Pensata | Julie Fank 27/10/2020 - 12:50

Nunca acreditei em cegonhas

A coluna abre espaço para que escritores, tradutores, jornalistas e pesquisadores reflitam sobre temas ligados à literatura, livro e leitura. Nesta edição, Julie Fank sugere que cursos de escrita podem tirar do imaginário popular a ideia de que textos ficcionais nascem da inspiração

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Ilustração: DW Ribatski


Definir os contornos de uma oficina direcionada à escrita pode parecer controverso a quem nunca participou de uma. Escrita criativa não é destino que se lê em borra de café, terapia em grupo ou lei a ser aplicada sem restrição para erguer prédios em textos baldios. Essa obsessão humana com começos nos fez inventariar mitos criadores que explicam o mundo e é daí a observação de George Steiner de que não há registro de divindades não-criadoras. Invertemos os polos e atribuímos o divino ao artista, essa encarnação de deus que concebe arte com as próprias mãos, perfeito, sem defeitos. Não se trata de defender uma crença indiscriminada em cursos miraculosos, vendidos com a confiança de um modelo de propaganda munido de um bom cachê. Me parece uma insistência obscurantista e arcaica que ainda projeta na figura de grandes escritores, com todas as aspas ao adjetivo que antecede o ofício, um modelo a ser seguido, omitindo que boa parte das figuras alçadas a esse patamar ecoam um berço aristocrático e intelectual ou carregam uma boa dose de autodidatismo para construir um repertório linguístico e sensível que o tenha levado a escrever bons textos. No caso brasileiro, com o agravante de serem até alguns anos predominantemente centrados na figura do escritor dos grandes centros, narrador de personagens muito parecidos entre si.

Ao me juntar a uma boa quantidade de escritores que lançam mão da exposição de seus processos e de uma investigação atenta a processos artísticos de outros escritores e outras artes, reforço o esforço de uma geração que ampliou os ecos dos sistemas de circulação literária já estabelecidos para lugares menos previsíveis, com protagonistas menos ensaiados, num palimpsesto pouco empalhado e taxidérmico, acelerada, é claro, pela facilitação tecnológica de criação de redes. Essa ilusão lisonjeira de que um texto surge do nada ou diante de um episódio de inspiração, propagada exaustivamente em eventos que centralizam a figura do escritor como atração, ressoou por muito tempo no imaginário de quem escreve à margem de um sistema literário, editorial ou acadêmico. O que é emplastro para os arautos da musa, é partitura para quem pensa o texto a partir de seus estágios primitivos e o segue até ele parar de lhe atazanar as ideias, mapeando o processo e procurando pares com os quais compartilhar os procedimentos que o pilarizam.

Nesse ponto do caminho em que a escrita deixa de ser solitária, e há toda sorte de opções para fazer um texto chegar a esse sistema, a oficina é só uma delas — que, combinada a outras, pode validar ou não os textos assinados por quem os escreve, colocando o escrevente em contato com seus primeiros leitores, num ambiente de teste. Tatear a silhueta de um texto é, com sorte, atividade restrita aos bancos universitários das faculdades de Letras, estudo complementar de professores das áreas de comunicação muito atentos ou hobby sobre o qual se debruçam aqueles que apreciam a linguagem. Não falo aqui de uma análise estrutural das frases que compõem um texto bem executado, com o perdão do uso do advérbio, falo da possibilidade de amarrar com arame o abstrato, como diria Manoel de Barros, de procurar as frases que se iluminam pelo opaco. E ainda que eu empreste a língua dos poetas, me interesso em saber como é que ele aprendeu aquele idioma, ainda que ele seja só seu, que partitura é essa que dita o tom de sua dicção, ainda que haja ali a impossibilidade de uma tradução completa de uma gênese porque não somos mesmo capazes de registrar todos os passos de uma de nossas matérias-primas: a memória.

