Na contramão do real 08/11/2016 - 15:30

Nascido há 100 anos, Campos de Carvalho deixou uma obra enxuta, apenas quatro livros, mas de originalidade e intensidade incomuns — utópico, o autor discute a falta de sentido da vida


Marcio Renato dos Santos

Ilustração Miguel Nicolau
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Novembro é o mês de celebração do centenário de nascimento de Walter Campos de Carvalho (1916-1998) — ele nasceu no dia 1.º. A Autêntica passa a editar a obra do prosador e comemora a data publicando nova edição de A lua vem da Ásia que, por sua vez, completa 60 anos. Pode ser que alguma universidade ou entidade cultural promova um encontro para discutir o legado do autor, mas a efeméride ainda não deflagrou eventos ou ações de ressonância nacional para lembrar um dos escritores mais ousados e originais do Brasil. 

Campos de Carvalho é conhecido por quatro longas narrativas, que ele preferia chamar de novelas ao invés de romances: A lua vem da Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961), A chuva imóvel (1963) e O púcaro búlgaro(1964). Ele também escreveu, e publicou, Banda forra (1941), reunindo ensaios humorístico, e o romance Tribo (1954) — mas posteriormente renegou ambos os títulos. 

Um dos mais conhecidos estudiosos da obra do autor, Carlos Felipe Moisés afirma que Carvalho — em todas as narrativas que escreveu — demonstra notável domínio de linguagem, riqueza de vocabulário, precisão semântica, agilidade das frases sempre bem construídas e sábia alternância entre períodos longos e breves. Tudo isso, de acordo com Moisés, exerce fascínio sobre o leitor atento. 

“Nada na escrita de Campos de Carvalho fica por conta do acaso ou da improvisação irresponsável. A linguagem de que ele se serve é de fazer inveja a qualquer clássico da língua”, diz Moisés, professor universitário aposentado que já lecionou na Universidade de São Paulo (USP), na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e na Universidade da Califórnia, em Berkeley. 

Tal linguagem conduz enredos pouco convencionais. A lua vem da Ásia, por exemplo, apresenta um personagem — “Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo” — em um local que pode ser hotel, campo de concentração ou hospício. Moisés explica que, aparentemente, o tema central da narrativa é a loucura. “Mas isso é só metáfora, despiste de escritor genial. ‘Loucura’ é a mediocridade da nossa vida cotidiana — aí, sim, é que impera a lei do absurdo. Há muito mais loucos fora do que dentro do hospício, como já sabíamos desde O alienista, de Machado de Assis”, comenta.

Em Vaca de nariz sutil, o protagonista é um ex-combatente que divide um quarto de pensão com certo Aristides, um surdo-mudo. De acordo com Moisés, a obra revela a percepção aguda da morte, mais a perplexidade do narrador, diante da falta de sentido de tudo. “Não dá para separar uma coisa da outra.” A busca por um sentido, para tudo, também está presente em A chuva imóvel. “A morte é o único problema verdadeiro, o único com o qual a gente deve se preocupar. Tudo o mais são só manifestações avulsas e descartáveis da precariedade do ser humano, da falta de sentido da existência. Parece ser esse o (com perdão da palavra) ‘pensamento’ que o autor passa ao leitor, indiretamente, por meio do personagem- -narrador”, observa Moisés, em relação ao livro A chuva imóvel — narrativa que tem André e a sua irmã-gêmea Andréa como protagonistas.

Já O púcaro búlgaro mostra, em um primeiro plano, uma tentativa de realizar uma excursão à Bulgária. Moisés analisa que a obra tem como objetivo maior denunciar o nonsense, o sem sentido da existência. “Não sei se é o livro de maturidade de Carvalho, mas é o que mais atrai e espanta o leitor, deixando-o à vontade para enxergar com mais lucidez o mundo em redor.”

A lógica morreu 

Caroline Heck conheceu a obra de Carvalho há alguns anos, quando cursava História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A primeira impressão que teve da literatura do autor foi a de que tudo parecia perfeito. “A forma como ele lidava com a realidade, com o absurdo das coisas, tudo fez muito sentido para uma guria de então 21 anos”, conta.

Ela decidiu estudar a ficção do escritor. A sua dissertação de mestrado, defendida no curso de Letras da UFRGS em 2007, tem como título “A gargalhada mostra os dentes: o riso como instrumento de crítica em Campos de Carvalho”. Ano passado, defendeu uma tese de doutorado, também na UFRGS, mas no curso de História, intitulada “Qual o(s) Campo(s) de Carvalho?: a literatura e a política no Brasil entre 1956 e 1977 pelo autor e sua obra.”

