PENSATA | Gisele Eberspächer 21/12/2021 - 13:57

Do que um gênio é feito

Reflexões sobre a noção de genialidade na narrativa e na crítica contemporânea

 

Vou começar este texto com a história dele próprio. Há cerca de um mês, entrei em contato com o editor do Cândido para sugerir uma Pensata sobre um tema que me intriga. Ele aceitou. Eu, com tempo de sobra para fazer o texto, um privilégio um tanto raro no mundo de hoje, não comecei imediatamente. Mas não muito tempo depois revisito as leituras necessárias e começo a separar trechos que podem me ajudar com o texto. Na semana que antecede a entrega, fico esperando a "inspiração": aquele momento em que vou saber exatamente como construir meu argumento e apresentar a ideia; uma estrutura que poderia fazer com que este texto fosse incrível e tivesse algum impacto positivo. Isso não aconteceu. E aqui estou, um dia antes do meu prazo, reescrevendo uma primeira versão meio problemática.

Partindo dessa descrição, é provável que você tenha imaginado uma cena meio de filme, de uma pessoa meio perturbada indo buscar xícaras e xícaras de café. Na época de ouro do cinema, eu estaria fumando um cigarro na frente de uma máquina de escrever. Mas nada funciona. Isso seria seguido do momento "eureca!": um sonho, uma visão, uma lembrança, algo despertaria em mim aquele momento em que de repente tudo faria sentido, em que o texto fluiria de mim com facilidade — momento seguido por uma montagem de uma pessoa produzindo intensamente, com naturalidade. E então um desfecho. Neste caso, o momento em que o texto é publicado e lido por… Bom, você. O exemplo é bobo, claro, mas o que esperamos aqui é a narrativa típica da genialidade — a inspiração que bate e resolve um problema (em geral criativo) num fluxo ininterrupto e quase inacreditável. Um tipo de narrativa de ficção comum hoje em dia.

Definir um autor ou autora como um gênio ou um livro ou obra como genial não é incomum na crítica — é provavelmente um dos maiores elogios que se pode esperar. Em geral se alude a um ineditismo da obra ou a uma maestria em sua execução. A palavra está lá em uma das minhas leituras mais recentes. Na introdução de um livro de cartas entre as inglesas Virginia Woolf e Vita Sackville-West, a quadrinista Alison Bechdel (autora de Fun Home) define Woolf como um gênio: "Sua beleza frágil se encaixa na narrativa trágica e condenada de heroína feminista coerente com seu tempo: ela era um gênio, assediada pelo seu meio-irmão, lutando contra alguma doença mental; e no fim, depois de escrever um dos grandes livros do século XX, ela se afogou" (o livro, ainda não traduzido para o português, foi publicado em inglês pela Vintage Classics).

Mas basta uma olhada no Aulete para ver que a palavra "gênio" tem vários significados — seis no total —, o que quer dizer que tem uma longa história e múltiplas interpretações possíveis. Começando com a ideia de um espírito que regia o destino de um determinado grupo em crenças antigas, passando por questões de aptidão, capacidade e talento, chegando no caráter de alguém e sua capacidade de se irritar (como em "ter um gênio forte").

Vamos para os exemplos de gênios. Mozart, um clássico. Assim como Vincent van Gogh. Na cultura pop mais recente, Sheldon, de The Big Bang Theory. Numa das adaptações mais recentes de Sherlock Holmes, a personagem é usuária de drogas e tem uma imensa dificuldade de se relacionar com outras pessoas — apesar de ser um gênio na solução dos crimes. Esse é um padrão dessas personagens: elas apresentam várias dificuldades de convívio social, chegando a ser abusivas em alguns exemplos. Mas seus comportamentos são (ao menos parcialmente) perdoados quando alcançam seus grandes feitos e apresentam suas grandes obras. Obras que nas narrativas são apresentadas muito mais como frutos da inspiração e do talento inato do que de muito trabalho — e essa é uma estrutura narrativa comum.

O assunto despertou interesse no campo da literatura também. O crítico norte-americano Harold Bloom, por exemplo, se debruçou sobre o tema na obra Gênio — Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura (Objetiva, Trad. José Roberto O’Shea). Vale ressaltar que dos 100, apenas 10 são mulheres, e que a maioria dos escritores é do mundo anglófono, assunto da pesquisa do autor, o que resulta em um recorte específico não explicitado como metodológico pelo pesquisador. Bloom, de qualquer forma, parte da estrutura da cabala para elencar o que ele acredita serem os gênios da literatura — ainda que falhe em definir exatamente o que está entendendo como gênio.

