PENSATA | Kendrick Lamar 15/07/2024 - 10:55

Rap é como um esporte, cada geração nova alcança feitos mais incríveis do que a anterior e formatos são superados. Mas que formato foi ultrapassado por Kendrick Lamar? Talvez pela insana dedicação à competitividade que o gênero musical traz, Kendrick alcançou um patamar artístico na música que hoje parece ser insuperável. Isso se deve pela sua capacidade de combinar diversos gêneros de música negra como jazz, soul, R&B e funk, com características próprias de introspecção, narrativa pessoal e crítica social. Toda esta amálgama se transforma em um resultado único e incomparável por meio do ritmo e poesia da literatura urbana de Kendrick Lamar.

 

"Eu lembro que você estava em conflito. Abusando da sua influência. Às vezes eu fazia o mesmo..."

 

O rap, como literatura oral urbana, combina palavra falada e música e cria uma interface estética rica. Enraizado na tradição africana, onde a oralidade é central, o rap utiliza ritmo, poesia, som e palavra para transmitir mensagens socioculturais. A performance do rapper dá uma materialidade poética única, unindo oralidade e escrita. Ao utilizar técnicas de vanguarda como montagem e colagem, o rap explora novas formas de expressão. A convergência de música, poesia e performance é central na estética do rap, que documenta a realidade das periferias e transforma a violência urbana em resistência cultural e arte. Assim, o rap desafia as fronteiras entre literatura e música, sendo uma ferramenta poderosa de agenciamento comunitário e transformação social.

 

"…abusando do meu poder, cheio de ressentimento. Ressentimento que se transformou em uma profunda depressão..."

 

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Capa do álbum To Pimp a Butterfly (TDE / Aftermath / Interscope, 2015)

 

 

A partir de álbuns que instantaneamente se tornaram clássicos como Good Kid, m.A.A.d city, de 2012, e To Pimp a Butterfly, de 2015, Kendrick solidificou seu lugar tanto na música quanto na literatura. Ele joga com o tempo e a métrica, criando um fluxo que é ao mesmo tempo imprevisível e cativante. Kendrick Lamar não é apenas um músico talentoso, ele é um poeta e cronista de uma era, cuja obra transcende os limites do gênero e deixa um impacto definitivo na cultura contemporânea. A seguir, uma análise sobre o que pode ser considerado a melhor obra do rapper. A ordem das faixas analisadas não é exatamente a mesma do disco.

 

"…encontrei-me gritando no quarto do hotel. Eu não queria me autodestruir. Os males de Lucy estavam ao meu redor..."

 

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Capa do álbum Good Kid, m.A.A.d City (TDE / Aftermath / Interscope, 2012)

 

 

To Pimp a Butterfly, ou TPAB, sua obra-prima, é um retrato do próprio Kendrick, ou pelo menos de onde ele estava em seus 20 e poucos anos, entre o lançamento de Good Kid, m.A.A.d city e este álbum. As músicas seguem as linhas de um poema que ele escreveu, recontando a montanha-russa que sua vida se tornou ao tentar reconciliar sua fama e a súbita fortuna com o trauma de sua criação em Compton, Califórnia. À medida que o álbum avança, ele adiciona mais versos ao poema até completá-lo no final do álbum. Kendrick traça paralelos entre ele mesmo e Tupac Shakur — sua maior referência no rap. Aliás, toda essa conversa paralela em azul que você está lendo é o poema que Kendrick lê para Tupac durante todo o álbum. Na última faixa, "Mortal Man", esta conversa imaginária entre os dois, que dura cerca de sete minutos, é revelada.

 

"…então eu fui correndo atrás de respostas. Até que cheguei em casa..."