 

Da gaveta pra sala de anatomia
Qual é o grau de potência de um texto e de um voz que o recomenda? Se emprestarmos da física o significado de ressonância, entenderemos esse conceito como um fenômeno em que um sistema vibratório ou força externa conduz outro sistema a oscilar com maior amplitude em frequências específicas. E é a partir da energia vibracional que esse sistema armazena que se mede a amplitude das ressonâncias. Analogamente, o sistema literário (assim como qualquer sistema artístico) depende de uma amplitude externa para validação de uma obra. É uma vibração complexa que contém muitas frequências, afetivas também — o que coloca esse microssistema literário do qual o aluno faz parte assim que passa a frequentar uma oficina como um espaço para que essa ressonância comece a acontecer — até que transborde. Assim como, ao aprendiz de um instrumento musical ou do desenho, não se conferem restrições ou adjetivos aos seus cursos — um curso de música não é um curso de música criativa e um curso de desenho não carrega colado a si a qualidade que atribui criatividade —, ao aprendiz da escritura, o processo de tatear textos não pode, ou deveria ao menos, ser carregado de estigmas. Esse estatuto distorcido que prevê o sopro das musas tinge de cores bastante conservadoras o campo autônomo da Escrita Criativa, fazendo-nos correr o risco de transformarmos a mítica das musas em canto hipnótico de sereias — e oficinas centradas na linguagem e nos procedimentos de texto, na construção e revisão de repertório e na lapidação de uma narrativa estão muito longe de reproduzir ecos modelares.

Se, em vez disso, desautomatizarmos a ideia de que aulas de anatomia só servem a médicos, teremos também como ferramenta a apreciação e manipulação de uma silhueta, cortada em plano transverso, ali, à nossa frente, numa mesa de inox gelada. Munidos de jalecos brancos e bisturis, dissecaríamos o cadáver da musa, filha da memória (Mnemósine) e da pausa e do esquecimento (Zeus), uma das irmãs das mães das artes, nomeadoras dos museus, esses altares todinhos dedicados a elas. Elas, as mesmas detentoras de estatutos criadores que colocam em xeque um DNA de acúmulo, a ideia dupla de não-memória e memória como constituintes da arte, dão a deixa para que quem produz arte hoje corte vínculos com o passado ao mesmo tempo que recrie um outro paideuma, só que num processo muito mais consciente de suas etapas. A literatura exige tempo e submeter um texto autoral ao mercado não segue receitas prontas de sucesso, muito menos deve importar manuais e práticas de outras textualidades num movimento de devoção. Ainda assim, o desfazimento dos mitos, das lendas e das narrativas que contribuem para uma reserva de mercado bem soberba pode, ao menos, contribuir para pulverizar as narrativas e os autores que habitam nossas bibliotecas e ter parte na cota de opinião subjetiva que alguns professores insistem em praticar na leitura crítica de textos de seus tutorados temporários.

 

Máscaras, processos e contágios
Como uma praticante da impertinência, tenho dissidências teóricas que me permitiram outras filiações para além dos programas que frequentei, mas não sem ceder a um acordo íntimo com a ciência e com o conhecimento e não sem agradecer nominalmente cada professor que me fez uma professora e escritora menos previsível. Atento também para o nome dessa área que se quer autônoma dentro da academia, mas ainda carrega um adjetivo que limita sua substância — a escrita não precisa ser classificada como criativa para resultar em literatura. Nossos ponteiros não são mais os mesmos dos relógios de quem escreveu no fim do século XIX. Fixar modelos míticos a serem seguidos ainda nos dá um parâmetro calcado numa estética de narrativas de outros tempos, reducionista e, por vezes, maniqueísta — incluindo a ideia romântica de que o isolamento de referências nos faz mais originais. Tudo é contato e contágio — não à toa passamos todo esse tempo isolados. Texto é corpo, mas até a subjetividade é uma construção social e particularmente clichê. Se o espaço de restrição de nossas escolhas políticas não nos faz questionar o mito do herói, seja ele um personagem ou um escritor, e todas as outras narrativas que o acompanham, os próprios escritores serão os responsáveis por colocar a realidade em perigo — a verossimilhança já está exilada há algum tempo. E de formol, já chega o cheiro da própria ideia de que oficinas não formam escritores ou das frases cheias de quinquilharias. Qualquer que seja o texto, ele não chega embalado num lençol ou é fruto tão somente de experiências entorpecentes. Essa é a explicação que tem nos dado quem mantém escrituras cifradas e artimanhas ilusionistas para se manter sempre em altares. A escrita não é tarefa fácil, mas não é nem deveria ser privilégio de quem nasceu ou teve acesso a bibliotecas de ouro.


JULIE FANK é doutora em Escrita Criativa pela PUC-RS, mestra em Literatura Comparada e licenciada em Letras pela Unioeste-PR. Também é escritora, artista visual e diretora da Esc. Escola de Escrita, espaço dedicado a formação de artistas e escritores fundado em 2014.