POESIA | Palimpsestos e outros poemas 17/01/2025 - 10:31

por Ronaldo Cagiano

 

REGISTRO

 

Nesse tempo de absoluta dissolução
 sou contaminado e salvo pela poesia,
 antídoto contra
 o veneno dos dias
Já não me importam
 a falta de paciência do motorista
 os corações duros dos auditores da Receita
 a avidez usurária dos bancos
 a tempestade de ofensas
 o parlamento acanalhado
 o roubo nas estatais
 a queda do PIB
 a crise do euro
 os disparos de Kim Jong-un
 os disparates de Trump
 a poligamia de Jacob Zuma
 a saliva farisaica dos evangélicos
 a transgênica autoproclamação de Guaidó
 os lacaios torquemadas da Lava-jato
 e outros coveiros da latinoamericanidade
Meus versos não estarão em repouso
 como a indolência que caminha
 passo a passo
 no ritmo de todas as coisas
Vou de mãos dadas
 com o verbo
 e com sua pá,
                                 lavratura
 adestrando
 o terreno infértil
 

PALIMPSESTOS

 

Sob a pele das palavras
 mil mundos me contemplam
 com um desafio de esfinge:
palácios
 cemitérios
 a náusea das guerras
 as nódoas do tempo
 os compulsórios desertos
 a teia da aranha
 a teoria da relatividade
 a muda órbita dos planetas
 o homem sem qualidades
 a quadratura do círculo
 os contornos do abismo
O vocábulo
 se espraia
 sobre cada gesto
                      desejo
                      centelha
                      ameaça
e cada espinho que não vejo
                                                    e piso
 socorre-me do
 anonimato
ajuda-me a dissecar
 o que ainda não
                                     vivi
Nesse tempo
 de angústias em pleno cio
 de temores soletrando tragédias
 de ventos semeando esbulhos
 em seu roteiro por
 esquizofrênicas pastagens,
o verbo me devolve ao éden

 

BRONZE

 

Na gramática do tempo
 consuma-se a linguagem perfeita
 das estátuas.

                                              Everardo Norões


Na praça com seu nome
 passo em frente
 ao busto inerte de Getúlio Vargas
 e saúdo as aves veteranas
 que há décadas depositam em sua cabeça
 o engenho das fezes
 batizando o metal sem vida.
Olho ao redor
 e a vida invertebrada
 de vai e vens indiferentes
 não se atém
 à inutilidade de todas as homenagens
Mergulho na tarde
 que, melancólica e sem pressa,
 invade e rumina a cidade
 em sua imutável e desértica
 condição
 com seu tempo siderúrgico
 endurecendo os pulmões
Atônito entre os labirintos
 de provincianos disfarces,
 retido na indecisão
 de desconhecidos atalhos,
 perco o fio dessa meada urbana,
 carrego o pesadelo dos dias
 e me enfurno na paisagem
 

 

Ronaldo Cagiano nasceu em Cataguases (MG) e atualmente mora em Portugal. Escreve resenhas e artigos em diversos jornais e revistas do Brasil e exterior. Dentre as obras publicadas, destacam-se: Dezembro indigesto (Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), O sol nas feridas (Ed. Dobra, SP, 2013 – finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013) e Eles não moram mais aqui (Prêmio Jabuti 2016/Ed). Organizou as coletâneas Antologia do Conto Brasiliense (Projecto E­di­torial, 2001), Poetas mineiros em Brasília (Varanda Edições, 2002) e Todas as gerações – O conto Brasiliense contemporâneo (LGE, Editora, 2006).