 

Um tema recorrente ao longo do conteúdo lírico de TPAB é a contradição. A justaposição mais óbvia que este álbum apresenta são as faixas "u" e "i", em português, ("você" e "eu"). "U" é centrada no ódio de Kendrick por si mesmo ("eu te odeio!") e "i" é sua autoafirmação ("eu me amo!"). As contradições surgem novamente em "For Free?" e "For Sale", a primeira define um ponto de distinção em relação à sua integridade e princípios, enquanto a segunda o retrata sendo desviado pela influência de Lucy, abreviação de Lúcifer, um título que Kendrick atribuiu ao sucesso comercial e à ganância corporativa dentro da indústria do rap. "É como olhar para uma bala dentro de uma arma, sabendo que você pode se matar com ela, mas você ainda está pegando e brincando com ela.", diz Kendrick, em entrevista ao The Guardian, sobre a definição de Lucy nesta faixa.

 

"…mas isso não impediu a culpa do sobrevivente..."

 

Na faixa "King Kunta", Kendrick orgulhosamente se declara "O Rei" por encontrar sucesso. Aliás, Kunta Kinte é o personagem principal do romance Roots: The Saga of an American Family, de Alex Haley. No livro, Kinte se recusou a aceitar o nome "Toby" que os senhores de escravos tentaram dar a ele. O pé direito do personagem foi cortado após tentativas de escapar da plantação em que foi escravizado.

No álbum, a música é seguida por "Institutionalized", que desmonta essa fachada orgulhosa ao iluminar a influência que sua tumultuosa criação em Compton ainda tem sobre ele, apesar de seu sucesso. Kendrick acredita que os pobres e marginalizados são institucionalizados pela prisão, racismo e classismo, enquanto os ricos e poderosos são institucionalizados pelo medo, dogma e dinheiro.

 

"…indo e voltando tentando me convencer das listras que ganhei. Ou talvez como A-1 minha fundação era…"

 

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Personagem Kunta Kinte da minissérie Raízes (Roots, ABC, 1977)

 

 

Já na faixa "These Walls", o título remete à expressão “se essas paredes pudessem falar.” O complexo jogo de palavras de Kendrick introduz paredes metafóricas e literais em camadas — as "paredes" da vagina de uma mulher, as paredes de uma cela de prisão e, finalmente, as “paredes” de sua mente e consciência. o rapper usa esse conceito para explorar sexo, abuso, sua própria carreira, seus inimigos e a psique humana. Como um ato de vingança, Lamar tem relação sexual com a mulher de um homem que está na prisão por ter matado um de seus amigos. Uma analogia para um ciclo de assassinato, luxúria, sedução, vingança e culpa.

 

"…mas enquanto meus entes queridos lutavam na guerra contínua na cidade, eu estava entrando em uma nova..."

 

"Momma" é Kendrick colocando os pés de volta no chão após sua saúde mental quase ter se perdido por completo. É possível traçar um paralelo desta faixa com "Dear Mama", do Tupac, do álbum Me Against the World, de 1995, que também vem em 9º lugar na lista de faixas. A música é seguida por "Hood Politics", que é uma reflexão de Kendrick com uma compreensão mais estreita e juvenil do mundo. Também é um desenvolvimento e um contraste da última música, "Momma". Enquanto a música anterior era sobre como Kendrick esqueceu como era estar onde cresceu, este é ele se transportando para uma época em que o seu lugar de origem era tudo o que conhecia.

 

"…uma guerra baseada no apartheid e na discriminação..."

 

pensata kendrick lamar
Recortes do videoclipe Alright (London Alley Entertainment, 2015)

 

Pensata Kendrick Lamar
Recortes do videoclipe Alright (London Alley Entertainment, 2015)

 

Pensata Kendrick Lamar
Recortes do videoclipe Alright (London Alley Entertainment, 2015)

 

 

A faixa “Alright”, talvez o maior hit do disco, tornou-se um hino de resiliência e esperança. No verão de 2015, durante a conferência Movement for Black Lives na Cleveland State University, a música foi tocada e gerou um momento de união e celebração entre os ativistas presentes, mesmo em meio à notícia da morte de Sandra Bland. A letra de "Alright" reflete a longa história de opressão negra e a luta contínua por justiça e igualdade. Kendrick Lamar capta essa dualidade em seu refrão otimista "We gon' be alright" (Nós vamos ficar bem), contrastando com versos que expressam dor, raiva e autocrítica. A música menciona a brutalidade policial e a dificuldade de manter a esperança em meio ao trauma e à violência.

