PENSATA | Lembro 19/09/2024 - 11:48

por Maria Coelho 

 

A morte, de fato, é certa, mas ela existe porque algum dia a vida também existiu.
Quantas vezes você já ouviu o clichê  “a única cer­teza que se tem na vida é a morte”? Aposto que mui­tas. E mesmo assim, ela ainda é um susto. Algo que só acontece com o outro. É como se tivéssemos escolha, mas infelizmente não temos. Vamos morrer algum dia e muito provavelmente vamos perder quem amamos. Não se sabe quando, nem onde ou de que forma. Mas é um fato, precisamos falar sobre isso, precisamos a­creditar que a morte é certa. A partir disso pensar no que faremos com ela. Ninguém nunca vai estar prepa­rado para perder alguém, é ilusão acreditar nisso, mas munir-se de informações sobre a morte e o luto tornam o terreno mais firme, menos estranho. 

Esse não foi o meu caso. Obviamente, eu era uma entre tantas pessoas que achavam que, como num pas­se de mágica, nunca iriam se deparar com a perda de alguém. Mas a morte me atravessou, me arrancou o riso, a minha metade do peito, os prazeres da vida, a leveza dos dias. Tem dias que sonho com isso e vejo os efeitos de um jeito literal: sinto-me com um buraco, par­tida ao meio, com uma ferida. E então acordo e lembro que não foi uma, nem duas, tampouco três, mas mui­tas, muitas vezes. As primeiras mortes com as quais me deparei foram na infância, de tios mais próximos e mais distantes. Na minha cabeça pequenininha, eu só conseguia pensar em como se sentiam os filhos. Se fos­se com os meus pais, eu não suportaria. Mas isso não me fazia pensar que um dia eu seria a filha sem pais. Até que esse dia chegou. Começou aos 15 anos, quan­do perdi minha mãe. Um tempo depois, aos 21, perdi meu pai. Passei a me identificar com uma palavra que me causava tristeza imediata quando a ouvia: órfã. Ganhei um rótulo. Nesse momento, é como se o mun­do tivesse se dividido entre aqueles sem pais e com pais. Eu fiquei na primeira metade e passei a não compreen­der mais todo o resto, ou talvez todo o resto não me compreendesse mais. Era hora dele, o luto.

Eu não sabia o que era esse sentimento, essa con­dição. Já tinha ouvido falar, mas honestamente, tanta coisa em mim doía que decidi entender melhor o que estava vivendo. Na época em que perdi meu pai, eu estava fazendo meu TCC para a faculdade de Jornalis­mo sobre luto, imagem e memória. Eu tinha a opção de ignorar esse sentimento e optar por um tema mais leve, fingindo que nada disso estava me afetando, ou então mergulhar de cabeça. Escolhi a segunda opção. E passei todos os dias do meu luto lendo e pesquisan­do sobre ele. Entendendo como aquilo me domava, fa­zendo minha autoanálise. Com isso eu pude compre­ender algumas coisas práticas.

Descobri que o luto pode ser visto como um tipo de choque, que é causado por consequência da perda de um ente querido. Este choque causa desconforto, altera funções, causa perda de interesse e até uma cer­ta incapacidade de realizar atividades, atuando como uma espécie de doença. Foi muito fácil entender porque pessoas neste estado podem deixar o trabalho, se isentar da tomada de decisões, entre outros. Não so­bra saúde para ser funcional. Apesar disso, o luto é visto como um processo natural da experiência huma­na. O psiquiatra britânico Colin Murray Parkes, que es­creveu uma série de livros sobre perdas, descreve a con­dição com uma dose de naturalidade, como algo que deveria ser encarado como comum por todos nós. No livro Luto: estudos sobre a perda na vida adulta, ele o de­fine de um jeito simplista e ao mesmo tempo com uma grandeza absoluta. “De muitas formas, o luto po­de ser considerado uma doença. Mas pode também trazer força. Assim como ossos quebrados podem se tornar mais fortes do que os não quebrados, a experi­ência de enlutamento pode fortalecer e trazer maturi­da­de àque­les que até então estiveram protegidos de desgraças. A dor do luto é tanto parte da vida quanto  a  alegria  de  viver; é, talvez, o preço que pagamos pe­lo  amor,  o  preço do compromisso. Ignorar este fa­to ou fingir que não é bem assim é cegar-se emocional­mente, de maneira a ficar despreparado para as per­das que irão inevitavelmente ocorrer em nossa vida”.

