Os bastidores d‘O Herói Provisório 03/10/2017 - 16:30

A escritora Etel Frota narra sua busca pela biografia de Joaquim Ferreira Barboza, personagem esquecido da história paranaense que serviu de mote para a narrativa de seu primeiro romance 


“Vejo o mar, vejo a serra,
vejo a nuvem, que corre,
a brincar com o sol.
Toda costa é cortada.
É uma praia, sem fim...”

Ilza das Neves, poeta, trineta do Capitão Joaquim Ferreira Barboza

Numa tarde remota em Paranaguá, muito antes do começo da peregrinação atrás dos rastros daquele que seria meu personagem, num tempo em que o herói e seu heroísmo eram ainda apenas uma inquietação, parei embaixo da placa do cruzamento das ruas Joaquim Ferreira Barboza com Vieira dos Santos e perguntei a alguns passantes quem tinha sido aquele homem [Joaquim]. Algumas pessoas até me deram alguma informação sobre o historiador Antônio Vieira dos Santos; quanto ao Capitão Ferreira Barboza, ninguém soube me responder. 

Noutro dia, mais remoto ainda, na Ilha do Mel, território que faz parte de Paranaguá, no litoral paranaense, eu tive a primeira notícia sobre a incrível história do herói à revelia, Joaquim Ferreira Barboza, que comandou um combate que entrou para a história do Paraná. Em 1850, os canhões da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, na Ilha do Mel, abriram fogo contra um cruzador inglês, que rebocava três navios brasileiros, supostamente negreiros. A investida, que ficou conhecida como “Episódio Cormoran”, foi comandada por Ferreira Barboza e serviu de pano de fundo para O herói provisório, meu primeiro romance. O problema era que o herói não deixara rastros no imaginário da cidade que tão heroicamente defendera.

Pesquisas
O historiador David Carneiro, em A história do incidente Cormoran (1950), minha principal fonte de consulta, dava uma breve notícia sobre as origens de Joaquim: nascido em Cunha, Estado de São Paulo, no dia 25 de março de 1783, teria sido irmão — ou sobrinho — do cônego Januário da Cunha Barbosa (1780-1846). Capelão dos monarcas, jornalista, poeta, fundador da maçonaria, ativista pela independência, esse religioso foi personagem de primeira grandeza nas décadas de formação da nação brasileira. A essa altura, já irremediavelmente tomada pela obsessão que me conduziu a O herói provisório, esse Januário — irmão ou tio — era a melhor pista que eu tinha, na busca da biografia de Joaquim Ferreira Barboza. Fui atrás dela. 

Januário, entre as outras inúmeras citadas façanhas, foi o fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Fui para o Rio de Janeiro e me internei no IHGB buscando notícias sobre a família do cônego, na esperança de encontrar alguma pista de Joaquim, seu irmão ou sobrinho. Descobri, ali, um outro universo, um outro personagem fascinante, material para outro romance — trata-se do filho do português Leonardo José da Cunha Barbosa, futuro Barão de Ipiabina, e sua esposa Bernarda.

O cônego Januário teve uma vida de notabilidades, uma morte publicamente pranteada com superlativos e aparentemente logo esquecida — uma correspondência burocrática do cemitério onde fora sepultado dava conta ao IHGB, em 1850, de que os ossos de seu ilustre fundador se haviam extraviado por uma indesculpável indiferença de seus parentes. Os mesmos sobrinhos que não zelaram por seus despojos se digladiaram, após a sua morte, na disputa das benesses que lhes adviriam das comendas que o tio recebera em vida. Foi o que encontrei. Nenhuma outra referência familiar. Nenhum Joaquim.

De mãos abanando, segui para Cunha (SP). Novamente, nenhum rastro da passagem de Leonardo, Bernarda, Januário ou Joaquim, quer no “Inventários e Testamentos (1787 a 1900)”, tampouco na “Relação dos Povoadores de Cunha”. 

