquer gênero. Se contar apenas os que leram algum livro, inteiro ou em partes, por vontade própria, o número cai para 43%. 

 

Passeando pelas ruas

“Eu gosto de ler várias coisas, livros, contos. Gosto de ler sobre super-heróis. Pego livros emprestados aqui às vezes”, conta Limary, 9, enquanto espera a avó voltar da aula de yoga, também promovida pela Passos. Para as crianças, o universo da fantasia é o favorito, entre dinossauros, princesas e animais falantes. Os adolescentes preferem mistério e suspense. Já o gibi é o queridinho do público de todas as idades, cada vez mais engajado. 

O projeto surgiu em 2021, unindo a necessidade de estar presente na comunidade durante a pandemia e a grande leva de doações que a ONG recebeu na época. “Estávamos com todos aqueles livros aqui e pensamos: ‘Como vamos transitar por aí? Com um carrinho!’ O carrinho é algo muito usual aqui na comunidade. Então a gente emprestou um carrinho, decorou ele, fizemos vários kits de livros, nos fantasiamos e saímos andando pela Vila distribuindo os kits pelas casas”, lembra Kenni. 

Somente na primeira ação, foram distribuídos 800 livros. E não teve outra – logo o carrinho caiu no gosto dos moradores do bairro. Além de passear por escolas, praças e ruas com os livros, o Carrinho se transforma em um palco para apresentações de teatro e em uma casinha para contação de histórias. Nessa pegada de acessar os livros sem a formalidade de uma biblioteca tradicional, agora o plano é ampliar o projeto, com pontos de leitura espalhados pela Vila Torres.

João Francisco, 59, é um dos frequentadores assíduos do Carrinho, que ele chama carinhosamente de “casinha dos sonhos”. Leitor apaixonado, passa pela ONG no caminho entre sua casa e o trabalho, pega sete livros de uma vez e mata um por dia. “Como eu gosto de ler, todos os livros que eu pego eu trago de volta. Pela amizade e pelo respeito que eles dão pra gente”, diz orgulhoso. 

 

João Francisco lê um livro por dia que empresta do Carrinho Fantástico
João Francisco lê um livro por dia que empresta do Carrinho Fantástico

 

Não basta incentivar a leitura. É preciso garantir que esses novos leitores tenham o que ler. Entre a galera que frequenta a biblioteca itinerante, o livro, como objeto, é visto com muito carinho, principalmente entre os profissionais da reciclagem. “É muito triste quando eu vejo livros no lixo”, conta Adelaide, 50, que curte ler Paulo Coelho e Zíbia Gasparetto. “Não é tão fácil fazer uma aquisição de livro. Quando o pessoal da reciclagem acha um livro eles sabem o valor que aquele material tem”, comenta Rogers. 

E não adianta colocar qualquer livro na prateleira. O segredo para manter o interesse é prestar atenção no que tem mais procura e apostar em uma boa curadoria. “A gente começou a entender o nosso leitor e fica mais fácil pra gente separar a biblioteca. Eles já chegam e veem que tem uma sessão só daquilo que eles gostam”, conta o arte-educador. “Aqui tem o que você procura, basta querer”, completa João Francisco. 

 

Participantes da ONG Passos da Criança que atendem a comunidade da Vila Torres
Participantes da ONG Passos da Criança que atendem a comunidade da Vila Torres

 

A viagem é longa

Outro que bate ponto na biblioteca itinerante é Sebastian Hernandez, 40, que vê nos livros um bom passatempo enquanto espera nos corredores pela sessão de radioterapia: “Os médicos falam que ler ativa a sua mente. Agora eu peguei Elite da Tropa (2006), um livro meio complicado, mas que vai dar para ler durante as horas no hospital”. Entre idas e vindas do tratamento de câncer, Sebastian já leu O diário de Anne Frank (1947) e a saga O Senhor dos Anéis (1954). “Isso aqui é uma família para mim, eles me tratam muito bem. É um trabalho feito com vontade, de coração”, conta.

O negócio é integrar a leitura com a realidade das pessoas atendidas pela Passos da Criança. Sejam com atividades de letramento e aprendizagem para os pequenos, ou com a distribuição de refeições para pessoas solitárias, em situação de rua e dependentes quími­cos. “O carrinho é, além de um incentivo à leitura, um espaço de acolhimento. Temos uma mesa servindo um almoço e as pessoas se sentem à vontade e pertencentes a essa biblioteca que está ali”, explica Kenni. 

O arte-educador lembra de vezes em que os livros funcionam como um portal para o passado, e uma forma de reencontrar o hábito da leitura, que muitas vezes se perdeu conforme as dificuldades da vida foram aparecendo: “Já vi pessoas que pegaram um livro e se lembraram da sua história, e veio à tona um choro de saudade. Então, através do livro essa pessoa pode acessar uma memória, lembrar de como era a sua vida antes e de como ela é hoje. Eles conseguem fazer um res­gate das suas próprias vidas adentrando em outros universos, não somente a solidão ou a dependência química”.

No país em que houve uma queda de 6,7 milhões de leitores no último ano (IPL), o Carrinho Fantástico segue andando na contramão da tendência.“Você tá aqui na comunidade e de repente vê alguém passando com um livro na mão que ela pegou no Carrinho. E para além dela, outras pessoas veem que alguém está lendo na periferia”, finaliza Kenni Rogers.

 

Isa Honório

 

Isa Honório (São José dos Campos/SP, 2002) é estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), escritora e compositora. Escreveu a coluna de cinema "Conversa de Bar Sobre Fil­mes e Séries" entre 2023 e 2024. Na literatura, curte dos beatkniks ao jornalismo gonzo. Na música, rock' n' roll à cumbia.