Mesa-redonda | Olhar para Onde? 25/02/2021 - 18:10

Em uma mesa virtual mediada pela jornalista Mariana Sanchez, durante a quarta edição da Festa Literária da Biblioteca Pública (Flibi), os escritores Xico Sá e Luís Henrique Pellanda discutiram como a crônica — gênero híbrido experimentado a partir do olhar subjetivo — precisou se reinventar neste período de de quarentena. Leia a seguir os melhores momentos da live, que também está disponível, na íntegra, no canal youtube.com/BibliotecaPR.

 

Pellanda e Xico
Os escritores Luís Henrique Pellanda e Xico Sá foram os convidados da mesa Olhar para Onde? Foto: divulgação


 

Quarentena radical

Xico Sá: Eu já vinha perdendo o lirismo depois que se instaurou um horror no país. Estava com uma dificuldade imensa de escrever uma crônica de amor, como sempre gostei. E como fiquei nesse enfrentamento mais político, o cronista lírico estava mais escanteado. A quarentena me roubou o que faltava. Me roubou o garçom, me roubou a frase boa colhida na noite. Foi um prejuízo enorme nesse sentido, mas eu me voltei para o gato, para a minha filha, para o interior geral e foi o que acabou salvando. Tenho cumprido as recomendações, olhando pela janela e conversando com o gato. A minha crônica é o passeio, a noite, a conversa com o garçom. Então esse material foi para o espaço porque fiz uma quarentena bem radical. Nesse período, ao invés de escrever uma fartura de crônicas, escrevi pouco. Fiz uma coisa que nunca havia feito, como o curso de crônica, já estou na quinta turma. Estudei muito a crônica também, desde Machado de Assis até os dias de hoje, isso foi um belo ganho desse ano.

Luís Henrique Pellanda: Ao contrário do Xico, parei com os cursos durante a quarentena. Fiz uma quarentena bem radical também, estou desde o dia 16 de março olhando pela janela e conversando com os gatos e com as minhas filhas. Mas segui um outro caminho. Há dez anos que eu estava publicando crônicas direto e elas seguiam o padrão clássico do flaneur, que vai pra rua e participa da temperatura da cidade. Eu continuava fazendo isso, só que, no final do ano passado, o Bennet, um dos editores do [jornal onlline] Plural e ilustrador das minhas crônicas, me falou assim: "Nossa, Luís, sua crônica está ficando sombria". E na verdade era simplesmente o ruído do ódio nas coisas. No começo deste ano, eu já estava fazendo crônica pela janela mesmo, antes mesmo do isolamento social. Olhando e escrevendo na madrugada porque estava com insônia, pensando demais no que poderia acontecer. A crônica tem muito dessa cultura da janela. É o gênero da fronteira entre a casa e a rua, o privado e o público. Então me posicionei ali na janela, olhei para fora e veio chegando a pandemia. Em abril, escrevi uma última crônica decidido a olhar para outro lugar, não só pela janela. Resolvi me recolher e tirar um ano sabático com a crônica. Estava devendo um livro para a editora Positivo, então resolvi trabalhar em um livro novo de contos, O Caçador Chegou Tarde, que vai sair no em 2021 junto com um livro de crônica, Na Barriga do Lobo, pela editora Arquipélago. Pensei que devia me descontaminar um pouco do contemporâneo, então fui ler e reler literatura antiga, antiga de milênios atrás, e me dediquei a essas leituras como quem vai à infância mítica.

 

Na janela

Xico Sá: Em alguns momentos, essa janela foi algo como o Carandiru, meio presídio. Porque um coisa é você olhar pela janela voltando ou indo para a rua, essa é uma outra janela. A Irene, minha filha, ela já era muito viciada na janela, sempre tem um horário do dia em que ela me pega pelo braço e me leva até a janela. Ela falava pouco e eu ficava narrando a paisagem. Na quarentena, esse exercício com ela foi uma salvação e agora que ela está falando, começou a narrar as coisas e isso deu um novo sentido para a minha janela. No primeiro susto da pandemia, até estrela a gente viu no céu de São Paulo. Quando é que vamos ver de novo uma estrela no céu de São Paulo? A gente conseguiu ver muito céu e estrelas na quarentena e isso foi uma experiência que a janela nos mostrou. Aqui no meu prédio tem um jardineiro que eu nunca tinha percebido o trabalho zeloso e meticuloso dele, nunca tinha conversado com ele, então essa janela me trouxe outras histórias. A rotina da família em frente, eu passei a entendê-los. Houve um olhar de cronista por essas janelas com um bocado de ganho. Mas mesmo sobre esse alumbramento com uma estrela em São Paulo eu não consegui escrever. Escrevi alguma coisa de uma ficção que estou para finalizar há dez anos. Na ficção consegui avançar um pouco. Mas a janela, mesmo no seu melhor dia, não me deu crônicas. Não fui um cronista improdutivo, mas só entreguei as crônicas do El País, com quem tenho um vínculo mais formal. O resto não saiu mesmo com essas janelas, vou precisar do passeio público para voltar a ser um cronista de fato.