Por sugestão dos pesquisadores cunhenses que me ajudaram, fui procurar pelos documentos de batismo. De algum lugar David Carneiro havia de ter tirado aquela informação. Passei mais alguns dias na cidade de Lorena (SP), sede da diocese à qual pertence a paróquia de Cunha, antiga Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facam. Mergulhei nos alfarrábios, literalmente. Encontrei a certidão de batismo, documento que era também, à época, o registro civil de nascimento. Vinha assinada pelo Vigário Bartholomeo de Carvalho Pinto:

“Aos vinte e cinco de Março de mil settecentos e oitenta e trez annos nesta Freguezia, ou Matrix de Nossa Senhora da Conceição do Facam, baptizei, e puz os santos oleos a Joaquim filho de Francisco Paulino de Aguiar Ferreira, e de sua mulher Jeronima Fernandes moradores no bairro da Encruzilhada. Foram padrinhos o Capitam Joam Gomes de Syqueira e Antonia da Sylveira de Souza cazados, todos desta Freguezia de que fiz este assento, que assignei.”

Era um Joaquim, de sobrenome Ferreira, batizado na data que o historiador David Carneiro registrara como a de nascimento do herói. Era o que de melhor eu encontrara ao longo da peregrinação nesses anos todos. Decidi que estava encerrada a minha pesquisa com relação à ascendência do personagem: já que informação não havia, construiria para Joaquim uma infância de filho bastardo de Leonardo, o legítimo pai de Januário da Cunha Barbosa.  

Ilustração: Marciel Conrado
mc


Minha segunda principal fonte de consulta foi Memória histórica de Paranaguá, de Antonio Vieira dos Santos, aquele da rua transversal à do Joaquim. A obra, de 1850, tem dois volumes. Conseguira comprar uma preciosa segunda edição de 1921, apenas do primeiro volume, que li no papel. Algum tempo depois, tive acesso à versão digital de inúmeras obras do acervo do IHGB de Paranaguá. Aprendi o recurso da pesquisa por palavras nos arquivos PDF e raramente voltei aos livros de papel. Havia, nesse material digitalizado, o tal segundo volume de Memória Histórica..., que incorporei à pesquisa, sem o cuidado de lê-lo previamente na íntegra. Identifico, nesse momento, o meu primeiro pecado mortal como “pesquisadora” sem academia e sem método: recém-desembarcada no maravilhoso mundo da biblioteca digital, e na impossibilidade de ler de cabo a rabo todo o material, “folheei” os livros, deslumbrada e a esmo, a partir dos títulos e dos resultados para termos pesquisados.

Narrativa escrita, invenções consolidadas, tendo meus heróis demonstrado o que eu desejara demonstrar, aposto o ponto final cuja tinta ainda não secara, recorri mais uma vez mais ao Memória histórica..., versão digital, para rever algumas datas e conferir alguns dados. Eis que me deparo — só então — com uma nota de rodapé, no segundo volume, que dava conta de uma outra notícia biográfica de Joaquim Ferreira Barboza — filho legítimo de Francisco Paulino, homem muito religioso, respeitado dos generais, do bispo e de todos; tratava-se com decência e gravidade. Antonio Vieira dos Santos e Joaquim Ferreira Barboza foram contemporâneos, o que torna a verossimilhança dessa informação — quem sabe ouvida da boca do próprio militar — incontestável. 

