OUTRAS PALAVRAS | Mulheres negras e escrevivências 11/08/2025 - 11:11

Por Naomi Mateus

 

O Cândido publica o especial Outras Palavras, uma série de entrevistas realizadas pela equipe do jornal com as escritoras e artistas participantes das mesas re­dondas do evento "Ocupação Mulheres Arquivadas" — ação em parceria com o Projeto Mulheres Arquivadas e a Biblioteca Pública do Paraná — realizada no mês de março.

A mesa "Mulheres negras e escrevivências" contou com a participação de Rosane Arminda, Jo Macário e mediação de Hiully Oliveira, mulheres negras que es­crevem e pensam a escrita em Curitiba. A conversa gi­rou em volta do termo "escrevivência", da escritora Con­ceição Evaristo, que une as palavras "escrever" e "viver" e se baseia em uma epistemologia que analisa e pro­duz literatura através das experiências da população negra brasileira.

 

outras palavras
Hiully Oliveira

 

Hiully Oliveira é graduanda em Letras - Português pela Uiversidade Federal do Paraná (UFPR), cofundadora do Cursinho Popular Associação Juventude Araucariense (AJA) e integrante do Projeto Karingana da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), voltado à literatura infantil e juvenil negra. Foi a primeira estudante da UFPR a participar do programa Caminhos Amefricanos, realizando intercâmbio em Cabo Ver­de, onde desenvolveu pesquisas com foco na temática étnico-racial. Seus interesses transitam entre educação, cultura e questões raciais, sempre a partir das encruzilhadas entre vivência, território e memória.

 

Como funciona o seu processo de escrita?

A escrita flui melhor quando minha mente está descansada e inspirada, e essa inspiração eu busco dentro da arte. Escuto música, sinto a poesia falada e escrita, mer­gulho na literatura em prosa. Aí olho para minha vivência, para contar; e para os meus sentimentos, para transformar em palavras o que guardo em mim.

 

"Escrevivências" vêm de "escrever", "viver" e "se ver". Como esse conceito dialoga com o seu trabalho?

Minha escrita é atravessada pela minha vivência. Se não fosse NÓIS, a narrativa seria diferente – como por muito tempo foi. Agora nossas palavras estão no mundo. Honro muito o que Beatriz Nascimento disse: que os povos não brancos "não têm sua história escrita ain­da". Repare no "ainda", dito lá atrás, e na escrevivência que fazemos hoje.

 

Quais obras você indicaria para quem quer começar a ler os clássicos da literatura negra?

  • Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (para ler aos poucos)
  •  "Maria do Rosário Imaculada dos Santos", conto do livro Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo
  • A cor da ternura, de Geni Guimarães
  • Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus

 

O feminismo negro ainda provoca reflexões importantes sobre a estrutura da sociedade brasileira. Como ele atravessa suas produções?

O feminismo negro me humanizou. Escrever sobre minhas vivências e sentimentos é me humanizar — e foi o feminismo negro que me ensinou isso.

 

O que a literatura significa para você?

É lugar de criar, se divertir, curar, falar do que é tabu. No caso da literatura negra, é onde a gente pode sonhar com outro mundo, onde pessoas negras são vistas com humanidade, afeto e complexidade.

 

Que incentivo você daria para meninas negras que querem escrever, mas ainda têm medo?

Eu entendo o medo, mas também sei que sua voz importa. Se você quer escrever, por que não tentar? Se for poesia, rola apresentar no slam da vila ou num sarau. Vai no seu tempo, mas vai. Se aquilomba.

 

Qual foi seu primeiro contato com a literatura, sua relação com as palavras e como decidiu ser escritora?

Foi pela música, depois veio o slam e os livros, que hoje fazem parte dos meus dias.

 

Qual a importância da educação antirracista desde cedo, cultivada por leituras com protagonismo negro, tanto na escrita quanto na vivência da história contada?

Livros só com brancos como protagonistas contribuíram para gerações se enxergarem como "o outro". Ter protagonismo negro bem representado nos livros é nos ver de forma inteira: com cabelo, pele, cultura e história. É nos reconhecer como humanos.

 

Quais temas você ainda sente que são pouco explorados por mulheres negras?

Vejo a escrita da mulher negra como um lugar de cura. E curar também é falar de amor, de amizade. Eu adoraria ver temas como esses.

 

outras palavras
Rosane Arminda

 

Rosane Arminda é escritora, poeta, pensa e pesquisa literatura de cordel, professora e mãe. Uma das vencedoras do "Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres", em 2023, lançado pelo Ministério da Cultura com seu livro de estreia, Ubun­tu Mulheres.

 

Como funciona o seu processo de escrita?

A escrita é algo que vem sem avisar, porém à noite quando todos dormem, me sinto confortável para criações.

 

"Escrevivências" vem de "escrever", "viver" e "se ver". Como esse conceito dialoga com o seu trabalho?

No papel, encontrei espaço para respirar, para transformar as dores em palavras e os silêncios em voz.

Ho­je, a escrita é um portal — um caminho que me levou a escolher ser professora.