Este é, de qualquer forma, um tropo amplamente presente na nossa produção narrativa. Mas não é unânime — e recebe críticas de vários campos. Uma delas é feita pelo pesquisador e empreendedor britânico Kevin Ashton. Com passagens pelo MIT e autor de desenvolvimentos importantes na área da internet, ele poderia facilmente ser considerado um gênio da tecnologia (como Steve Jobs já foi retratado várias vezes). E talvez justamente por estar próximo desse assunto que resolve reverter esse pensamento — e em 2016 publica o livro A História Secreta da Criatividade (Editora Sextante, Trad. Alves Calado), com o objetivo de mostrar que a criatividade não é para poucos.

A tese central de Ashton é que a criação é intrinsecamente humana, com pessoas criando soluções para inúmeros problemas diariamente. Para ele, o mito da genialidade se torna cada vez mais presente com o avanço da noção de autoria, surgida no Renascimento. Antes desse período, a reivindicação de crédito era quase inexistente em quadros, textos e assim por diante. É o Renascimento que vê o aumento da noção de propriedade criativa. A partir disso, surge também o mito da genialidade, no qual os gênios têm seus momentos dramáticos de percepção e grandes obras surgem inteiras. É o caso de Michelangelo ou Leonardo da Vinci.

"O mito da criatividade é um erro nascido da necessidade de explicar resultados extraordinários através de atos extraordinários e personagens extraordinários, uma compreensão errada da verdade de que a criação vem de pessoas comuns e de trabalho comum. Não requer nada de especial", afirma o autor em seu livro. E Ashton ressalta ainda que essas produções raramente são isoladas — ao contrário, são resultados de vários desenvolvimentos anteriores nem sempre creditados como deveriam.

Para Ashton, a importância de desmistificar a produção criativa não está só em um âmbito individual ou mercadológico — é também uma maneira de assegurar a permanência da espécie humana no mundo. Perante desafios ambientais, sociais e políticos que serão enfrentados nos próximos anos, a humanidade depende de sua capacidade de encontrar soluções, e isso passa pelos incentivos à criatividade em um âmbito pessoal.

O conceito também recebe uma crítica contundente do campo da crítica feminista. A própria Virginia Woolf toca tangencialmente no assunto em seu ensaio Um Teto Todo Seu (Tordesilhas, Trad. Bia Nunes de Sousa), de 1928. O ensaio é um aprofundamento de um discurso de formatura proferido pela autora em uma faculdade de moças com o tema mulheres e literatura. O argumento central de Woolf é que naquele momento não existem tantas escritoras quanto escritores não por uma questão de capacidade inata, mas por conta das condições sociais — o difícil acesso das mulheres a uma educação de qualidade e a círculos sociais criativos, sua obrigação social de ficar em casa e cuidar dos filhos e a falta de autonomia em administrar seu próprio dinheiro e tempo faziam que não tivessem as mesmas condições de produção que os homens tinham.

A título de exemplo, Woolf cria uma personagem fictícia: Judith, irmã de Shakespeare. Enquanto o irmão estudava e tinha a chance de ir para Londres trabalhar, "sua talentosa e extraordinária irmã, é de se supor, ficava em casa. Ela era tão aventureira, tão imaginativa, tão impaciente para conhecer o mundo quanto ele. Mas ela não frequentou a escola (...) Logo seus pais surgiam e ordenavam que fosse coser as meias ou cozer o guisado e não mexesse em livros e papéis", escreve a autora. Apesar de não entrar no conceito de genialidade, Woolf afirma que a imaginária Judith teria tanta capacidade quanto o irmão para produzir, mas não chegou nem perto disso por suas condições sociais enquanto mulher. São também as condições que permitem Shakespeare ser o que foi.

O tema é aprofundado e ampliado pela historiadora da arte Linda Nochlin no ensaio Por que Não Houve Grandes Mulheres Artistas?, publicado originalmente em 1971 na revista ARTnews e no Brasil pela Edições Aurora (que disponibiliza gratuitamente o arquivo digital), com tradução de Juliana Vacaro. Nochlin se aproxima do tema pelo viés das artes plásticas, mas é possível extrapolar seu pensamento para mais tipos de produção.