Na avaliação da pesquisadora, há um mesmo narrador em todos os livros de Carvalho. “E ele tem uma ideia fixa: todo o absurdo da realidade não se justifica já que somos todos mortais”, afirma. Caroline chama a atenção para a primeira frase de A lua vem da Ásia: “Aos 16 anos matei meu professor de lógica.” “É uma frase emblemática. Ele já antecipa o que podemos e devemos esperar: a lógica está morta, junto com o professor. O mundo não é lógico, nada faz ou tem sentido. O absurdo, para o narrador, é a própria existência. A nossa infelicidade vem quando tentamos encontrar lógica e dar ordem a esse caos”, analisa a estudiosa gaúcha.

Dialogando com o ponto de vista de Caroline Heck, o escritor Ernani Ssó, também gaúcho, observa que nem o texto nem os personagens de Carvalho agem por uma lógica feijão com arroz, a lógica do dia a dia dos funcionários e burgueses bem pensantes. “A lógica dele é a lógica das associações, da imagina- ção perfeitamente solta.” Ssó acrescenta que, na ficção do prosador, sempre há humor, que varia entre brincadeiras leves a um humor dramático, absurdo ou mesmo meio mórbido. “Mas a introspecção dos seus narradores chega a ser sufocante. Eles mal chegam ao mundo. Estão às voltas com coisas na própria cabeça. O mundo é apenas uma nebulosa ao redor”, completa Ssó, que também é tradutor, responsável por uma das mais recentes versões em português para o clássico Dom Quixote, de Miguel de Cervantes — (Penguin/Companhia das Letras, 2013).
 
Ssó ainda comenta que Carvalho foi na contramão da prática dos autores realistas, que procuram seduzir os leitores para um simulacro arrumadinho da realidade, um mundo concreto e reconhecível: “Carvalho despreza essa literatura e olha a dita realidade com muita suspeita. Aceitar o jogo dele é viver um tempo na cabeça dele, com essa suspeita. A realidade tem mais furos que todas as peneiras que já existiram. Campos de Carvalho está aí, entre esses furos.”

Utópico radical 

O professor das Faculdades de Campinas (Facamp) Noel Arantes identifica uma série de características na obra de Carvalho, entre as quais estrutura narrativa fragmentária e labirintiforme, sobreposição intercadente de memórias biográficas e de pseudobiografias dos protagonistas, deslocamento de reminiscências para um domínio nebuloso do discurso e lampejos que parecem provenientes ora de um estado de vigília, ora de um estado de delírio. “É isto que conduz as obras e desafia os leitores”, opina

Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Arantes não deixa de observar que todos os livros do escritor são narrados em primeira pessoa — leia mais sobre esta questão na página 6. O especialista também destaca outras nuances no legado de Carvalho, explicitadas pelos narradores, como o interesse pela sexualidade problemática, a revolta contra as instituições, o desejo de implodir a ordem existente e afrontar as religiões, as crenças, os dogmas, a moral, a família e o sentido de vida gregária. 

“É uma literatura cujo objetivo é o de se contrapor ao establishment. Mas tudo isto não encobre o profundo sentido humanista que anima os livros do autor e a enorme vontade de regeneração da condição humana da qual sua obra é portadora”, analisa Arantes, para quem o centro de gravidade de toda a literatura do autor é a utopia, como meio e como fim. 

O pesquisador salienta que, ao dotar os seus personagens com um pronunciado espírito de desordem — que, em boa medida é o espírito de autoria —, Carvalho oferta, em essência, o anarquismo utopista como pilar. “A razão pela qual o estado de espírito utópico teria nos anarquistas a sua melhor representação — e sua máxima potência — vem especialmente da convicção de aniquilar a ordem ou, mais especificamente, toda e qualquer ordem. Esta é a condição fundamental de existência da conduta anarquista e a chama que alimentará todo anarquismo”, diz. Arantes ainda destaca que, para um verdadeiro anarquista, qualquer ordem existente é nociva e não se diferencia de outra ordem existente. “Vejo aí a razão de fundo dos livros de Campos de Carvalho.” 

Absolutamente atual 

Ernani Ssó lamenta que a obra de Carvalho seja, em geral, conhecida apenas por alguns estudiosos e escritores — e, no caso dos ficcionistas, uns amam ou admiram, mas ele não identifica influência do autor de A lua vem da Ásia em nenhum prosador brasileiro contemporâneo. Caroline Heck e Noel Arantes também não encontram eco da obra de Carvalho entre autores brasileiros. “Penso que ele continua único no estilo ao qual deu forma e que encantou muitas gerações de leitores, apesar do silêncio a que se submeteu ou a que foi submetido”, diz Arantes. 

