NICOLAU | Especial Leminski 16/08/2024 - 14:45

Quando a boca encontra a ponta do rabo

Depois de um ano, encerramos o Especial Nicolau no Cândido. Mas, não é um fim. Não é um ciclo, como sugere uma primeira leitura do Ouroboros. A imagem, me parece, não determina um espaço de tempo. É muito mais um ensaio de como as coisas são: vão e voltam, continuam-se em um processo dialético cuja gênese é a contradição da ideia que faz do início o começo; do meio a metade e do fim o encerramento. Explico: se uma cobra não morde o rabo, é apenas uma cobra. O Ouroboros só existe a partir do momento que a serpente finca as presas na própria pele. Se desprende, é mais uma minhoca disfarçada do que Ouroboros. É por isso que encerramos o Especial Nicolau com um texto da sua primeira edição, "CURITIBA, POESIA: TRÊS ANTOLOGIAS". E é porque é aniversário do Leminski que encerramos com um texto do poeta e samurai que foi parte radical do jornal.

O Especial Nicolau surge da observação de que a história das publicações paranaenses modernas de cultura, arte e literatura com nome de gente é bastante autofágica. Em 1946, quando a cobra-dragoa-minhoca mordeu o próprio rabo e lançou seu feitiço nas terras à leste do Rio Paraná, nasceu a Joaquim, de Dalton Trevisan. Mais tarde, passamos pelo Nicolau, Cândido, Helena e, recentemente, a Júlia, da livraria Arte e Letra. Autorreferências e fractais: não existe parte que não forme um todo e não existe todo sem partes e não existe todo que não forme um outro todo depois. E será assim até que o Sol exploda.

 

*Publicamos todas as edições do Jornal Nicolau em sua versão original, inclusive com o acordo ortográfico vigente na época e a biografia dos autores(as).

 

Curitiba, poesia: três antologias

por Paulo Leminski

 

 

Em menos de um ano, três antologias de poesia em Curitiba: "Feiticeiro Inventor" (da Criar), "OSS" e "Encontrovérsia", edição dos autores.

Nesse ínterim, o livro "Sempre Palavra", de Helena Kolody, o álbum "Rimagens", poesia∕desenho, de Alice Ruiz e Leila Pugnaloni, e o reaparecimento do veterano Walmor Marcelino, em "Confabulário".

E, importante, a presença catalisadora e carismática do Alberto "Bar" Cardoso, que soube fazer do seu bar (bares, estou vendo tudo duplo) um lugar da poesia, escrita e falada, ele que a diz tão bem (quem ainda não viu o velho Cardoso declamar, não viu nada ainda). Nosso querido presidente da Casa do Poeta (casa que só existe na cabeça do Cardoso) conseguiu devolver a noite à poesia e a poesia à noite, num movimento neo-romântico, que não ficará sem conseqüências.

O “Correio de Notícias'' publicando poemas em seu Caderno B. A Feira do Poeta, da Fundação Cultural, com suas bandeirinhas juninas, empoetando os domingos e endomingando a poesia, agora, sob a direção do poeta Reinoldo Atem. Curitiba vive hoje um momento de efervescência poética. Como o resto do Brasil, aliás. Semana passada, fui Jazer uma conferência em Ribeirão Preto. Todo mundo que conheci, em Ribeirão, fazia poesia.

A que se deve esse "boom"?

Voltando pra casa, poderíamos até dizer que não se via nada igual, aqui, desde 1910, quando, disse o historiador Brito Broca, "Curitiba era a cidade literariamente mais importante do Brasil". Hoje, se não somos tudo isso (e não somos), estamos produzindo quantidade, portanto, alguma qualidade, essa decorrência da quantidade ("é preciso mil peladas para Jazer um Pelé", disse alguém).

Comparado com o de outras capitais brasileiras, nosso nível médio está alto, e tende a crescer mais ainda. Raro o livro que não tenha um bom poema, raro o poema que não traga um verso surpreendente.

Os poetas começam a surgir aos montes. "Ser poeta, hoje, está na moda", conforme Mário Quintana. A que se deve esse "boom ", nacional, do verbo líricos?

Os caçadores de causas têm aí muitas pistas, hipóteses e probabilidades para testar seu faro.

