PENSATA | Maria José Silveira 29/09/2021 - 14:38

Relações siamesas e/ou complementares?

A escritora, tradutora e editora Maria José Silveira discute as ligações entre literatura e imagem — e as vincula com alguns de seus trabalhos


Neste nosso contexto contemporâneo onde a imagem adquire cada vez maior relevância, como pensá-la em relação ao que nos traz a narrativa literária? Haverá uma relação íntima essencial entre as duas ou são elas apenas complementares ou mesmo opostas?

Opostas não podem ser, penso eu — e aqui tratarei sobretudo das relações que surgem a partir do lado da narrativa literária — já que a literatura é, quase por definição, uma grande evocadora de imagens. Basta lembrar que a leitura da prosa ficcional se faz acompanhada das imagens que o leitor / leitora vai criando em sua mente a partir do texto que lê. Lemos quase como se estivéssemos “vendo” as imagens que vamos criando do que nos é narrado. Não acredito que sejam imagens muito precisas; no entanto, por mais veladas que estejam, são imagens que as palavras suscitam em nossa mente. Exceto, talvez, nos momentos líricos, poéticos ou abstratos em que a palavra é entregue a si mesma para fazer sua magia. São momentos em geral fortes, por vezes os mais bonitos na fruição de uma leitura. Há livros que têm menos desses momentos, outros mais. E há leitores que se entregam mais a esses momentos, outros menos.

Outra característica a ser lembrada é que também através de suas leituras, precoces ou não, um escritor / escritora começa a se formar. Através, portanto, dessas imagens e pensamentos que os livros atiçam nele / nela pela vida afora.

Já como escritora (e aqui falo, necessariamente, a partir do meu processo de escrita, o único que conheço intimamente), sinto que essa mesma relação nos acompanha no tempo da escrita. Escrevemos “vendo” o que estamos contando. Exceto, também, nos mesmos momentos mais líricos ou poéticos, em que a palavra toma conta e procura exercer sua plenitude. Para quem escreve, são também os momentos chamados insights (ou epifanias, palavra hoje muito desgastada), que causam espanto ao ver o que escrevemos.

Forma-se, portanto, um círculo: as imagens provocam quem escreve que, por sua vez, as entrega em palavras para que o leitor as decodifique e as “veja”, outra vez, em imagens.

Eis por que, independentemente de qualquer outra coisa e, muitas vezes de modo inconsciente, a relação entre imagem e palavra está presente de maneira intrínseca à leitura e à escrita. São quase irmãs siamesas. Agem em conjunto, daí sua força. Mas não só isso. Como a literatura é, pela própria natureza, reflexiva e crítica, é por essa característica que ela escapa da armadilha de ser apenas uma representação do que vê. Ao reconstruir seu mundo particular, cada narrativa de ficção, através da força das palavras recriando as imagens, cria também as condições para que o leitor reflita enquanto lê. Daí porque — mesmo que esteja puxando a brasa para minha sardinha — acredito na primazia da literatura para a compreensão do mundo: nela, a imagem não está só, mas envolvida pela palavra, com seu poder de crítica e reflexão.

Mais ainda. Há livros em que as imagens podem ter um papel específico, como origem da ideia a ser desenvolvida. Em dois dos meus romances, a imagem gerou a escrita.

Um desses romances é o Guerra no Coração do Cerrado, em que conto a história de Damiana da Cunha, uma panará-kaiapó que se tornou lendária no imaginário goiano. Criada entre os brancos, ela aprendeu desde cedo a falar português, e teve um papel importante para convencer seu povo a aceitar a política de aldeamentos da colonização portuguesa no século XVIII. O romance, que trata da maneira como uma indígena poderia ter vivido essa contradição fatal entre as duas culturas, nasceu explicitamente de uma imagem, quando a historiadora Dulce Pedroso me descreveu como Damiana, que viveu em Vila Boa de Goiás na época, despia suas roupas de branca, colocava vestimentas indígenas e entrava no sertão ao encontro de seu povo, para convencê-lo a se aldear com os brancos. Fui conquistada por essa imagem, debrucei-me sobre as poucas pesquisas existentes sobre ela e sua época, e criei minha ficção.

Outro romance meu ligado a imagens, O Fantasma de Luís Buñuel, nasceu de uma obra cinematográfica. Nele parto de uma relação apaixonada com o cinema para falar da geração de 68, à qual pertenço. Várias imagens dos filmes de Buñuel figuram desde a primeira linha do romance, até a última. É um livro salpicado de imagens buñuelescas — o voyeurismo, os insetos, o homem-tronco, o bordado feminino, a caixinha de costura, o fetiche dos sapatos, etc. Foi um livro de relativo sucesso, adotado em vestibulares, e mesmo assim poucas pessoas notaram essas referências. As resenhas e críticas que saíram foram generosas e viram aspectos diferentes, mas confesso que me causou certa decepção não ter leitores cúmplices que, ao comentar o romance, me piscassem o olho dizendo “Eu vi!”. Nesse romance também pedi — e meu então editor, Wagner Carelli, prontamente aceitou — que os capítulos fossem abertos com imagens das primeiras páginas de jornais da época, dando conta de alguns dos principais acontecimentos dos 21 anos em que o romance transcorre. Imagens complementares, portanto.

Em meus outros livros — embora só tenha percebido isso quando me pus a pensar no assunto — continua presente uma relação estreita entre essas duas narrativas, literária e imagética. O que vem um pouco, acredito, da paixão que temos pelo que estamos escrevendo. Quando estamos “mergulhados” na escrita, sobretudo de um romance, convivemos boa parte de nosso tempo “dentro” desse outro mundo que estamos criando. O que, aliás — diga-se de passagem —, é uma das delícias da escrita.