Carlos Felipe Moisés lembra que, desde A lua vem da Ásia, Carvalho vem sendo classificado como “marginal”, em razão da rebeldia, da irreverência, da postura claramente subversiva que adota diante dos valores consagrados pela tradição. O estudioso observa que, ao longo das décadas que nos separam da grande comoção que seus livros provocaram, alguns fenômenos ocorreram. “Protestar, contestar, transgredir, ou rejeitar os valores vigentes, aos poucos foi virando moda. Muita gente, muitos artistas e escritores, adotaram como norma... transgredir. Quando isso acontece, a subversão deixa de subverter. Uma vez adotada pela maioria, pelo menos da boca para fora, a subversão é logo absorvida pelo sistema e transformada em... commodities”, argumenta. 

Há anos, ressalta Moisés, a marginalidade migrou das margens para o centro — e transgredir passou a ser a nova e vitoriosa tradição. “Isso explica um outro fenômeno, relativo à nossa desmemoriada vida literária. Autores genuinamente marginais, como Carvalho, são condenados ao esquecimento, tão logo ameacem pôr fogo no circo. E de tempos em tempos precisam ser repostos em circulação. É o que tem acontecido com o nosso autor, de 20 em 20 anos”, completa. 

O pesquisador analisa que o impacto da obra de Carvalho, comparado com o que aconteceu quando ele surgiu e publicou os seus livros, não é nem poderia ser o mesmo hoje. Primeiro, pondera Moisés, porque as coisas mudaram, as expectativas, agora, são outras — depois porque, afinal, nada se repete. “Mas a necessidade de verdadeira subversão, de transgressão genuína, empenhada em romper com a lógica do absurdo que passou a imperar, atualmente é ainda mais premente. Hoje, eu diria que Campos de Carvalho faz mais falta e é mais atual do que era, 60 anos atrás”, afirma Moisés.

Opção narrativa 

A pedido do Cândido, o professor da Facamp Noel Arantes responde a pergunta: por que Campos de Carvalho sou primeira pessoa em todas as suas narrativas? Confira o ponto de vista do pesquisador: 

Numa crônica publicada no Pasquim (dezembro de 1974 — “Há os que implicam solenemente com o fato de eu só usar a primeira pessoa do singular em tudo que digo ou escrevo” —, o autor tratou do assunto. Procurando fincar pé no terreno da filosofia, escreveu: “só um desavisado não vê logo que o EU do artista é o eu de cada um de nós nas mesmas circunstâncias, e justamente nisso reside todo o segredo da arte: o Homem é sempre um só, e é preciso arrancar-lhe a máscara e o nome e deixá-lo nu em toda a sua beleza e horror. Em outras palavras: o Homem só tem um nome — EU”. 

Mas o que Carvalho definiu filosoficamente, seus leitores e analistas podem explicar estruturalmente. Primeiro, em função do programa literário que ele concebeu e que tem como núcleo o “Eu em choque com o mundo”. Todos os seus livros dão voz ao herói desnaturalizado, que defronta o mundo e que tem na palavra sua única arma. Por isso, a primeira pessoa incendiária. 

Nesse sentido, o que pareceu excessivo a alguns críticos, a tagarelice (dos personagens de do autor), pode ser visto de forma menos simplista. Embora seus protagonistas sejam mesmo tagarelas incorrigíveis, não é improvável que este artifício indique exatamente para o seu oposto, que é o “estar proibido de dizer” (sem que, todavia, se esteja proibido de pensar). É isto que sustenta o jogo retórico proveniente do binômio opressão versus revolta. 

Camus bem o diz na sua concepção a respeito da injunção de causas que produzem o espírito de combate no “homem revoltado”. O que mais faz o autor de Vaca de nariz sutil é dar voz ao “homem revoltado”. Ademais, há também uma questão doutrinária, e que descende do anarcoindividualismo. Carvalho foi um dos poucos autores brasileiros a aglutinar em sua obra alguns princípios que descendem da base teórica que liga o anarquismo à “sensibilidade individualista”.

Para escapar da sedução da lógica

A convite do Cândido, Carlos Felipe Moisés, um dos mais conhecidos estudiosos da obra de Campos de Carvalho, explica se o autor é (ou não) surrealista, como algumas vozes o definem. 

