Newton Sampaio: contista em tempo de romance 12/01/2015 - 15:20

O professor da Universidade Federal do Paraná Luís Bueno escreve sobre Ficções, livro lançado pelo selo Biblioteca Paraná que reúne a prosa conhecida do escritor paranaense

Na década de 30, um tempo em que o romance dominou a literatura brasileira como se fosse o único gênero literário possível, Newton Sampaio dedicou-se insistentemente ao conto. Seu primeiro artigo de crítica, publicado no jornal O Dia, de Curitiba, já tratava, com propriedade e conhecimento de causa, de um livro de contos de um jovem paulista radicado em Curitiba, O. Emboaba. Nesse texto, aos dezenove anos, Newton Sampaio apresentava uma visão bastante clara do que seria um bom conto, além de demonstrar já àquela altura ter conhecimento consolidado sobre o conto brasileiro. Vejamos o que diz ele sobre o livro:

Sucuruju consta de 16 contos. Todos eles sertanejos. Na urdidura e nos cenários. Todos eles curtos. Rápidos. Sem o horror das descrições intermináveis. Sem o parti-pris de traçar psicologias. De criar tipos.

O autor tem imaginativa relativamente fácil. Sabe preparar o final de cada conto. O que, aliás, é qualidade essencial em qualquer contista. O desenrolar dos entrechos é bem leve. Não cansa. Porque há a leveza do tema, como no conto “Um crime”, cujo final é interessante. E há também, às vezes, um traço de tragédia como na “História dos 4” e na “Maldição do além-túmulo”. A página descrita que começa “A vingança de um morto” é boa. ¹

A principal característica que ele defenderá como elemento central do gênero é a objetividade, sem descrições excessivas — o que não quer dizer que deva abrir mão das descrições, como se deduz pelo elogio final — e sem desejo de caracterizar extensamente a psicologia das personagens. As ações das personagens, portanto, é que devem estar no centro do conto, o ambiente e a caracterização psicológica nascendo delas ao invés de serem atribuídas.

O enredo, para ele, deve se desenvolver tendo em vista o impacto do final. O que ele defende aqui é a concepção clássica de que o conto, por ser breve, deve se concentrar num momento, num aspecto da vida, de maneira que seu desfecho venha a ser uma espécie de culminância ou revelação máxima. Valoriza, na construção desse enredo, o elemento trágico, também sem exageros, como algo a ser explorado.

Durante toda sua curta carreira — interrompida pela morte precoce em 12 de julho de 1938, antes de completar 25 anos — ele se dedicaria ao conto. Assim que teve oportunidade, entrevistou Marques Rebelo, escritor que, naquela altura, era o modelo de contista brasileiro e perguntou-lhe por que o conto estava em decadência, “em anemia”, no Brasil. A resposta foi a de que o brasileiro não tem simpatia pelo gênero já que só considera sério algo volumoso como o romance, e, pela mesma razão, o volume, andariam vazios os recitais de música de câmara e cheios as apresentações de ópera. Mas não se contentou com a explicação do mestre, já que em artigo posterior ele reafirmaria que “na atual literatura brasileira, não sobrou margem para o conto. Maupassant, se residisse ali em Botafogo, certamente morreria de fome...”². Propõe a criação de uma “cruzada nacional de educação” para recuperar o conto e lembra a explicação de Rebelo, para perguntar: “Será tão fácil assim a explicação? Tão fácil, tão simplista?”.

Se não chegou a lançar uma improvável cruzada de educação a favor do conto, tratou pelo menos de fazer a sua parte, publicando contos com regularidade. Fez também experiências em narrativas mais longas, mas, com a exceção da novela Remorso, foram todas interrompidas e seus capítulos muitas vezes convertidos em contos.

Neste Ficções, que, pela primeira vez, reúne todos os contos conhecidos de Newton Sampaio — é possível que haja outros ainda a descobrir nas revistas e jornais cariocas — essa dedicação pode ser percebida melhor do que nunca. Até mesmo os fragmentos de novela ou romance Cria de alugado contribuem para essa percepção ao mostrarem como é pensado como conto aquilo que deveria fazer parte de uma narrativa maior, com principalmente o cuidado em fazer tudo desembocar num final significativo: ligeiramente revistos, transformam- se efetivamente em contos que se bastam em si. Para perceber como isso acontece, é só comparar o efeito dos capítulos de Cria de alugado, “Inspiração” e “Trem de subúrbio”, quando compondo a trajetória de um único personagem, Damião, e quando, lidos como contos em Irmandade, funcionam como narrativas independentes.

Irmandade, como todos os livros de Newton Sampaio, foi publicado postumamente, lançado em novembro de 1938, apenas quatro meses depois da morte do autor. Mas é o único de seus livros que ele planejou e finalizou, com o objetivo de concorrer a um prêmio da Academia Brasileira de Letras. Ele terminaria por ganhá-lo, ainda postumamente, em setembro de 1938 — e, como um prêmio da Academia pode deixar muita gente desconfiada, é sempre bom lembrar que um grande livro, Viagem, de Cecília Meireles, seria o vencedor do ano seguinte, em que o gênero contemplado foi a poesia. Em 1939 outro de seus livros seria publicado, Contos do sertão paranaense, trabalhos coligidos por seus amigos de Curitiba, e, muitos anos depois, em 2002, foram recolhidos em volume os contos que estavam dispersos em jornais e revistas do Paraná e do Rio de Janeiro.³

Irmandade é, portanto, o trabalho mais maduro do autor, e por meio de sua leitura podemos ver como evoluiu sua percepção sobre o conto em relação àquilo que ele explicitou no início de sua atividade intelectual. O mais importante se manteve, e é fácil perceber que a valorização da objetividade jamais seria relativizada. Se, aqui e ali, nos contos de temática regional, seguindo a tradição do gênero, ele talvez tenha se demorado um pouco nas descrições, em Irmandade elas estão reduzidas ao necessário.

