Memória | Charles Bukowski 30/11/2020 - 15:33

Loser, mas nem tanto...

Nos 100 anos de Charles Bukowski, o escritor segue lembrado, editado e lido por diferentes gerações

Luiz Rebinski

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Em 2020 se comemora o centenário de nascimento de Bukowski. Foto: Divulgação

 

Charles Bukowski (1920-1994) continua sendo um fetiche para leitores de todo o mundo. Em 2020, ano que marca o centenário de nascimento do autor americano (nascido na Alemanha), ele continua lido, editado, amado e odiado. É daqueles raros autores que não levou sua obra para a tumba após a morte. Pelo contrário, mais de 25 anos depois de morrer de câncer, seu séquito de seguidores só aumenta. Algo que o escritor buscou a vida toda e só conseguiu no final dela, quando teve algum reconhecimento e dinheiro para viver de literatura.

Após os anos de ostracismo, quando ainda era um poeta publicado apenas em periódicos underground, uma fase de estabilidade e alguma ascensão, alguns anos antes de morrer, Bukowski hoje é um nome consagrado, uma grife literária como tantas outras. Não é um best-seller, mas tem venda constante e sua vasta obra não para de ser reeditada. No Brasil, sua produção fez caminho inverso, com a prosa sendo mais conhecida do que os livros de poesia. Bem diferente do que aconteceu nos Estados Unidos, onde ele era festejado como poeta. Nos últimos anos, no entanto, a poesia de Bukowski tem sido bastante publicada aqui, principalmente pela gaúcha L&PM, mas também por tradutores e editoras independentes. 

Então a discussão, como costumava ser há alguns anos, não é mais se Bukowski será lido, mas por que sua obra segue despertando interesse em diferentes gerações de leitores. O escritor parece ter vencido a prova do “distanciamento do tempo”, elemento tão caro para os críticos de literatura. Sua obra sobreviveu, mas ainda assim seus escritos não estão imunes ao escrutínio dos tempos atuais. Muitos leitores preferem ressaltar os possíveis “deslizes” morais do autor, como seu tão propalado machismo. E há muita gente que deixou de lê-lo por conta disso.

Ainda assim, uma leitura atualizada do que Bukowski produziu (em um período complemente diferente do que vivemos hoje) parece não abalar o frescor da prosa e da poesia do autor. E sua contribuição para uma escrita menos conservadora na forma segue relevante. O lado B do sonho americano, gênese da produção de Bukowski, também ainda faz sentido em um mundo cada vez mais corporativista, individualista e — por que não? — capitalista. A rebeldia de suas histórias não caducou. Tampouco constrange o mais cético ou “adulto” dos leitores. É como escutar Ramones: o espírito adolescente é sempre renovado, por mais que você já seja um homem maduro, caminhando pra última etapa da vida.

Mas é seu jeito de narrar que ainda faz a diferença. Por mais que isso pareça contraditório, pois sua escrita se rebela justamente contra “uma cultura da palavra, muito elegante e cuidadosa”, conforme Bukowski escreveu em texto de uma reedição de Pergunte ao Pó, do seu ídolo literário John Fante. É como se Bukowski tivesse “desformatado” a literatura, recomeçando do zero, optando pelo básico.         

É essa linguagem direta, herdada de Hemingway e Fante, que dá a liga para a literatura “sincera” e “verdadeira” que os leitores de Bukowski gostam de frisar quando falam sobre seus romances e poemas.

 

Romances
O escritor produziu muito ao longo da vida, principalmente depois de se “aposentar” (foi convidado a sair) dos Correios dos Estados Unidos. Por conta da temática underground, do alcoolismo e de um certo derrotismo encarnado, muitos de seus contos se parecem, apesar de serem muito divertidos e empolgantes cada um à sua maneira. O leitor mais otimista diria que isso dá certa unidade às inúmeras coletâneas de contos de Bukowski, podendo ser lidas como um romance não linear — o que não deixa de ser uma leitura válida, ainda que muitos desses contos tenham sido publicados de forma esparsa em pequenas revistas literárias, em períodos distintos, e só depois reunidos em livro. 

Apesar de ter escrito muitos contos, foram os romances que deram mais peso à sua produção. Levado a escrever histórias mais longas na esperança de que começasse a ser lido por um público maior (plenamente sabedor da impopularidade do gênero conto), Bukowski escreveu seis romances, que foram publicados entre 1971 e 1994, ano de sua morte. Parece pouco no bojo dos 45 livros que escreveu ao longo da carreira, mas ainda assim eles fizeram a diferença na sua bibliografia. 

O primeiro deles, Cartas na Rua (1971), é o preferido de muitos leitores e certamente um dos melhores trabalhos de Bukowski. Como na carreira do escritor quase tudo se confunde com sua vida privada, o livro se tornou emblemático não só porque é o primeiro romance dele, mas também porque surge imediatamente após o escritor largar o emprego nos Correios, o que ao mesmo tempo lhe deu mais tempo livre para escrever e o assunto de seu debute romanesco.

O método de escrita é praticamente o mesmo dos contos, com frases e capítulos curtos. O tema do livro (os Correios) já havia aparecido nas histórias curtas do escritor, mas desta vez a narrativa se conecta a várias situações que dão unidade ao livro, dando forma a uma espécie de saga malfada de Chinaski no mundo do trabalho. (Aliás, o título em português é muito mais poético que o original Post Office, o que é uma raridade no ingrato mundo da tradução literária.)