Para Nochlin, o mito do criador genial já existe desde a Antiguidade. Seguindo uma lógica similar à de Woolf, afirma que o cenário de produção de quem chamamos de "gênio" exige um sistema de suporte imenso que o leve onde chegou. Como exemplo, mostra quantos artistas conhecidos aprenderam seus ofícios com seus pais, que lhes passaram automaticamente o conhecimento de várias gerações. Isso culmina no "Grande Artista", que tem essa aura misteriosa de "última bolacha do pacote".

Respondendo a pergunta de seu próprio título, Nochlin admite que não é apenas uma questão de recuperação histórica de possíveis artistas mulheres que tenham ficado esquecidas. É, sim, uma questão de admitir o quanto o próprio sistema está apoiado em um modo de acesso ao conhecimento e aos meios que exclui as mulheres, o que é feito pela reafirmação da estrutura narrativa do gênio (vale dizer que o que estou chamando de estrutura narrativa ganha em Nochlin o nome de "mundo de faz de conta").

E com isso podemos chegar, por exemplo, na série O Gambito da Rainha, uma das mais comentadas dos últimos anos. Baseada em um livro de Walter Tevis e disponível na Netflix, a obra narra a formação de Beth, uma órfã prodígio do xadrez, e seu caminho até vencer os grandes enxadristas de seu tempo. E em seu caminho abusa de suas relações pessoais, se torna dependente química e atravessa o que parece ser uma depressão.

Apesar de ter retratado um cenário minimamente realista do mundo do xadrez, vale apontar que este não era um meio comumente frequentado por mulheres. E esse provavelmente é um dos pontos altos do roteiro: o alívio de finalmente ver uma mulher ocupando o espaço de protagonista neste tipo de narrativa. O lugar de gênio incompreendido nem sempre esá disponível — e não deixa de ser um ótimo entretenimento ver uma mulher jovem ali.

Mas isso não quer dizer que a narrativa não acabe replicando uma estrutura que é por si tóxica. A genialidade de Beth parece inata e, apesar das dificuldades, parece ser um impulso que a move constantemente. E o espaço não estava disponível para qualquer mulher, mas para ela, genial, única.

Assim como uma comédia romântica com seus finais previsíveis, as narrativas de genialidade também apresentam uma estrutura previsível e fechada, respondendo a certas expectativas e tropos. Há o momento em que a personagem percebe sua predestinação no mundo, seguido pelas barreiras encontradas para executá-la. A personagem se torna um gênio incompreendido, abusando de tudo e todos. Há altos e baixos, e eventualmente isso leva à concretização da obra — de maneira genial, claro. Haverá algum tipo de redenção, na qual contatos são restabelecidos e desavenças resolvidas. E todos vivem felizes para sempre. E apesar de poder gerar boas narrativas ficcionais, isso não necessariamente corresponde a uma maneira de se entender a criação e produção no mundo real.

Quanto tirada do contexto narrativo e usado no contexto de crítica, a palavra genial dá a entender que a nossa produção, no mundo real, está sendo feita de uma maneira semelhante a esse arco narrativo. Isso alimenta a ideia de que precisamos nascer prontos, ter inspiração, ser um gênio, para fazer qualquer coisa que valha. E é nesse ponto que o conceito parece chegar em seu limite no debate atual.

Empresto uma frase de Ashton para terminar meu texto: "Quando perguntamos aos escritores sobre seu processo, aos cientistas sobre seus métodos ou aos inventores onde eles encontram suas ideias, estamos esperando um truque, uma receita ou um ritual para invocar a magia — uma alternativa ao trabalho. Isso não existe. Criar é trabalhar. É fácil assim e difícil assim".

 

 

Gisele Eberspächer é jornalista, professora e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Mantém desde 2012 o canal de crítica literária Vamos Falar Sobre Livros? e colabora regularmente com o jornal Rascunho. Junto com Paulo Pacheco, e sob a supervisão de Ruth Bohunovsky, traduziu a peça O Presidente (2020), de Thomas Bernhard. Vive em Curitiba (PR).