FLIBI | O Brasil da desesperança 28/02/2023 - 14:17

Dois romancistas discutem como a literatura e a filosofia pensam o abismo intelectual do país, durante a 6ª Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná

Com Lucas Lazzaretti e Tatiana Salem Levy, mediação de Christian Schwartz.

 

Christian Schwartz: Seus livros mais recentes fazem um comentário ficcional sobre o tempo presente brasileiro. O que motiva um, ou uma, ficcionista a tratar de um tempo tão próximo? E quais são os riscos de se fazer isso?

Tatiana Salem Levy: Escrevo sempre a partir de questões muito próximas a mim — mais do que um tempo próximo —, são questões que me tocam por algum motivo. São questões que aconteceram comigo, histórias que ouvi falar ou algum lugar que me tocou, como no caso do livro Dois Rios [Record, 2011], um romance que escrevi a partir de dois lugares em que estive: a ilha de Córsega, na França, e a Ilha Grande, que fica no Rio de Janeiro. Escrever para mim é sempre me aproximar muito de alguma coisa da qual preciso me aproximar. E esse romance mais recente, o Vista Chinesa [Todavia, 2021], parte de um acontecimento real, que é o estupro de uma das minhas melhores amigas, ocorrido em 2014. Nesse sentido, o tempo aparece porque foi um acontecimento que me tocou no presente. Foi um acontecimento atroz no Rio de Janeiro, em um cenário realmente muito bonito, no meio da floresta, a caminho do Cristo Redentor, no ano da Copa do Mundo e num momento em que o Rio se preparava para as Olimpíadas. Moro em Portugal há 10 anos e, nos primeiros anos, sempre me diziam que saí do país no melhor momento, pois o futuro do Brasil estava acontecendo naquele instante, ouvia isso com muita frequência. Então, de repente, acontece essa violência justamente em um lugar simbólico, nesse cartão-postal, não tinha como a cidade não entrar no romance. Ou seja, a cidade, assim como o tempo presente, tudo isso tinha que aparecer na história.

Lucas Lazzaretti: Por se tratar de ficção, fazer um retrato sociológico no meu livro não cairia bem: não sou retrato de nada, e também não sou Jung para fazer arquétipos de personagens. A escolha de alguém que escreve é sempre contingente e no meu caso foi absolutamente contingente, pois eu tinha passado dois anos fora do Brasil, escrevendo uma tese de 800 páginas sobre um filósofo dinamarquês. Quando voltei, finalizei o O Escritor Morre à Beira do Rio [7Letras, 2021], de 360 páginas, que é um romance sem marcação temporal e geográfica exatas. Depois de ter morado nos Estados Unidos do Donald Trump, encontrei, de repente, o Brasil da besta-fera, vi o que estava acontecendo com meus amigos, com pessoas da minha geração. Então parei o que estava escrevendo e iniciei esse livro mais recente, o Saturno Translada [7Letras, 2022], a partir de duas propostas: escrever algo que fosse contemporâneo, e não atemporal, e refletir sobre as condições existenciais daqueles personagens. O dado contemporâneo aparecer tangencialmente é mais uma felicidade, ou infelicidade, que pertence a mesma contingência que já comentei. O problema de escrever sobre algo que está muito temporalmente perto é o cadafalso que você vai ter que dar, é como um campo minado que a qualquer momento você pode deslizar para fazer análise conjectural e temporal. Fugir disso me pareceu o maior desafio. Ficar com os personagens para que se eles fossem reverberar algo do tempo deles, isso ia ser fruto daquele fenômeno, em nenhum momento ia dar uma de cientista político, sociólogo, antropólogo, o que quer que seja, é ficção. E tal qual na vida de todos nós, há menos determinações fixas, e mais móveis, do que imaginamos.

 

Christian Schwartz: Tatiana, em uma nota no livro Vista Chinesa você dá mais detalhes sobre os bastidores de criação e decantação da história. Você trabalhou bastante com anotações sobre o relato pessoal de sua amiga. Como funciona esse jogo entre o fato concreto que gerou a ficção e o produto final disponível para os leitores?

