PENSATA | Crítica em Tempos de Internet 28/04/2021 - 16:01

Gisele Eberspächer

Vamos um pouco para o passado. Idos do verão de 2010. Eu, então estudante de Jornalismo, passava um verão lento na praia, com uma pilha de livros. No meio deles, Frenesi Polissilábico, do Nick Hornby (Trad. Antônio E. de Moura Filho, Rocco). O livro é uma coletânea de textos que o escritor inglês publicou na revista The Believer entre 2003 e 2006, em uma coluna chamada What I've Been Reading [O que Tenho Lido]. A coluna mensal começava sempre com duas listas, títulos comprados e títulos lidos, e estreou com a explicação da proposta de Hornby: explorar sua vida como leitor, o que o leva de um livro para outro, do que se desiste de ler e por quê. Em resumo, ele propôs um narrador em primeira pessoa para o suposto trabalho objetivo da crítica. Não que ele tenha sido o primeiro. De cara já lembro de ensaios da Virginia Woolf, por exemplo. Mas já chego na parte que justifico porque estou falando justamente dele.

Pulando para 2021, estou perto de completar dez anos produzindo conteúdo sobre literatura na Internet, principalmente para o YouTube. Esse é um tipo de crítica com recepção ambígua: de “rasa” à “grande incentivadora de leitura”, já se falou um tanto sobre os perigos ou maravilhas das resenhas online.

Mas antes de entrarmos no assunto, vale um aviso importante, considerando aqui todo o conteúdo produzido em plataformas online, Instagram, blogs, podcasts e assim por diante. Todos são espaços abertos e democráticos: com conexão e equipamentos mínimos, qualquer um pode postar seu conteúdo. De especialistas a leitores comuns, vários dão seus pitacos sobre qualquer livro. De resenhas de um parágrafo postadas nas legendas do Instagram a aulas de quase três horas, há espaço para tudo. Portanto, tudo que vier a partir de agora é uma generalização feita por mim, tomando como base os formatos que me parecem mais populares.

Agora sim, vamos lá.

Boa parte desse conteúdo produzido na internet envolve um aspecto visual, especialmente em mídias mais novas (como Instagram ou TikTok). Mesmo os podcasts ou blogs, que não tem na imagem a parte central de seu conteúdo, vão trazer algum tipo de logo e material visual de divulgação. Mas, no Instagram e no YouTube, esse aspecto imagético envolve a casa da pessoa, sua estante e sua coleção de livros. E, claro, envolve a pessoa em si. Que os antipáticos sejam desculpados, mas nesse mundo o carisma é essencial. Nesse contexto, os receptores estabelecem relações com seus criadores favoritos de conteúdo. Afinal, aquela voz está sempre ali enquanto lavamos a louça, tomamos café da manhã ou vamos dormir. Há uma presença.

Com isso, chegamos no conteúdo. Duas das formas mais canônicas são os vídeos de "o que eu li" e "livros que comprei / recebi" (com variantes nos títulos). Nada de diferente da coluna de Hornby (não disse que ia explicar?): um resumo do mês do leitor em formato resumido. É a permanência desse narrador, um eu-crítico, que não só fala sobre livros, mas também sobre sua vida navegando esses livros.

É fácil perceber isso com a quantidades de "eu" ou verbos em primeira pessoa que tipicamente aparecem nesses vídeos: o que eu li, comprei, recebi, gostei, não gostei, amei. Quando lemos, o quanto lemos, o que queremos ler —  tudo isso é parte central do conteúdo mais típico no mundo online.

Esse formato de crítica parece extremamente interessado no "eu" de criadores de conteúdo em si. Em veículos tradicionais, o crítico é um nome, talvez uma biografia com um parágrafo de extensão —  em alguns casos, um desenho estilizado. No YouTube e no Instagram, é uma pessoa com rosto e timbre de voz, com cara mais cansada em um dia e menos nos outros, com casa e cachorro latindo (ou gatos derrubando coisas, como preferir). Há uma corporalidade e presença dessas pessoas que não ficava tão latente em formas mais consagradas, o que traz um nível diferente de subjetividade do conteúdo.

