No mundo da nuvem 28/07/2020 - 11:48

Em meio à pandemia, pequenas e grandes editoras intensificam suas atividades virtuais e tentam sobreviver às condições impostas pelo “novo normal”

João Lucas Dusi

 

Há quem diga que a Covid-19 talvez tenha terminado de esmagar um mercado que já estava em crise desde que as livrarias Saraiva e Cultura pediram recuperação judicial no final de 2018 — momento em que, segundo estimativa do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), as duas grandes varejistas deviam R$ 240 milhões para as editoras. Para além de cravar causas específicas que tentem explicar o cenário caótico, o consenso é de que o ramo editorial brasileiro segue hoje a duras penas e vem buscando alternativas para sobreviver a mais uma crise, causada pela pandemia que já tirou a vida de mais de 80 mil brasileiros até o final de julho. A solução, ou um caminho para ela, pode estar nas nuvens — da internet.

Para driblar a impossibilidade de se realizar lançamentos presenciais e com o fechamento temporário das livrarias devido à quarentena, os e-books e as vendas online estão assumindo um protagonismo inédito. Seguindo essa lógica para os novos tempos, as atividades das editoras nas redes sociais se intensificaram — com bons resultados, dentro do possível. “Tivemos bastante sucesso no lançamento virtual do livro Mais Longa Vida, de Marina Colasanti”, conta Sônia Jardim, presidente do Grupo Editorial Record e responsável pela criação, no começo de abril deste ano, da Quarentena Literária — portal de atividades online que, em dez temporadas, conectou autores, leitores, editores e críticos literários, oferecendo bate-papos com nomes como Edney Silvestre, Marcia Tiburi e Monja Coen, entre outros. “Estamos tendo aprendizados durante esse período. Nas reuniões [feitas na plataforma digital] Zoom, a gente percebe que pode incorporar um pouco mais disso no dia a dia futuro”, diz Sônia.

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Sônia Jardim é presidente do Grupo Editorial Record. Foto: Reprodução

 

Outras editoras — de maior ou menor porte — também aderiram às atividades online. A Companhia das Letras lançou em março a newsletter Leia em Casa, para compartilhar reflexões e indicações de leitura por e-mail, e desde 2018 possui um catálogo de audiobooks. Para Otavio Marques da Costa, publisher da casa, a migração do físico para o virtual pode ser um processo, em parte, irreversível. “Creio que o contexto atual de certa forma alterou o comportamento do leitor / consumidor de literatura, que, talvez premido pela relativa dificuldade maior de obter livros físicos, deu uma chance aos aplicativos de leitura”, afirma.

Ainda assim, a Companhia vai seguir editando livros impressos. Em agosto, para citar apenas um exemplo, está previsto o lançamento de Canções de Atormentar, que marca o retorno de Angélica Freitas à poesia após oito anos. E, para o ano que vem, deve sair a primeira edição brasileira de Los Adioses, do uruguaio Juan Carlos Onetti, com tradução de Miguel Del Castillo. “Resta saber como vai ficar o mercado quando for restabelecida certa normalidade”, pondera Marques da Costa.

Enquanto o trem não volta para os trilhos, a Todavia também trabalha em cima dos novos padrões. “A intensificação da atividade digital é absolutamente incontornável neste momento”, diz Flávio Moura, um dos editores da casa que, de seis livros por mês, passou a lançar dois, apesar de ter registrado um aumento significativo nas vendas de obras digitais — de 6 ou 7% da renda, agora representam algo em torno de 25 a 30%.

Na onda desse crescimento, a editora paulistana está lançando uma coleção de ensaios em e-book (também impressos sob demanda) acerca de temas ligados à pandemia, com o objetivo de capturar o momento turbulento por meio do ponto de vista de profissionais de diferentes áreas — Curto-circuito: O Vírus e a Volta do Estado, da economista Laura Carvalho, e Política e Antipolítica: A Crise do Governo Bolsonaro, do cientista social Leonardo Avritzer, são dois dos títulos já disponíveis.