Tatiana Salem Levy: Quis escrever esse livro poucos meses depois do estupro e conversei com a minha amiga Joana, que no livro se chama Julia — por se tratar de um romance, muitas coisas são inventadas, muitas coisas não aconteceram de verdade com minha amiga. Para mim, na verdade, o que define se é um romance ou não, não é se aconteceu ou não aconteceu na vida real. Literatura, para mim, é o que você faz com a linguagem, como você conta a história, seja ela um acontecimento real ou não. Logo depois de ter a ideia do livro, engravidei do meu primeiro filho e achei que a história era um pouco pesada demais para escrever durante a gestação. Fiquei com a ideia na cabeça, mas não encarei o livro. Três anos se passaram, e engravidei de novo, dessa vez de uma menina. Mas nessa segunda gravidez aconteceu o contrário, senti uma necessidade grande de escrever esse livro. Por ser o segundo filho, as coisas fluem normalmente, não há tanta preocupação. Mas claro que havia o fato de ser uma menina. O diálogo e a preocupação eram diferentes, uma certa preocupação de mulher para mulher, das mulheres que vieram antes de mim, dessa dor e violência que não estava só com a minha amiga. Parto de uma história individual, mas na verdade é uma história coletiva. Esse livro me ensinou que a literatura é coletiva, senti que estava escrevendo com a Joana, mas também junto com esse monte de mulheres que já foram estupradas e entraram em contato comigo depois da publicação do Vista Chinesa.

 

Christian Schwartz: Lucas, em um artigo seu sobre o Paulo Scott você falou sobre a crise de identidade dos personagens como geradora de um enredo. Você de alguma forma trabalhou a crise de identidade de personagem para gerar enredo nos seus livros, principalmente no Saturno Translada?

Lucas Lazzaretti: Nesse artigo, escrevi sobre uma estrutura de narrativa que se repete em todos os romances, exceto o Ithaca Road, do Paulo Scott, e isso me pareceu fantástico. Crise de identidade pressupõe a noção de identidade, que talvez os cinco personagens do livro não tenham. Quando acontece o que acontece, em termos macrocósmicos, já que se trata de Saturno, o que aparece para os personagens é que eles não têm identidade, a crise parte de uma ausência de identidade. E na obra tento explorar os efeitos disso. Quando se fala sobre “lugar de fala”, pressupõe-se uma ideia totalmente moderna, como se tivesse fixado numa constituição dos seres humanos. Tomamos isso como verdade, mas não é. Na experiência mesmo, a coisa é quântica, a coisa é caótica. E no livro é isso o que eles estão sentindo. A necessidade de impor identidades é uma captura do neoliberalismo: se coloca uma identidade, uma marca, que rapidamente vai ser cooptada por todo o capital para transformar você em um objeto de consumo ou de produção. Tenho influências pós-modernas e falo sobre coisas difíceis, penso a narrativa não como um modo de escrever uma historinha, mas penso a estrutura do texto a fim de dizer alguma coisa a mais para os leitores.

 

Christian Schwartz: Há uma certa impossibilidade de fixar uma realidade na ficção, hoje em dia já não existe mais a ideia de que o artista vai conseguir espelhar a realidade, aquela coisa do realismo clássico ou do naturalismo. Vocês pensam, de certa forma, nessa acessibilidade de criar uma espécie de “chão real”, onde o leitor vai ter esse senso de realidade? Vocês têm problema em trabalhar com o onírico?

Tatiana Salem Levy: Há uma certa injustiça com os realistas. Eles não pensavam que iam espelhar o mundo, como a gente acha que eles pensavam. O realismo foi muito revolucionário na literatura, trazendo o cotidiano e o homem comum. Fazer literatura é pensar a linguagem no intuito de promover uma experiência, de criar um mundo próprio da linguagem. Diferentemente do senso de que o realismo espelha o mundo real, eu penso o realismo no sentido de criar uma literatura que possa dar uma sensação de realidade. A minha literatura eu escrevo de uma forma muito subjetiva, trabalho com as contradições do inconsciente. O Vista Chinesa é o meu livro mais cru, mais “realista”, digamos assim, mas também abre espaço para o onírico. Aliás, o onírico também faz parte da realidade.

Lucas Lazzaretti: O mero fato de que tenhamos que discutir o realismo e o onírico como se fossem coisas distintas é o fato de que o realismo venceu. Ter que chamar de “realismo mágico” para se fazer algum tipo de firula imaginativa, é porque a ordem do dia hegemônica é realista. Realismo significa mimesis, significa representação. Aulinha de filosofia: nós, como modernos, pressupomos que somos sujeitos que produzem representações de uma realidade que está sempre além de nós, atribuindo sentido a essa realidade, através de nossas conceituações. Isso se chama representação. O que eu faço com isso na literatura seria a mimesis, seria a imitação. E a responsabilidade de um artista seria a de ser coerente com aquela representação. O que me interessa na literatura e com os pós-modernos é romper com isso.