Parênteses aqui. Não vamos ser inocentes a ponto de achar que alguma crítica possa ser completamente neutra ou objetiva. Nananinanão. Sempre somos leitores e quando lemos e comentamos um livro trazemos toda nossa bagagem e nossas intenções. No ensaio Confissões de um Crítico Literário, George Orwell defende que a profissionalização do crítico criou críticas insossas (palavra minha, não dele): críticos recebem livros de seus editores e escrevem seus textos por dinheiro. Não há necessariamente paixão pelo assunto, ou mesmo interesse. Para ele, as melhores críticas vêm de leitores envolvidos: seja por amor, seja por ódio, alguém que desenvolveu uma conexão profunda com o texto, seu tema e seu autor é capaz de entregar uma crítica muito mais interessante e elucidativa. Um toque de subjetividade que traz algo de positivo para o texto. Então quando chamo atenção para a subjetividade não estou pensando em sua ausência em outros formatos, mas sim no nível de exposição do eu-crítico e explicitação dessa relação. Fim do parênteses.

Imagino que esse nível de exposição fique evidente para as pessoas que compartilham conteúdos na internet, principalmente pelas perguntas e comentários que surgem naturalmente e extrapolam o assunto central. Em um exemplo pessoal: o tema central do conteúdo que produzo é literatura. É natural que o assunto mude para temas afins (estantes ou chás), mas é mais do que isso: de relacionamentos pessoais a hábitos de alimentação, já me perguntaram de tudo. Perguntas que nunca recebi via leitores das minhas resenhas no jornal Rascunho ou qualquer outro veículo. Isso mostra uma ênfase maior no indivíduo.

Vendo a situação como um todo, me parece que pelo menos parte da produção crítica anda em um caminho paralelo ao da autoficção na literatura. Apesar de já ter existido em outros momentos (com Proust, por exemplo), o nome em si é cunhado em 1977 pelo escritor francês Serge Doubrovsky para definir seu próprio livro, Fils [Filhos], e parece ter sido retomado com certa intensidade nos últimos tempos. Tanto que é uma das mutações da literatura apontadas por Leyla Perrone-Moisés para o século XXI. Possivelmente o nome mais lembrado da literatura contemporânea de autoficção é o norueguês Karl Ove Knausgård, que dedica seis livros de grande porte para narrar sua própria vida. A autoficção é fundada na experiência do autor e na narrativa sobre si mesmo, seus sentimentos e suas questões. Perrone-Moisés inclusive menciona que muitos críticos tomam as redes sociais e o novo egocentrismo de nosso tempo como uma das causas do reaparecimento tão intenso dessa literatura nos últimos anos.

Assim como a literatura se voltou para as experiências do indivíduo, às vezes à exaustão, a crítica parece fazer um movimento parecido. Nesse círculo, não se fala mais apenas sobre os livros. Se fala também sobre as experiências e hábitos dos leitores. O entorno é quase tão importante quanto o comentário sobre os livros e o crítico se torna uma espécie de narrador de uma história da leitura, um narrador eu-crítico protagonista: são suas experiências e inquietações que determinam suas próximas leituras.

Um dos efeitos disso é uma certa desmistificação do leitor —  e de quem pode ler. Existem vários tipos de pessoas comentando livros na internet. De várias idades, vários lugares do mundo, vários gostos literários. E mais: vários tipos de discussão, de comentários mais rápidos e superficiais e análises profundas. É mais fácil para qualquer um achar seu nicho e se sentir mais motivado a ler a partir de indicações bem mais específicas do que a maioria dos veículos consegue oferecer.

Além disso, assumo que vejo um charme nessas histórias. Mesmo sem informações pessoais, poucas coisas são mais íntimas do que nosso percurso pelos livros. O que lemos, quando lemos. Autores que abandonamos, autores que descobrimos. Todas as minhas inquietações pessoais, problemas e alegrias, estão ali — é só ler o caminho entre os livros.

É difícil dizer o impacto disso tudo a longo prazo. Enquanto isso, dou um viva: de teses a stories, um brinde a tudo que nos ajuda a entender e navegar por esse mundo que é a literatura.


Gisele Eberspächer é jornalista, professora e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Mantém desde 2012 o canal de crítica literária Vamos Falar Sobre Livros? e colabora regularmente com o jornal Rascunho. Com Paulo Pacheco, e sob a supervisão de Ruth Bohunovsky, traduziu a peça O Presidente (2020), de Thomas Bernhard. Vive em Curitiba (PR).