 

"…me fez querer voltar para a cidade e contar aos manos o que aprendi. A palavra era respeito..."

 

"Complexion (A Zulu Love)" é uma celebração da negritude em todos os seus tons e matizes, seguida por "The Blacker the Berry", uma declaração política e uma história de luta interna. No clímax da música, Kendrick apresenta uma reviravolta poderosa e confessa ser "o maior hipócrita de 2015", questionando sua própria legitimidade para condenar a violência racial. Essa autocrítica culmina na linha: "Então por que eu chorei quando Trayvon Martin estava na rua, quando a gangue me fez matar um negro mais negro do que eu? Hipócrita".

 

"…só porque você usava uma cor de gangue diferente da minha..."

 

Justin Charity, do Complex, sugere que Kendrick está questionando se a brutalidade policial e a violência de gangues não são, de fato, tragédias interligadas, consequências do mesmo sistema opressor, e que uma não pode ser plenamente compreendida sem considerar a outra.

 

"…não significa que eu não posso respeitá-lo como um homem negro..."

 

Michael Chabon, escrevendo no Genius, propõe uma leitura ainda mais complexa do dístico final da música. Ele sugere que Kendrick emprega um movimento retórico semelhante ao de Common na última linha de "I Used to Love H.E.R.", mas de maneira ainda mais devastadora: ao revelar algo surpreendente que dá novo sentido à letra. Em "H.E.R.", Common revela que "ela" é o próprio hip hop. Aqui, Kendrick Lamar revela a natureza da hipocrisia enigmática que o narrador confessou três vezes anteriormente na música sem explicar: que ele lamentou o assassinato de Trayvon Martin quando ele mesmo foi o responsável pela morte de um jovem negro. O "ela" de Common não é uma mulher, mas o hip hop; o "eu" de Kendrick não é apenas ele mesmo, mas sua comunidade como um todo.

 

"…esquecendo toda a dor e mágoa que causamos um ao outro nessas ruas..."

 

KL. Pensata
Kendrick Lamar na 60ª Edição do Grammy Awards em 2018

 

Essa revelação leva o ouvinte a uma compreensão mais profunda e ampla do "você" da música e a considerar que, em certas situações, a "hipocrisia" pode ser uma posição moral muito mais complexa do que geralmente se permite, e talvez inevitável. O que nos leva para a derradeira e última faixa, "Mortal Man", com a seguinte tese de Kendrick: "quando a merda bate no ventilador, você ainda é fã?". Você ainda abraça Kendrick Lamar, não como um deus do rap ou influenciador rico, mas como um homem que ainda está em progresso, com todas as suas contradições, falhas e inseguranças expostas ao lado do orgulho e das conquistas? Você ainda poderia ter abraçado Tupac, não como um rapper famoso, um bandido incendiário ou um profeta santificado, mas como um jovem adulto complicado, puxado em muitas direções diferentes ao longo de sua curta vida, com chance de crescimento pessoal tragicamente interrompida pelas balas de um assassino?

 

"…se eu te respeitar, nos unificamos e impedimos o inimigo de nos matar..."

 

Em "Mortal Man", Kendrick une essas narrativas duplas ao confrontar diretamente a questão da lealdade dos fãs. A linha "Quando a merda bater no ventila‐ dor, você ainda será o meu fã?" serve como um desafio e um clamor por sinceridade. Ela questiona se o apoio que ele recebe é genuíno ou superficial, ecoando a insegurança que permeia tanto a vida pessoal quanto a carreira de artistas negros na indústria musical. Essa pergunta também reflete o reconhecimento de Kendrick de sua própria mortalidade e falibilidade, destacando que, apesar de sua ascensão ao status de ícone, ele continua vulnerável às mesmas forças que derrubaram outros antes dele.

 

"…mas eu não sei, eu não sou um homem mortal, talvez eu seja apenas mais um mano".

 

 

Carlitos Marinho (1997) nasceu em Mariluz, no Paraná. É jornalista na Secretaria de Estado da Cultura do Paraná e pesquisa Gestão Cultural no Programa de Pós-graduação da Unespar.

 

*Todas as traduções feitas no texto são de responsabilidade do autor