Fora da cidade e do campo 04/08/2014 - 15:10
Na literatura, o regionalismo é um termo que divide opiniões dos estudiosos, seja porque, em alguns casos, reduz a dimensão da obra ou também pelo fato de que um livro ambientado em uma região não urbana pode ser universal
Marcio Renato dos Santos

Durante a década de 1980, Paulo Seben planejava escrever um romance, que teria o título Canto do lobo mudo da Auxiliadora. O lobo, do título, era uma alusão direta ao próprio autor, mais especificamente, a um alter ego dele. Auxiliadora é o nome do bairro onde ele morava em Porto Alegre. “Eu tinha o hábito de escrever poemas e de caminhar pelas ruas do bairro, e de toda a cidade, sozinho, de madrugada. É claro que eu falava disso”, conta Seben.
Um dia, ele perguntou a um professor do curso de Letras sobre a viabilidade da narrativa e a resposta não foi a mais animadora: “O professor disse que o livro não tinha interesse algum porque em Londres ou Paris ninguém tinha a menor ideia de que existia um bairro chamado Auxiliadora.” Seben reagiu: “Mas e Penny Lane, que é uma ruazinha que ninguém sabe onde fica?” — em referência a uma rua de Liverpool que empresta o nome a uma canção dos Beatles.
O episódio envolvendo Seben, atualmente professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pode ser um ponto de partida para pensar o regionalismo literário. Há quem afirme que, literariamente, a discussão é pauta superada. Mas existem outras visões — leia a entrevista com João Claudio Arendt na página 30.

Para tornar a teorização mais compreensível, Soares cita como exemplo a obra de Simões Lopes Neto (1865-1916). “Ele sempre assumiu a tarefa de divulgar a cultura do Rio Grande do Sul. Bastaria lembrar o subtítulo dos Contos gauchescos (1912) que aparece na 1ª edição: ‘folclore regional’. Simões Lopes Neto recolheu cancioneiros e recontou lendas típicas, com uma linguagem bastante peculiar e, literariamente, bem construída, assegurando, assim, a circunscrição regional de sua obra”, afirma o professor da UERJ.
O uso da expressão regionalismo, de fato, provoca discussões. A coordenadora da pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Marcia Marques de Morais, não gosta do termo. “Um bom texto literário não se fixa em uma determinada região. Ao contrário. O bom autor transcende uma região, ele constrói, elaborando conscientemente, um sabor regional”, diz Marcia, citando Guimarães Rosa como um autor que recriou um universo interiorano e, na análise dela e de outros professores, não pode ser classificado como escritor regionalista.
Alguns estudiosos têm urticária quando a expressão regionalismo literário é utilizada com a finalidade de diminuir uma obra. “É preciso ressaltar que, ao se falar em regionalismo, não se está, aqui, contrapondo de forma simplista o que, por ser regional, seria limitado e menor, enquanto o que seria universal, seria mais amplo”, observa a professora de Literatura Brasileira no Curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) Rita Felix Fortes. Ela chama a atenção para o legado dos autores brasileiros que produziram romance na década de 1930: “O romance de 30 [leia mais no texto de Luís Bueno na página 20] tem um forte traço regionalista, desde que este não seja entendido como simplista e redutor, mas que tem em diferentes regiões brasileiras seus mais relevantes e ora trágicos, ora encantadores aspectos.”
Há uma tendência, talvez até uma “norma”, comenta o professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Paulo Bungart Neto, de se considerar regionalistas apenas elementos rurais, sertanejos e interioranos da produção literária brasileira. “Poderíamos dizer que um hipotético poeta paulistano, escrevendo sobre temas universais, como amor, ciúme e guerra, em um apartamento no centro de São Paulo, dificilmente poderia ser considerado regionalista, embora seja possível associar, por exemplo, sua obra ao ritmo e ao dia-a-dia da cidade, o que também não faria dele um escritor regionalista”, pondera Bungart Neto.
“Não se imagina como cenário para a ficção de Machado de Assis outra cidade que não seja o Rio de Janeiro ou para a obra de Dalton Trevisan uma metrópole que não seja Curitiba, mas não se convenciona atribuir a esses autores a função de ‘cronistas’ de sua região”, completa o professor da UFGD, questionando essa “quase verdade” que, de acordo com o senso comum, define como regionais obras ambientadas no sertão e, em tese, sugere que textos urbanos são universais.
O professor de Literatura Comparada da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Paulo Nolasco acredita que o fato de uns poucos autores, em geral

O que, então, em hipótese nenhuma, é regionalismo? “Uma narrativa que se passa em Nova York”, diz, em tom de brincadeira, o professor de literatura Marcelo Frizon. No entendimento de Paulo Seben, da UFRGS, o que não é regional — de jeito nenhum — é a literatura. “Literatura regionalista é, no Brasil, tudo aquilo que não fala dos países estrangeiros ou do mundo urbano das cidades-pólo da economia e da política brasileira, ou seja, Rio de Janeiro e São Paulo, com uma concessão para o interior dos estados por elas capitaneados e para a origem de boa parte dos autores da literatura modernista, isto é, ‘carioco-paulista’. E regionalismo na literatura é isso com autoria de paulistas, cariocas e mineiros”, ironiza Seben.