A presença de algo que podemos chamar de um elemento trágico ele também manterá, convertendo- -o mesmo em marca registrada sua. Em um conto como “Caco de gente”, a tragédia se avulta, atingindo a todos, a começar pela infeliz personagem-título. Em “Seu Fidélis vai viajar” o trágico se mistura a um leve humor. Esta aliás se tornaria uma marca registrada sua, que Mário de Andrade chegou a apontar em um dos raros artigos críticos a se ocuparem, ainda que rapidamente, do escritor paranaense, ao dizer que ele era “autor de páginas tão expressivas do humour amargo e ridículo das coisas”4. Trata-se de um conto mais longo, em que também se nota o quanto Newton Sampaio reviu, na prática, parte de sua concepção inicial. Aqui, ao invés de se focar num momento especialmente dramático, o enredo percorre a vida de um homem, da infância à maturidade, até um desfecho que, sem ser impactante como ele antes havia prescrito, tem como função dar acabamento a esse clima de, por assim dizer, suave tragédia que percorre a vida de seu Fidélis.

O escritor passa a ver as possibilidades do conto para além de sua conformação mais clássica, percebe que o conto pode explorar algo menos concreto, um clima, uma sugestão. E ele exercitaria isso de maneiras diferentes. Em “Simples diálogo”, por exemplo, o que um casal de personagens conversa, coisa da mais absoluta banalidade, é capaz de fazer crescer, na mente do leitor, a sensação da tensão sexual entre aquelas duas criaturas e as frustrações do amor — em todas as criaturas. Em “Tríptico” a escrita chega a ser pungente, no acompanhamento de três destinos que não se relacionam entre si exceto pelo desencanto.

O conto “Irmandade” mostra, mais claramente que qualquer outro, esse amadurecimento do jovem escritor. É, sem exagero, uma pequena obra- -prima do moderno conto brasileiro. O enredo é mais sugerido do que contado. Embora o final tenha impacto, é difícil dizer que o conto se desenvolve para prepará-lo. Ele está mais a serviço da criação daquela atmosfera que Newton Sampaio foi mestre em obter, o da pequena tragédia das vidas comuns. A intimidade de uma família nos é mostrada de perto, sem que saibamos dela mais do que o mínimo para nos fazer respirar aquela atmosfera.

Antes de ler as histórias de Newton Sampaio, talvez valha a pena, conhecer uma pequena história sobre ele. História com final muito ao seu gosto, feito do humor amargo que encontramos nas pequenas tragédias da vida que ele soube tão bem criar.

Seu último artigo crítico saiu no Diário de Notícias, do Rio, no mesmo mês em que deixaria o Rio de Janeiro para buscar tratamento para a tuberculose na cidade da Lapa, no Paraná. Nele se observa a mesma língua afiada que se pode ver no texto final desta Antologia, que ficaria inédito por dez anos até aparecer na revista Joaquim. Aqui o alvo não são os escritores da província, mas sim os famosos, da capital, incluindo até seu ídolo Marques Rebelo:

E lamentemos, para terminar, que certos felizes cultores do moderno romance e do conto sejam tão insípidos colaborando em jornal. Percebe- se, verbi gratia, em lendo um trabalho avulso do sr. Marques Rebelo, que ele não tem nada a dizer fora do seu gênero, precisando comumente recorrer ao expediente do “Depoimento” para encher duas ou três laudas sem nenhum interesse...5
Ele se refere aos textos que Rebelo publicava quinzenalmente no influente jornal cultural Dom Casmurro, do qual era redator-chefe. O que não poderia saber é que, assim que Irmandade fosse publicado, ele próprio seria o objeto de um desses depoimentos sensaborões. O contista carioca descreve a noite em que Newton Sampaio foi entrevistá-lo em sua casa e acabou tomando café numa xícara antiga de fina porcelana de Sèvres, herança de uma tia e jamais utilizada até aquela noite. Depois disso, todas as vezes em que se encontravam, Newton perguntava: “Como vão elas?”, referindo-se às xícaras. E a resposta era a mesma todas as vezes: “Muito bem, muito obrigado. Continuas o único!”

Como tudo que diz respeito a Newton Sampaio acaba em conto, ele próprio acabaria num, já que Marques Rebelo depois de rever o texto e tirar o nome de Newton, transformando seu protagonista em um homem sem nome, publicou-o como conto, com o título “Um morto” no livro Stella me abriu a porta, de 1946.

Notas
1. SAMPAIO , Newton. Surucuju. In: O Dia. Curitiba, 14/06/1933.
2. SAMPAIO , Newton. Coqueluches da literatura moderna. In: Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 15/08/1937.
3. Ver: SAMPAIO , Newton. Contos do sertão paranaense. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1939 e SAMPAIO , Newton. Remorso – Ficção dispersa. Curitiba:
Imprensa Oficial, 2002.
4. AN DRA DE, Mário. A Palavra em Falso. In: Vida Literária. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1993, p. 91.
5. SAMPAIO , Newton. Articulistas. In: Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 03/04/1938.

Luís Bueno é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Paraná e autor de Uma história do romance de 30, publicado em 2006 pela Edusp e pela editora da Unicamp. Vive em Curitiba (PR).

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