A sociedade brasileira, por exemplo, se urbanizou violentamente. Ora, cidade significa alfabetização, leitura de códigos complexos; contacto com novas linguagens. A cidade não é apenas o lugar de muitos edifícios altos, avenidas asfaltadas e semáforos. É um lugar cheio de letras. Sem saber ler o nome de uma rua numa placa de esquina, o analfabeto está perdido na cidade. A cidade exige, e pressupõe, a alfabetização. De cada mil que lêem, cem escrevem. De cada cem que escrevem, dez se expressam, escrevendo. Um desses dez vai querer fazer poesia. Essa a explicação mais simples, quer me parecer.

Haveria outras.

Os 21 anos da ditadura não apenas sufocaram os ímpetos criativos de toda uma geração. Anos de mentira, falsidade e corrupção, lançaram também o descrédito sobre todo um discurso mentiroso e corrupto, o discurso (em prosa) que, nos anos do arbítrio, serviu de suporte para a corrupção e o desmando.

É natural que nesta tentativa de recuperação de alguma democracia os jovens, ainda não comprados nem vendidos, se voltem para a poesia como uma espécie de oásis de verdade, sinceridade e saúde. Outro fator gerador de poesia, poemas e poetas está sendo a música popular, que nos chega por toda a parte, rádio, clip, fita, TV, shows.

A uma geração que teve como ídolos Roberto e Erasmo Carlos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, Rita Lee, Chico Buarque e Vandré; sucede uma geração cujos porta-vozes se chamam Paralamas do Sucesso, RPM, Legião Urbana, Ultraje a Rigor, Lobão, Arrigo Barnabé, Itamar Assunção. Em tudo isso, a poesia está presente, sob as espécies de letra de música.

Os poetas da música popular são os menestréis eletrônicos deste século XX, que já cai para o XXI.

Neles, a juventude se espelha. São eles que dizem das dores e alegrias de agora, na linguagem e com os recursos de agora.

Se é poesia melhor ou pior do que a que vai nos livros, que só se lê na escola, não importa. O que importa é que é o código de toda uma geração, seu espelho e sua inspiração.

Pode não ser um grande fenômeno literário. É um grande fenômeno sociológico. E é com a vida (e as palavras) das pessoas que se faz poesia.

Seja qual for o motivo, o "boom" está aí. Nesse campeonato, Curitiba vai bem, obrigado. Às antologias, portanto.

FEITICEIRO INVENTOR

Editada pela Criar, do Roberto Gomes, sob a invocação de Santa Helena Kolody, "Feiticeiro Inventor" é a mais literária das três antologias recentes. Literária no bom e no mau sentido.

Congregando trabalhos de 17 poetas, organizados por Hamilton Faria, é a mais populosa das três, cobrindo as mais variadas gamas, indo da poesia social ao hai-kai, dos poemas em verso livre a rigores maiores, englobando poetas de várias gerações, alguns que mal fizeram vinte anos, até alguns que beiram os setenta.

É uma antologia abrangente. Mas não representativa de um momento.

De um modo geral, é µma antologia, literariamente, de bom nível. O organizador, também poeta e antologizado, soube escolher, entre os convocados, momentos de boa feitura e boa inspiração.

A lamentar, a programação gráfica do volume, pensado como prosa, não como poesia. No “Feiticeiro”, a grafia de todos os poemas é uniforme, como as notícias num jornal. Todos os poetas ficaram com a mesma cara, e a poesia ficou com cara de prosa.

Poesia é coisa muito material. Não é prosa empilhada em versos e empacotada em estrofes.

A programação visual do "Feiticeiro", sobretudo, deixou de lado uma conquista fundamental das vanguardas: a de que um poema é uma aventura na página, numa página. Poemas não devem ser quebrados, metade numa página, outra metade na outra. Esse erro de programação gráfica quebra a unidade dos poemas, e tende a dissolver todos numa massa, mais ou menos amorfa, onde as diferenças se diluem. Sobretudo, porque todos os poemas foram compostos com o mesmo tipo gráfico.

Parece que a intenção foi publicar o maior número possível de poemas de cada poeta convocado.

Na minha opinião, o número de poemas apresentados deveria ter sido, drasticamente, reduzido, para que cada poesia comparecesse só com seu melhor, um poema por página.

Apesar desse erro de programação gráfica, o "Feiticeiro" representa bastante da melhor poesia que se faz hoje, entre nós.

A lamentar, algumas ausências: Mário Stasiak, Vitola, Wilson Bueno, Ricardo Correa, Liberalino, Cescato, Eduardo Ribeiro, Puppi, Solda…

OSS

Em outro terreno, pisa a antologia "OSS", reunindo a produção de quatro poetas, três deles presentes no "Feiticeiro", Thadeu Wojciechowski e os irmãos Prado (Marcos e Roberto), mais Edilson del Grossi.