Partindo para a ficção
Sim, desde o início eu quisera escrever uma ficção. Mas me importava que fosse construída a partir de bases reais, naqueles casos em que realidade rastreável houvesse. Cometera, contra a minha intenção, uma falha primária. Tomei o nome de uma possivelmente sóbria e recatada Senhora Jerônima e o emprestei a uma moleca avoada, a quem fiz amásia acidental de um futuro nobre da Corte, o Barão de Ipiabina. O nome de um professor conhecido por ser homem de muita probidade acabou atribuído a um agregado caricato, que aparece na narrativa de raspão, apenas para acomodar o nome paterno na certidão de batismo real do bastardo inventado. O venerável cônego da Casa Real, prócer da independência do Brasil, impelido por essa trama novelesca, acabara por protagonizar uma ação discutível, providenciando o despacho de seu irmão bastardo para a Guerra Cisplatina, o mais longe possível da Corte, onde sua carreira seguia impávida, nas abas da nobreza. 

Oscilei alguns dias entre o desespero e o desânimo. A princípio, pareceu-me imperioso jogar fora a infância de Joaquim, as bucólicas paisagens de Cunha, os pesadelos com as mamangavas, Dona Alfa e a fazenda. Era falsa a moldura do mito fundador do caráter tíbio do Capitão Joaquim, que no final das contas não passava de outra invenção. Ruiu todo o arcabouço ficcional destinado a suportar o único fato histórico relatado como tal, o incidente Cormoran. Cogitei desistir.

Abandonei o livro por algum tempo.

Pouco a pouco, entretanto, alguns fatos e memórias começaram a vir em socorro da sobrevivência do projeto em vias de ser dizimado. 

Embora a obra de David Carneiro não traga informações sobre suas fontes bibliográficas, é altamente plausível a hipótese de que o livro de Antônio Vieira dos Santos — principal historiador de Paranaguá e coetâneo do “Incidente Cormoran” — tenha sido servido para suas pesquisas. Isso me colocava em ilustre companhia no equívoco quanto à filiação de Joaquim Ferreira Barboza e, de certa forma, me absolvia de suas desastradas consequências ficcionais.  

A narrativa O herói provisório, que pretendera ser, inicialmente, mera tentativa de espiar o homem por trás de suas circunstâncias, já tinha enveredado, por minha conta e risco, pela perplexidade ante o borramento da fronteira entre história e ficção, e um certo escândalo ante a carga de adjetivos e testemunhos sensoriais emprestados à descrição do “Incidente Cormoran” pelo historiador David Carneiro — que 100 anos após o acontecido, aparentava ter estado presente não só aos combates, como às mentes e corações dos combatentes. 

Lembrei-me, a essa altura, do personagem revisor Raimundo Silva, dizendo ao emérito historiador, autor do livro que revisava, A história do cerco de Lisboa: “Em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura. A história, sobretudo, sem querer ofender...”

Novamente em boa companhia, escorando-me em Saramago — que haverá de me perdoar a ousadia — alinhavando um a um os argumentos pró, desconsiderando maciçamente os contra, decretei afinal a sobrevivência da narrativa.

Novas revelações
Mas ainda não se haviam esgotado as surpresas. Aos ascendentes, vieram somar-se os descendentes. A família de Joaquim, em cujo rastro eu passara, em vão, a última década, materializou-se de uma vez só, como em um passe de mágica. Por esses mesmos dias soube que aquele pesquisador de Cunha acabara de encontrar, no meio de suas infindáveis pesquisas, uma carta — datada de 1967 — do arquiteto paulista Christiano Stockler da Neves, em que fazia saber à prefeitura da cidade um fato que acabara de descobrir: seu bisavô — pai de sua avó Leopoldina — Joaquim Ferreira Barboza, herói paranaense, era na verdade nascido em Cunha, e portanto merecedor de figurar no panteão dos notáveis daquela cidade. Christiano, que além de arquiteto renomado à sua época, chegou a ocupar a prefeitura de São Paulo, durante alguns meses, em 1947, morrera em 1982.