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Eduardo Lacerda está à frente da editora independente Patuá há nove anos. Foto: Rafael Roncato

 

Pior momento
Mas essa guinada para o virtual pode não dar conta de todas as questões que envolvem o fazer e a distribuição literária. “A Patuá sempre foi uma editora de muito afeto e encontros. Queremos voltar a encontrar nossos autores e autoras, participar dos lançamentos, ver os leitores e leitoras; ir nas feiras, festas, saraus, recitais”, diz Eduardo Lacerda, que fundou e está à frente da editora paulistana independente há nove anos. “Acho que esse é o pior momento de nossa história, assim como da história de todas as empresas e pessoas”, continua, reforçando que a pandemia parece ter exposto problemas endêmicos do país, e não exatamente os causado: “O Brasil nunca se preocupou com o livro, com a literatura, com a leitura, com bibliotecas, com as livrarias”.

Apesar da desconfiança de Lacerda, que não acredita que o livro digital vai crescer entre os brasileiros neste momento — e, principalmente, não “resolve nosso problema de base, da falta de leitores” —, a Patuá prepara seus primeiros três títulos em e-book: Todos os Abismos Convidam para um Mergulho, de Cinthia Kriemler, Enfim, Imperatriz, de Maria Fernanda Elias Maglio, e Não Pise no Meu Vazio, de Ana Suy Sesarino Kuss. Além disso, aumentou suas vendas online, com frete gratuito, e vem trabalhando em conjunto com os autores para uma melhor divulgação das obras.

A visão não tão otimista parece ser compartilhada por Nathan Matos, criador da também independente Moinhos. “Em outra entrevista, falei que 2020 já havia acabado. Alguns amigos e amigas me ligaram ou mandaram mensagens dizendo que havia exagero na minha fala. Mas é algo que eu, somente eu, creio nesse momento”, diz. Mesmo sendo pessimista com relação ao que resta deste ano, Matos quer acreditar que algo de bom pode acontecer após a pandemia: “Espero que a categoria se una mais, como tem feito aos poucos, como o grupo Juntos pelo Livro [reunião de mais de 100 editores em prol da disseminação da literatura], e que consigamos todos e todas voltar a ter um crescimento no mercado do livro no Brasil”. Para agosto, a editora mineira prepara cinco títulos: Os Tarahumaras e Textos Surrealistas, do francês Antonin Artaud, Tempo de Fantasmas e No Reino da Dinamarca, do português Alexandre O’Neill, e Sara Luna, do argentino Tom Maver.

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Nathan Matos é fundador e editor da Moinhos. Foto: Reprodução/Facebook

 

“Novo normal”
Mesmo com todos os percalços e adaptações que o momento pede, as projeções não são de todo apocalípticas. Para Sônia Jardim, após o pandemônio “o livro vai ocupar um espaço maior na vida das pessoas”. A partir de parâmetros do que vem sendo chamado de “novo normal”, espécie de reconfiguração comportamental pela qual a sociedade deve passar devido às implicações do coronavírus, ela acha que o livro estará dentro de futuras procuras por novas formas de lazer, em um cenário em que as pessoas estarão mais em casa, um pouco mais voltadas para si. “Quando isso acabar, as coisas vão ficar muito melhores”, arrisca a presidente do Grupo Editorial Record.

Em contraponto, Eduardo Lacerda não é tão otimista: “O mundo não sairá melhor. É ingenuidade pensar isso”. Além da editora Patuá, Lacerda mantém o espaço cultural Patuscada — Livraria & Café, que segue de portas baixadas e, se o isolamento social se prolongar, provavelmente tenha que fechar de vez. O estabelecimento recebeu um investimento de cerca de R$ 20 mil para ser reformado e estava prestes a reabrir quando a quarentena teve início.

Para Ivan Pinheiro Machado, um dos fundadores da L&PM, o objetivo é voltar ao normal o mais rápido possível e cativar o público que nasceu neste período. “A quarentena criou muitos leitores, pois havia todo o tempo do mundo para ler. Precisamos fazer um esforço para não perdê-los”, diz. Ele completa que, no entanto, trata-se de um esforço não tão diferente do que o reservado desde sempre ao pessoal do ramo independente: “Vai ser duro, difícil e trabalhoso. Mas a vida de editor independente sempre foi assim, dura, difícil e trabalhosa. Com ou sem pandemia”.

Já Otavio Marques da Costa, da Companhia das Letras, não arrisca imaginar o porvir (“Creio que poucos têm clareza sobre o futuro próximo”), mas está certo de que “os livros são ferramentas fundamentais para enfrentar os tempos negros que correm”.