Luís Henrique Pellanda: Sempre olhei pela janela, sempre gostei. Mas uma coisa que notei, principalmente no início do isolamento, é que um monte de gente começou a aparecer na janela —coisa que nunca tinha visto antes. Era o momento em que todo mundo estava levando mais a sério o isolamento. Comecei a perceber também as práticas dessas pessoas, os panelaços que surgiram, as brigas entre essas pessoas por causa do panelaço. Fora isso, mantive o padrão de observação de janelas porque é sempre muito interessante. Moro ao lado do Passeio Público e tem a rota das garças, a rota dos socós, rotas dos biguás. Eu e as crianças acompanhamos isso. Tem oito papagaios que ficam numa antena próxima, tem também os gaviões, tem seis carcarás em volta do prédio. Essa observação continua sendo feita. Foras as árvores. Só que com as árvores está sendo pior, porque as árvores da China já estão florescendo de novo —a última crônica que escrevi era o final da florada. Vi o ipê-roxo, que já floresceu e já caíram todas as folhas, vi as cerejeiras e os ipês-amarelos. Vi tudo isso da janela, mas era desesperadora a vontade de andar na rua. Gosto muito do que o João do Rio fala no texto "A Rua", que a rua é a mais democrática das invenções humanas, pois a gente nunca vai estar perdido enquanto uma rua dobrar numa esquina. Isso a gente perdeu temporariamente, mas a gente vai voltar e as ruas estão à espera.


 

Definição de crônica

Xico Sá: A crônica é o PF [prato feito] da literatura. Quando você acerta a crônica, é quando você coloca aquele ovo estrelado materno por cima do bife. O Manuel Bandeira dizia que era um puxa-puxa —você vai puxando um assunto daqui e dali. A crônica é uma conversa fiada. Sempre fui muito leitor, lia os ensaios sobre crônica, mas nunca tinha feito esse estudo de pegar aquela crônica do Machado de Assis sobre o calor no Rio até chegar ao Pellanda hoje, falando sobre os ipês ou sobre o centro de Curitiba. E ter uma ideia da trajetória da crônica brasileira foi um grande ganho da quarentena. Vi que cabe tudo: a conversa sobre futebol, a correspondência amorosa, o conselho amoroso da Clarice Lispector, o pescador do Rubem Braga, a borboleta amarela, etc. Esse percurso foi interessante para ver as mil possibilidades de crônicas. Foi um mergulho muito legal para ter uma ideia de como nós cronistas nos comportamos ao longo desse mais de século de crônica. Começo minhas oficinas por Machado, mas você acha cronistas de 1830, se for procurar. Tem uma safra de novos cronistas, aqui de São Paulo gosto muito de Cidinha da Silva. O bom é que continua esse gênero muito popular, o mais lido, embora seja o primo pobre da literatura. E é um bom iniciador de leitores.

Luís Henrique Pellanda: Não tenho nenhuma grande definição. Mas pegando emprestado uma frase do Tennessee Williams, da peça teatral Um Bonde Chamado Desejo, ao final, quando Blanche DuBois está enlouquecendo ela diz: "Eu sempre dependi da gentileza de estranhos". Acho que o cronista é quem mais depende da gentileza de estranhos. A gente sai de braço dados com os homens de preto o tempo todo. E a gente tem que aceitar essas gentilezas. Talvez seja por isso que a crônica sofra tanto nesses momentos de violência verbal e psicológica porque, em geral, a crônica é uma janela aberta para os afetos. Estava pensando esses tempos nessa pergunta sobre definição da crônica e me lembrei que já ouvi esse pergunta num evento. Estava respondendo que algumas crônicas, por exemplo, eram sonhos transpostos ao ambiente real e uma leitora me falou que ela sempre lia as minhas crônicas como se fossem relatos de sonhos. Fiquei pensando nisso, que era uma leitura interessante e, a partir disso, tive uma outra definição de crônica: quando escrevo, sinto que estou tentando fazer um conjunto das forças solitárias que existem dentro de uma cidade grande, tentando fazer um retrato dessas forças, mas ao mesmo tempo, a ideia do sonho me deu a impressão de que a crônica poderia ser o inconsciente da cidade se manifestando. O que a cidade reprime, esconde lá nos seus porões, vem à tona nesse texto que a gente faz da observação da cidade.