Chamar esse ou aquele autor de “surrealista” é só aplicar um rótulo. Para os apressados, pode parecer suficiente — para os mais exigentes, não quer dizer quase nada. E “surreal” não é sinônimo de “surrealista”. Este se aplica, especificamente, a escritores e artistas vinculados a uma corrente estética denominada “surrealismo”, historicamente datada — já “surreal” pode ser aplicado ao que você bem entender. 

Se entendermos por “surrealismo” aquela corrente dos anos 1920- 1930, liderada por André Breton, com seus manifestos programáticos, dos quais resultou um punhado de exemplos dados por ele mesmo e seus discípulos, como Élouard, Dali e outros, acho muito difícil classificar Carvalho como “surrealista”. Acontece que Breton, na sua tentativa de impor um “ideário”, uma “norma” ortodoxa, provocou brigas. Daí as dissidências que o movimento sofreu: houve mais surrealistas que desistiram do surrealismo do que surrealistas que se mantiveram fiéis às palavras de ordem de Breton. Mas este insistiu tanto que o movimento se espalhou pelo mundo, foi granjeando, pouco a pouco, cada vez mais e novos adeptos, deixando de ser uma estética historicamente datado, com suas “regras” bem definidas, e se tornou uma espécie de “estado de espírito”, fora do espaço e do tempo. Passou a designar uma utopia, a de um mundo absolutamente novo, um homem absolutamente livre da Razão, da Ciência, da Cultura e de todas as maiúsculas consagradas pela Tradição. 

Tal espírito, que não é propriedade exclusiva do ideário surrealista, impregnou grande parte da arte e da literatura do século XX. Daí muita gente passar a ver surrealismo em tudo, quando o que há é só uma parcial afinidade de procedimentos e de propósitos. É o caso de Campos de Carvalho. 

Acho que ele está mais para realista do que para surrealista, embora isso ofenda os espíritos bem pensantes, amantes da boa lógica. O objetivo de sua obra sempre foi, justamente, livrar-nos da sedução da boa lógica. Mas outra vez: surrealista ou não, isso é só um rótulo, a ser empregado com muito cuidado.

O espantalho inquieto e outras novidades

Há alguns anos esgotada, a obra de Campos de Carvalho agora é editada pela Autêntica. Anteriormente, os livros dele estavam na José Olympio. A responsável pela publicação do legado de Carvalho, nas duas casas editoriais, é a editora Maria Amélia Mello. Ela atuou na JO entre 1985 a 2014. Desde o ano passado, assumiu a unidade editorial da Autêntica, uma empresa mineira, no Rio de Janeiro. 

A exemplo do que fazia na JO, Maria Amélia segue apostando em grandes nomes da literatura brasileira na Autêntica. Já viabilizou um livro de Ferreira Gullar (Autobiografia poética e outros textos), um sobre Mário de Andrade (Exílio no Rio), a Caixa Rubem Braga (reunindo crônicas do autor inéditas em livro) e — agora — é a vez de Campos de Carvalho. 

A ideia, de acordo com a editora, é reeditar as quatro longas narrativas, inicialmente A lua vem da Ásia e, depois, Vaca de nariz sutilA chuva imóvel O púcaro búlgaro. Maria Amélia foi a responsável pela “retomada” do legado de Carvalho na década de 1990, quando o autor estava esquecido. 

Em 1994, ela procurou Carvalho, inicialmente em Petrópolis (RJ), mas só o encontrou em São Paulo. Publicou Obra reunida (1995), pela JO, com os quatro livros juntos e, depois, cada um deles individualmente. A pedido de Carvalho, não colocou em circulação os renegados Banda forra Tribo — e também não vai reeditá-los agora. 

Em 2017, a Autêntica deve reeditar Cartas de viagem e outras crônicas, com as crônicas que escreveu para O Pasquim, e um título provisoriamente batizado de O espantalho inquieto, com crônicas, entrevistas raras e a narrativa Espantalho habitado de pássaros (que saiu em uma coletânea em 1965) — conteúdo organizado pelo professor Noel Arantes. 

No dia 7 de abril de 1998, Maria Amélia visitou Carvalho, no apartamento onde ele morava com a esposa Lygia [morta em 2011], em São Paulo. “Ele, que não era de externar afetos, me abraçou e, antes de eu ir embora, disse que ninguém tinha feito por ele o que eu fiz [editando os livros dele]”, conta a editora. Três dias depois, 10 de abril, uma Sexta-feira Santa, morreu o sujeito que nasceu em Uberaba (MG), atuou como procurador do Estado de São Paulo, não teve filhos e, além de literatura, colaborou com a revista Senhor, com o periódico anarquista A Plebe e com diário uberabense Lavoura e Commercio.

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