"Oss", em japonês, é a saudação usual entre os praticantes de artes marciais, principalmente, karatê.

Com essa saudação, somos introduzidos. a porradas, num mundo estranho, o mundo do poesia-rock-and-roll. Boa parte dos poemas de "OSS" são letras de roque, musicadas e tocadas pelas bandas curitibanas "Beijo à Força”, “Maus Elementos” e “Ídolos de Matinê”. Estamos em pleno mundo pop, além ou aquém da “literatura”.

Os textos "OSS" têm a estrutura de letras de música: rimas regulares, metros bem marcados e visam o impacto imediato.

Trata-se, portanto, de um produto híbrido: algo entre e entre.

Nesse sentido, é uma poesia problemática. O "Jornal da Tarde", de São Paulo, que dedicou bom espaço à antologia, com foto dos autores e tudo, se mostrou muito chocado com os "palavrões" da poesia "OSS". Tudo bem, coisas do futebol… Poesia não se faz com palavrinhas, se faz com palavrões.

O problema maior, porém, é a própria questão, que é problema de toda uma geração: até que ponto uma letra de música se sustenta enquanto poesia, no papel?

Algumas coisas, na antologia "OSS", são, realmente, apenas, letras (ou começo de) de rock. E ficam fracos no papel.

Mas há momentos intensos que transcendem essa barreira: "me apresente um cara normal", "não vou ter amigos aos 40", "botando pra poder".

Graficamente, "OSS" apresenta um design mais avançado do que a programação visual do "Feiticeiro": os tipos, mais variados, são ampliados, e cada poema ocupa, exatamente, uma página.

Outro aspecto a destacar é a raridade da criação coletiva: os poemas "OSS" são assinados por dois ou mais poetas, de uma vez, lembrando o trabalho conjunto, próprio da música popular, parcerias e cumplicidades, poemas a quatro, a seis mãos.

 

ENCONTROVÉRSIA

 

Englobando seis poetas, um dos quais, o veterano mestre Scherner saiu no "Feiticeiro", a antologia "Encontrovérsia" não chega apenas com uma bela montagem verbal em seu nome. Chega com uma poesia de boa feitura, com muito parentesco de concepção formal entre os poetas: poemas, na maior parte, curtos, alguns, apenas flashes verbais, incorporando tanto os recursos da poesia "marginal" dos anos 70, quanto das vanguardas dos anos 60 (fragmentações, trocadilhos, espacejamento, tudo em caixa baixa, montagens...). Na assimilação perfeita e sentida destas técnicas, o poema "elemento móvel" de Jandyra Kondera.

Mas os poemas encontroversos não ficam nisso. Ao contrário dos poemas concretos e dos marginais, os encontroversos são intimistas, flagram mini-estados interiores, num movimento que quase dá vontade de chamar ''psicanalítico". Comparados com os arruaceiros acordes da Banda "OSS", os encontroversos têm algo de feminino, de "ying", de delicadeza de pétala passando pela pele da sensibilidade.

O que destoa da relativa uniformidade estilística e formal dos encontroversos é o "Não me Perguntem", de mestre Scherner, longo poema dramático, dança do rei Davi diante da arca, em blocos que levam os nomes das letras do alfabeto hebraico. Um poema, assim, com uma carga erudita de referencial literário, distante do leve brincar de um Cabanas ou do Pena Kuchenberger, autor de deliciosos epigramas no melhor estilo esperto dos anos 70:

 

brota das areias

da procura e da oferta pálido poema

cáctus que deserta

 

Sim, poeta, o cáctus está dando flor.

 

 

Vertigo
Vertigo. Paulo Leminski

 

 

Paulo Leminski*, autor, entre outras obras, de Catatau (1975), Não fosse isso… (Zap, 1980), Caprichos e Relaxos (Brasiliense, 1983 ∕ Círculo do Livro, 1987), Agora é que são elas (Brasiliense, 1985), Trótski, a Paixão segundo a Revolução (Brasiliense, 1985), Anseios Crípticos (Criar Edições, 1986), Distraídos venceremos (Brasiliense, 1987). Sua atividade de tradutor compreende a recriação para o português de Petrônio, Beckett, Mishima, John Lennon, Jarry, Feringhettu, Fante e Joyce.