 

Persona

Xico Sá: Sempre acreditei muito na ideia de que crônica é em primeira pessoa. Fui a vida inteira repórter, então a crônica sempre serviu para me vingar um pouco daquela coisa técnica e fria do lide, sublime, daquela organização que tem uma reportagem. A crônica, que serve tanto para dar um refresco para o leitor, me dava esse refresco como autor. Eu saía de uma reportagem, sei lá, sobre o governo Collor em Brasília, e ia pra crônica. Era uma vingança, como se tivesse tomado um porre de liberdade. Me coloco muito como esses personagens da noite, mas esse exercício vai gerando uma caricatura —o cronista da noite, o cronista boêmio, o cronista bêbado. E o seu leitor fica te cobrando se você passar duas crônicas sem se colocar como aquele personagem ou aquela figura que cultua o próprio folclore da bebedeira. Essa escravidão ao personagem faz decepcionar o leitor, quando na verdade você já não aguenta mais ser aquele personagem.

Luís Henrique Pellanda: Mesmo a gente criando um personagem para a gente, inventando coisas ou criando uma caricatura para esse personagem que assumimos, a gente tem de assumir o que o personagem faz mesmo que seja mentira. Em 2009, quando comecei a fazer crônicas, lembro que refleti sobre que tipo de cronista eu queria ser. E passei quase um ano experimentando várias modalidades: o cronista de memória, o nostálgico, o memorialista, o humorista ou o que vai falar sobre relacionamentos. Mas, na época, percebi que ninguém fazia o cronista que flana pelas ruas. Então, como nunca tive carro e sempre andei para todo lado no centro o dia inteiro, podia tentar isso. Nessa época também nasceu a minha primeira filha, então pensei: "E se eu aproveitar e criar o seguinte personagem: o pai que leva a filha para a escola e na volta conversa com os comerciantes, traficantes, as prostitutas, as travestis?". Pensei que talvez fosse esse o caminho. E acabou dando certo, porque também peguei esse novo papel do homem que agora tem de cuidar das filhas, tem de assumir papéis domésticos. Nesse sentido é muito importante você criar uma narrativa para o seu personagem porque as pessoas acompanham como se fosse um grande folhetim, toda a trajetória, mesmo que não seja a gente de verdade ali.


 

Avulsos

Xico Sá: Um dos maiores prazeres do cronista é a conversa com as pessoas, que está muito ligada à fotinha do cronista no jornal. Mas agora nós somos cronistas avulsos. Hoje é mais difícil pegar o leitor —aquele leitor que não está habituado com você no jornal. Você não está mais conversando com aquele cara que está ali numa venda, numa padaria. É um exercício que depende muito da realidade. Por mais que você dê uma viajada, o leitor exige um link com os acontecimento de hoje, ele quer que você se situe dentro da polêmica da semana. Se você trabalha dentro de um veículo de notícias quentes, você quase tem essa obrigação. Nesse sentido, perdemos muito, porque eu juro que preferiria estar no canto do jornal, lá embaixo, mas com uma função bem definida: eu ia consolar uma alma penada ou fazer a pessoa rir um pouco.


Luís Henrique Pellanda: O enfraquecimento do jornal causa uma mudança de expectativa no leitor, porque o leitor de jornal parece que não existe mais ou é um pouco menor. Nos anos 1990, houve uma crise na crônica brasileira porque havia a questão da objetividade americana, e isso atrapalhava a ideia de um discurso subjetivo literário dentro do jornal. Isso parou a produção de novos cronistas nos grandes jornais. Depois, a internet devolve um espaço aos jovens cronistas. Um monte de gente começa a publicar na internet e tem um refluxo na imprensa.