A escrita empregada no romance é tão “natural” que hoje muitos leitores podem não se dar conta de quão inovadora era para a época. Não há penduricalhos e é o tipo de texto em que tudo parece estar no seu devido lugar. Na biografia do autor, escrita pelo inglês Howard Sounes, Cartas na Rua é descrito como ponto de inflexão na obra de Bukowski. “Um estilo de prosa inovador, mas acessível que, em sua simplicidade, é admiravelmente semelhante à poesia.”

Factótum (1975), o segundo romance, meio que segue a mesma linha, com Chinaski errando pelo mundo do subemprego. Não tem o mesmo impacto de Cartas na Rua, mas ainda assim é um bom livro, que inclusive rendeu uma adaptação para o cinema (assim como vários outros livros do autor). Aliás, há vários filmes feitos a partir da obra de Bukowski, nenhum muito bom. Mas a marca mais relevante desses dois livros certamente é o retrato do mundo do trabalho em uma América que se acostumou a se vangloriar do “pleno emprego”. Cartas na Rua e Factótum mostram um outro lado dessa história.

Além disso, Bukowski criou um personagem marcante, que está entre os mais emblemáticos da literatura americana do século XX. Por mais que se possa argumentar que Henry Chinaski não é nada além do que Charles Bukowski transposto para o papel, o personagem tem DNA próprio. Os leitores pensam nele realmente como um personagem autônomo, não apenas como um duplo de seu criador. Um indício forte disso é o número de bares mundo afora — de Curitiba a Madri — chamados Chinaski, e não Bukowski.

A opção por fazer literatura autobiográfica também fez dele um escritor rotineiramente lembrado, já que a profícua confusão entre vida e obra é um tema que de tempos em tempos volta à tona.

 

Ando só   
Jack Kerouac já havia tirado a prosa americana do pedestal no final dos anos 1950 com On the Road, é verdade. Mas o ritmo alucinado de sua escrita certamente afugentou muitos leitores que não estavam preparados para a ousadia literária beatnik. Com Bukowski, as coisas ficaram mais “palatáveis”. A linguagem, como a de Kerouac, era a das ruas, mas com uma pegada quase jornalística, sem termos rebuscados e com frases muito, muito curtas. John Fante também escrevia assim, mas era um autor muito mais sério e melancólico, quase triste. Bukowski, apesar de também retratar uma vida de sofrimento no submundo de Los Angeles, era picaresco e as derrotas que descreve têm um ar de redenção e rebeldia contra a ordem dominante. 

Isso fez dele um escritor singular, que influenciou muitos leitores que depois se tornaram também escritores. Além do mais, o comportamento de Bukowski era totalmente sui generes. Apolítico, costumava zombar também da contracultura e dos hippies. O que pode parecer estranho hoje, pois ele mesmo se tornou um escritor contracultural, em vários aspectos. Um exemplo a ser seguido para aprendizes de outsiders.

I walk alone poderia ser seu mantra. Apesar de ser muito associado aos escritores beat, seus contemporâneos, ele nunca gostou de andar em grupo, não curtia drogas, não era fã de arte pop e passava longe do jazz, a música que inspirou a beat generation — gostava de música clássica, que aparece como pano de fundo em várias de suas histórias.

Em muitos sentidos, ele era realmente o que parecia ser: um tiozão que se vestia com roupas ultrapassadas, tinha um nariz de bêbado e carregava o DNA do homem americano de classe média baixa, com todos os seus preconceitos e contradições.

Mas o fato é que ele deu um jeito de transformar sua tosquice em literatura original. Era um sujeito durão, mas com uma sensibilidade à flor da pele, que lhe possibilitava escrever poemas que poderiam emocionar um ogro.

Essa escrita, que mistura autobiografia e uma saudável rebeldia contra o “escrever bem”, se vê em muitos escritores, de ontem e de hoje. Nem sempre com bons resultados, é verdade, mas em vários casos a influência parece ser benéfica, com muitos autores sabendo diluir bem seus próprios recursos com os mandamentos bukowskianos. Até mesmo autores de não ficção, como o jornalista americano Lester Bangs, incorporaram a prosa do autor e seu “jeitão” de narrar. Sem falar em Sean Penn, Mickey Rourke, Matt Dillon, bandas de rock e outros artistas influenciados por Bukowski. 

O que Bukowski não tem culpa nenhuma é de como seus leitores utilizam sua obra e singularidade em proveito próprio. Os imitadores existem, mas a culpa não é dele. Pelo contrário, é um de seus méritos. Afinal, que artista não ficaria lisonjeado de ser tão influente a ponto de seus leitores quererem reencarnar à sua imagem e semelhança? Há milhares de bandas que imitaram e ainda imitam os Beatles desavergonhadamente — ainda assim, as pessoas não costumam maldizer Paul McCartney por causa disso. A mesma coisa se aplica aos cervejeiros: só porque a maioria deles é chata, não vamos parar de beber cerveja, não é?

Na efeméride dos 100 anos de Charles Bukowski, ainda se lê sua obra com uma leve alegria transgressora. Um sentimento raro, que bem de vez em quando nos acomete e nos dá a sensação de que a vida pode ser um pouco menos cruel e — por que não? — mais divertida, apesar dos inevitáveis reveses. 

 

LUIZ REBINSKI é jornalista e autor do romance Um Pouco Mais ao Sul. Editou o Cândido desde sua criação, em 2011, até junho de 2019.