Escrevo para não adoecer, para lembrar quem sou e de onde venho. Ser professora também é um ato de escrevivência: é partilhar, ensinar, mas também aprender com as vivências que atravessam o corpo e a sala de aula. Minha escrita nasce da urgência, mas floresce na escuta, no afeto e na memória.  

 

Quais obras você indicaria para quem quer começar a ler os clássicos da literatura negra?

Ubuntu Mulheres, Rosane Arminda, com certeza! A leitura precisa ser prazerosa. Conceição Evaristo é um marco, sem dúvida! Mas acredito que também é urgente falar da cultura local. Aqui no Paraná, Doces Memórias de Dona Alice Silva. O Tempo é Rei, do Mestre Can­di­eiro. Escritoras negras como Jô Macário; Nará Olivei­ra, em São Zoripes.

É impossível não mencionar Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Paulina Chiziane, com Niketche – Uma História de Poligamia. E Frantz Fanon, com Pele Negra, Máscaras Brancas.

 

O feminismo negro ainda provoca reflexões importantes sobre a estrutura da sociedade brasileira. Como ele atravessa suas produções?

Acredito que o corpo da mulher negra já nasce político. Falar de nós, mulheres, envolve um processo tênue e resistente — mas que precisa ser trazido à tona sem estereótipos. Nas minhas escritas, penso sempre na ancestralidade, pois houve muitas antes de mim, falando e resistindo. E é essa presença que transforma as próximas gerações.

 

O que a literatura significa para você?

Sempre digo aos meus alunos: ninguém nasce gostando de ler — o gosto pela leitura é algo que se constrói, gradativamente. A literatura é consequência. "Literatura é tudo que a boca come", adaptando para uma frase de Pastinha da capoeira, pois a capoeira é literatura.

Literatura é oralidade, é a dança do samba de roda, é o Jongo, é a contação de histórias.

O Blu, minha palhaça, só existe por causa da poesia. Acredito que a literatura é ramificada e livre — ela se espalha, se reinventa e resiste em cada corpo, palavra e gesto.

 

Que incentivo você daria para meninas negras que querem escrever, mas ainda têm medo?

O medo é natural — ele caminha com a gente, mas não pode nos paralisar. Acreditar no medo é uma escolha, e nós podemos escolher a coragem. Existem muitas poetas jovens negras fazendo barulho bonito, como Nick Rodrigues e Vênus — vozes potentes que mostram que é possível ocupar esse lugar.

Para aquelas que ainda não perceberam sua potência, eu diria: escrevam mesmo com medo. Escrevam porque muitas antes de nós foram silenciadas, e escrever é também um ato de libertação e continuidade.

A nossa escrita é memória, é denúncia, é sonho, é cura. E o mundo precisa das nossas palavras.

 

Qual foi seu primeiro contato com a literatura, sua relação com as palavras e como decidiu ser escritora?

Através das histórias e “causos” contados pela minha mãe e pelo meu pai, fui me enraizando na oralidade. Escrevo desde os 13 anos. Naquela época, escrevia traduções de músicas em inglês — e, relendo agora, percebo que já eram poesias de uma jovem sonhadora. Escrever, para mim, sempre foi um ato de coragem. E publicar um livro é um salto ainda maior. Mas é esse salto que nos confirma: nossas palavras têm força, têm voz, têm lugar.

 

Qual a importância da educação antirracista desde cedo, cultivada por leituras com protagonismo negro, tanto na escrita quanto na vivência da história contada?

Como estou num processo acadêmico, vejo muita importância e urgência em autores como Laura Santos, Milton Santos, Lélia Gonzalez e Cidinha da Silva nas escolas públicas. Eles são essenciais para pensarmos a educação de forma crítica, antirracista e inclusiva. Falar de educação antirracista é entender o letramento de jovens, fortalecer cada “fala”, para não ser esquecida. Temos mais de 20 anos da Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africananas, e ainda há um processo para documentar todos os dias do ano. 

 

Quais temas você ainda sente que são pouco explorados por mulheres negras?

A mulher negra tem sido chamada, muitas vezes, apenas para narrar a dor, mas também precisamos ser autoras de nossas festas, sonhos e silêncios. As mulheres negras estão escrevendo, sim, o que falta é visibilidade, divulgação e reconhecimento.

Vejo que gêneros como a ficção, o romance e a crônica ainda não recebem a valorização merecida quando são produzidos por mulheres negras. Também sinto que nosso espaço na política — e aqui falo de política pública, do cotidiano, da presença ativa nos espaços de decisão — se torna cada vez mais necessário.

Acredito que muitas de nós ainda estamos escrevendo com a urgência de sobreviver, resistir e afirmar a própria existência. Pouco se fala da infância das meninas negras sob um olhar de afeto, das velhices negras como sabedoria e não como cansaço, do prazer, do erotismo, da liberdade de ser sem ter que se explicar.

 

Naomi Mateus é graduanda em Jornalismo pela UFPR e estagiária no setor de Difusão Cultural da Biblioteca Pública do Paraná. Integra o Diretório Acadêmico de Comunicação Social da Universidade e participa do Coletivo Comunica Black, onde desenvolve projetos voltados para a valorização da cultura e da identidade negra.
 

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