Seguiu-se mais uma rodada de buscas. Encontrei, em São Paulo, Christiano Stockler da Neves Neto, 70 anos, tetraneto de Joaquim. Por profissão, engenheiro. Por vocação, um colecionador de livros, documentos e histórias. Sabia que tinha um antepassado famoso na história do Paraná, mas desconhecia-lhe nome e feito. Falou-me, entre muitas outras coisas interessantes, da tia-avó Ilza das Neves, poeta, e do seu livro Passos de luz, publicado em 1954. Uma estrofe do seu poema “Viagem ao Sul” epigrafa este texto. Ficção por ficção, imagino Ilza, em sua “viagem ao Sul”, sobrevoando deslumbrada o recorte da Ilha do Mel, a serra, a baía, o farol, a silhueta da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, perfeitamente visível em dias claros, sem ao menos supor que, um século atrás, seu trisavô protagonizara ali o feito de sua vida.

Deve ser assim, de forma precária, que vai se construindo a crônica dos feitos humanos, em sua grandeza e miséria. Minha Lurdinha, afinal, se chamava Leopoldina, não me custaria tê-la rebatizado. Poderia, quem sabe, ter amarrado umas tantas gaiolas à cerca da casinha na Lapa, com sabiás cantando à passagem de Joaquim pelo quintal, na tentativa de envergonhadas e tardias escusas à memória ilibada desse seu pai Francisco Paulino que tinham acabado de me apresentar, muito apaixonado de criações de passarinhos, de todas as diversidades. Pendurar na parede da casa na Fortaleza um retratinho muito bem composto de uma certa Dona Jerônima, as feições sisudas caprichosamente desenhadas a bico de pena, emoldurado em prata lavrada, que seria areado reverentemente por nossa Lurdinha/Leopoldina, junto com as espadas do pai. Inaugurando uma nova ficção, descrever, no futuro, o primeiro encontro da moça em São Paulo com Christiano Stockler Lima, descendente de ilustre capitão-mor regente do ouro das Minas Gerais. Quem sabe, até, providenciar um encontro entre esse patriarca Stockler com Leonardo, pai real de Januário e fictício de Joaquim, para quem já tínhamos ajeitado, profeticamente, um cargo de inspetor do ouro em Cunha, somente para lhe facilitar o encontro com Jerônima (a moleca agregada de Dona Alfa, não a senhora esposa do honrado Francisco Paulino). 

Poderia. Futuro do pretérito, tempo condicional e hipotético, já que não mais podia. Quereria, talvez, não mais queria. Esgotara-se o tempo dessa história.

Tantos anos antes — curiosa, leiga e insubmissa — deixara-me comover pelo vislumbre das circunstâncias de um homem, que o conduziram a um destino de heroísmo, queda e punição que em muito excederam sua estatura. Na tentativa de despi-lo, tanto da fatiota de herói como do manto da vergonha do vilão, inventei-lhe um passado e um futuro, fiz barbaridades, contei mentiras, subverti o tempo, cometi sínteses históricas dignas de um samba do crioulo doido.

Estava feito.

Não havia como voltar atrás. Que assim permanecesse a vida fabulada do herói provisório.

Que a memória de Joaquim Ferreira Barboza me possa absolver de todas essas heresias, em nome da alegria de estar sendo, embora canhestramente, apresentada aos seus descendentes. E que trate a História de seguir seu curso precário, imperfeito e para sempre — inevitavelmente – provisório.


Etel Frota nasceu em Cornélio Procópio (PR), em 1952. Estudou Medicina e atuou como clínica geral por quase duas décadas. Começou a escrever depois dos 40 anos. Em 2002 lançou Artigo oitavo, livro/CD de poesia escrita, falada e cantada. Sua produção como letrista de canções abrange uma enorme gama de gêneros musicais — do erudito à música caipira — e de parceiros (de Zé Rodrix ao sueco Måns Mernsten) e intérpretes variados (de Nasi a Maria Bethânia). Uma parte dessas canções está reunida no livro virtual Lyricas — a construção da canção (2007). Etel também é produtora/ apresentadora de rádio e colaboradora do jornal Folha de S.Paulo. O herói provisório marca sua estreia no romance. 

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