Ouso dizer, como exemplo, que ao escrever Eleanor Marx, Filha de Karl — um romance que tem como foco os 11 meses antes de seu suicídio — convivi um bom tempo com a família Marx, e várias imagens formidáveis, vindas dos livros que pesquisei sobre o tema: Marx brincando com Eleanor menina, transformando-se em cavalo cujas barbas eram puxadas como rédeas pela filha caçula; ou o contentamento da família com a chegada das caixas de charutos e bebidas enviadas por Engels; ou as cenas passadas na sala cheia de fumaça do miserável apartamento onde moraram no Soho londrino.

Já ao escrever outro romance, Com Esse Ódio e Esse Amor, fui imageticamente transportada para Colômbia com minha personagem engenheira para construir uma ponte, e ao Peru com as cenas da rebelião de Tupac Amaru, guiadas pelos versos do belíssimo poema de José Maria Arguedas, “A Nosso Pai Criador, Tupac Amaru”.

No romance Paulicéia de Mil Dentes, percorri São Paulo revendo suas ruas, miséria, feiura, belezas e contradições, ao lado dos 13 protagonistas e vários personagens secundários, com sua miríade de histórias e conflitos. Este foi um livro em que consegui colocar algumas fotos da megalópole, feitas pelo fotógrafo Zé Gabriel Lindoso, abrindo os capítulos. O que se tornou possível graças ao editor, Jiro Takahashi, que se entusiasmou pelo projeto.

Em uma das minhas novelas para jovens adultos, O Voo da Arara-azul, a história se passa em 1969/70, época terrível da ditadura, e o protagonista é um adolescente que desenha quadrinhos. Foi o pretexto para introduzir várias tirinhas que fazem parte do texto, supostamente feitas por meu personagem e de fato desenhadas pela ilustradora Maria Valentina. No final, ficamos sabendo que esse adolescente tornou-se um cineasta que está justamente filmando a história da qual participa.

No meu livro de contos, Felizes Poucos, todos eles sobre algum aspecto dos 21 anos da ditadura civil-militar, senti a necessidade de introduzir a figura de um curinga, que pedi também a Maria Valentina para desenhar. Esse curinga apresenta o livro e comenta os contos. Foi uma maneira que imaginei para dar um pouco de leveza, ou melhor, um respiro, entre as histórias sombrias que me propus contar.

 

Os personagens

Se, como constato, as imagens participam plenamente de meus livros, eu deveria também imaginar com clareza as características físicas dos meus personagens. Mas essa questão é capciosa. Quase sempre trabalho com muitos personagens, e o fato é que, embora costume descrevê-los, eu o faço em fragmentos. Como resultado, não consigo ver seus rostos com a nitidez que desejaria. Se tivesse o dom do desenho, poderia tentar desenhá-los, como não tenho, seus rostos permanecem para mim em seus contornos, cabelos, olhos, nariz, boca, formato do rosto, queixo, mas sem conseguir juntá-los em uma imagem mais nítida. Quer dizer, se eu passasse por eles na rua, não os reconheceria.

Não sei se isso acontece com os outros escritores / escritoras. Ou se é uma deficiência minha em imaginar um rosto humano diferente dos que conheço.

 

O teatro

Para finalizar, falo rapidamente do teatro. Escrevi duas peças que foram encenadas por Márcio Souza em seu extraordinário trabalho com o Tesc — Teatro Experimental do Sesc de Manaus, vítima recente de um crime cultural, fechado como foi sob o pretexto da falta de verbas.

Foram dois monólogos, baseados em histórias reais. Um sobre uma índia do Rio Negro, Francisca, que na primeira metade do século XVIII entrou com uma ação junto à Defensoria Pública dos Índios denunciando a ilegalidade de sua escravização. E o outro, sobre uma Princesa Isabel representada por uma atriz negra, Isabel do Brasil.

Desnecessário afirmar que escrever para teatro é escrever com imagens. Mas, por se tratar de monólogos, e por paradoxal que possa parecer, não senti esse processo como algo radicalmente separado da literatura. Complementar, sim, mas não totalmente diferente. E meu contentamento foi imenso ao ver minhas palavras em cena e movimento — isto é, em imagens.

 

Uma anedota

No meu primeiro romance, A Mãe da Mãe de Sua Mãe e Suas Filhas, conto a história de uma linhagem de 20 mulheres cuja mãe-primeira nasce no dia em que os portugueses chegaram ao Brasil, e a última é nossa contemporânea. Na escrita desse livro, um pequeno incidente dá bem a ideia de como a cabeça de quem escreve voa junto com suas imagens. Eu estava escrevendo, concentrada com a descrição das cenas das batalhas da Invasão Holandesa, quando Felipe, meu marido, me liga e me pergunta o que estou fazendo. Ao que respondo instintivamente: “Estou invadindo Pernambuco”. Era verdade. Eu realmente não estava ali, ao telefone, e sim no caos das imagens de uma guerra para a qual minha imaginação me levara.


 

Maria José Silveira é escritora, tradutora e editora. Tem seis romances e vários livros infantis e infanto-juvenis publicados. A Mãe da Mãe de Sua Mãe e Suas Filhas (2002, vencedor do prêmio da APCA), Com Esse Ódio e Esse Amor (2010) e Maria Altamira (2020) são algumas de suas obras mais conhecidas.