Desde que li a definição de Parkes, a frase ecoa na minha cabeça. “A dor do luto é tanto parte da vida quan­to a alegria de viver”. Como pensar então que es­se sentimento nunca deve existir? Como ter medo de enfrentar algo que é simplesmente a condição imposta a nós que escolhemos amar e viver? Mas não dá para se enganar. Apesar de ser uma consequência da perda de algo que foi muito importante para nós, o luto é ava­ssalador, e nunca é igual. Ele se manifesta de inúmeras maneiras possíveis para quem o sente. Não há uma re­gra, um consenso. Por vezes, vem da maneira clássica como conhecemos, com uma dor aguda, que nos deixa na cama, em lágrimas, como se o mundo não fizesse mais sentido e desse lugar a um grande vazio. Mas pode se refletir no indivíduo de incontáveis maneiras. 

Segundo Parkes, é composto por diferentes fases, que se manifestam de inúmeras formas em cada indi­ví­duo, seja pela duração, como pela forma. Pode se ma­nifestar de forma fragmentada, quando o indivíduo en­lutado pode ir e voltar para cada fase do processo. Além disso, a característica mais comum do luto não é a de­pressão profunda — embora ela exista — mas, sim, epi­sódios agudos de dor, com saudade e dores psíqui­cas. Estes episódios ocorrem em algumas horas ou dias após a perda, e o ápice é entre cinco a 14 dias após a morte do ente querido. Mas o luto não existe apenas em decorrência da morte. Existem diversos tipos de si­tuações que desencadeiam esse sentimento. Ele pode se manifestar com o fim de um relacionamento, a perda de um emprego ou uma mudança de casa. Esses tipos de situações fazem com que o indivíduo vivencie todas as suas fases. Outros psiquiatras afirmam que o luto gera um tipo de depressão reativa, que causa ansieda­de por conta de uma separação forçada. Além de sentir muita dor, o enlutado passa a buscar pe­lo outro, por quem já se foi. 

Nesse sentido, existe a memória. Nesses tantos estudos entendi também que a memória, em si, é sim­ples. Ela nada mais é do que a capacidade de armaze­nar informações já ultrapassadas. Mas no caso de quem recorre à memória para conseguir lembrar de quem já se foi, a memória é muito mais que isso. O sociólogo e pesquisador Michael Pollak afirma que a memória é seletiva, que nem tudo fica gravado e registrado. Há um filtro feito por nós, indivíduos. No entanto, a memó­ria resguarda questões relacionadas às emoções, sen­timentos e ações do ser humano. O que também signi­fica que pode haver uma identidade além da pessoal, em que o indivíduo busca o autoconhecimento na cha­mada identidade coletiva. Com a memória, existe uma presença, um rastro. É uma espécie de suporte visual, um relicário da vida. Meu pai morreu há quatro anos, minha mãe há dez. Não há um dia em que eu não ten­te visualizá-los. Queria poder tocá-los com a retina, enquadrá-los com os meus próprios olhos. Mas sou o­brigada a recorrer à memória, já que ela está indisso­ciavelmente ligada ao luto. No entanto, passei a olhar para cima e registrar. Para mim o céu carrega toda a vida, as energias daqueles que amamos. Toda vez que eu olhava para cima, eu sentia que um instante era ca­paz de congelar o infinito. Fotografei muitas vezes as nuvens, mas talvez minha foto favorita seja a do meu pai olhando para elas. Tudo isso está conectado. Eu co­nheço, sinto, penso, vejo, e na falta da visão, eu lem­bro. O ato de lembrar nos faz compreender que de fato o outro existiu, que a vida é real. Que se estamos aqui, mas no futuro não estaremos mais, alguém vai lembrar de nós. Lembrar me faz entender que a morte, de fato, é certa, mas que ela existe porque, algum dia, a vida também existiu.

 

Maria Coelho é jornalista e fotógrafa. Atuou como repórter na Gazeta do Povo e na Agência Estadual de Notícias do Paraná. Atualmente, trabalha com assessoria de imprensa. É entusiasta de assuntos que envolvem luto, imagem e memória.

 

Maria Coelho
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