FLIBI | Livros e séries 30/01/2023 - 16:29

com Jim Anotsu e Morgana Kretzmann

mediação de Ana Johann

 

Dois escritores e roteiristas debatem os pontos de contato e divergência entre literatura e cinema durante uma mesa realizada na 6ª Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná

 

Ana Johann: Queria que vocês comentassem sobre os seus trabalhos mais recentes na área de roteiro e quais as semelhanças e as diferenças que vocês veem num processo de uma escrita literária e de uma escrita para um canal de streaming, que é mais coletiva.

Jim Anotsu: Escrevo várias coisas diferentes, filmes, comerciais de TV. Faço muito trabalho publicitário e isso é legal, porque é diferente da literatura, é algo cheio de regras. Se é sobre a Barbie, por exemplo, você não pode usar determinadas palavras. Também tenho trabalhos em filmes, este ano [2022] foi legal. Um deles chegou ao cinema, o Acampamento Intergalático, e ficou entre as dez maiores bilheterias no Brasil. Alice no Mundo da Internet chegou no topo da Netflix, acho que bateu o top 2. E o Acampamento Intergalático também estreou na Netflix na semana passada e está ali no top 2. Estou escrevendo agora um filme de zumbis, meio que uma comédia de zumbis — imagina Gossip Girl com zumbis no Brasil, é isso. E uma versão nova do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Tem vários trabalhos rodando, a diferença é que gosto mais de escrever livros, porque livro é um negócio só meu, faço sozinho, tenho poder. Já o roteiro é um manual de instruções que você está escrevendo para o diretor, o continuísta, todo mundo. E todo mundo mete a mão e dá pitaco. É muito colaborativo para quem vem da literatura. A gente fica acostumado a estar trancado num quartinho, então é meio difícil

Morgana Kretzmann: Acabei de escrever uma série para a Disney, se chama Tarã. É uma série que foi encomendada pela Disney com uma protagonista já escolhida, que é a Xuxa. Apesar de ser a Xuxa, não é uma série infantil, é para todas as idades. Trata de questões ambientais, de crimes ambientais, assuntos seríssimos. Sou formada em Gestão Ambiental, é uma coisa que também me levou a ser convidada para trabalhar nessa série. Ela se passa na Amazônia, no Acre, e também trata de queimadas, desmatamento e povos tradicionais. Quando comecei a escrever essa série, já tinha lançado Ao Pó (2020) e estava começando a escrever um romance novo que também trata de questões ambientais, de crimes ambientais. Tive que deixar o romance de lado para poder escrever a série — mentalmente, ainda não aprendi a fazer as duas coisas.

Num processo de escrever série para streaming, você dedica 100% do seu tempo e da sua mente para aquilo. Foram nove meses de escrita de bíblia, pesquisa e escrita dos roteiros. Depois renovei o meu contrato para fazer coisas que precisavam ser feitas antes de ser filmado, e durante a filmagem também tive que arrumar algumas cenas, por questões de produção. Nesse meio tempo, a única coisa que consegui fazer, em questões literárias, foram oficinas. Estou sempre fazendo oficinas, adoro fazer oficinas, literárias e de roteiro. A gente está sempre aprendendo e nunca sabe o suficiente. E nas oficinas literárias acabo sempre trabalhando, de uma maneira ou outra, naquilo que estou produzindo no momento. Tem uma coisa muito legal que é a troca entre colegas e com os professores. Acabei de fazer a oficina da Cíntia Moscovich, que é do Rio Grande do Sul. Uma oficina longa, de quase quatro meses, e teve uma troca muito legal entre os colegas, da produção deles e da própria Cíntia.

Quando você está trabalhando num roteiro, não está sozinha. Você trabalha com uma produtora que te direciona, para onde a sua história pode ir. Você tem o canal, que no meu caso é a Disney, e existem regras dentro da Disney. Fui aprendendo fazendo. E escrever um romance é a liberdade total. Você decide para onde vai a sua narrativa, quem vai ser a sua protagonista. Talvez o principal seja isso, a liberdade, mas tem obviamente toda uma questão de linguagem que é bem importante também.

 

Morgana Kretzmann
Morgana Kretzmann

 

Ana Johann: A literatura tem um outro mergulho, diferente do processo de série, não? Costumo dizer que, quando se trabalha num processo de série, você vende a sua cabeça para aquele projeto. Independentemente se são poucas horas de trabalho por dia ou se não há trabalho em um determinado dia. Você está sempre pensando em soluções e nas demandas. E sobre essa questão dos limites, cada canal vai ter as suas imposições. Vocês acham que esses limites em algum momento levaram vocês para outras imagens, outras elaborações?

Jim Anotsu: Depende. Uma coisa que o escritor tem muito é isso de ser mimado. E quando você está lidando com limites, prazos e coisas do tipo, aprende a exercitar a sua imaginação e fazer caber. Na vida a gente não faz só o que gosta, e sempre enxerguei tudo isso que faço como trabalho. E como um trabalho, ele é algo a ser executado. Se você começa a sentimentalizar demais, cria uma aura que só atrapalha. Às vezes você faz o que precisa ser feito, e assim move adiante. Quando estou escrevendo algo meu, posso demorar, posso gastar páginas para fazer aquilo. Mas se estou trabalhando num negócio que vai para a Netflix, que vai para o cinema e que tem uma produtora investindo, a gente precisa aprender a ser maleável. Uma coisa que ouvia muito é: “Se você consegue se tornar bom fazendo algo que odeia, vai se tornar grande”. É uma oportunidade de aprendizado. Uma coisa que odeio muito quando trabalho com roteiro é fazer escaleta. Mas quanto mais trabalho com escaleta, mais domino ela, e isso melhora a minha capacidade como roteirista, como autor. É até complicado, porque divido muito o meu cérebro entre o “eu autor” e o “eu roteirista”. O meu “eu roteirista” é quase um peão de fábrica. É um trabalho imaginativo, mas sei que existem regras, horário, formato, uma linguagem específica. O roteiro não é para ser um trabalho literário, que você vai ler e vai estar na biblioteca. É um manual de instruções que vai ser riscado, marcado, lido, que o ator vai criar em cima dele. Quando escrevo literatura sou apenas eu, sem opinião de ninguém.

 

Ana Johann: Tem um aluno meu que disse que vai fazer uma camiseta com a estampa “Eu amo escaleta". Para mim, escrever argumento mata a imaginação, porque fico numa coisa muito literária e a escaleta, me dá uma construção de cena.

Morgana Kretzmann: Acho a escaleta essencial, principalmente quando você está trabalhando com uma das maiores empresas de entretenimento do mundo, que é a Disney. Você está escrevendo uma série latino-americana — não é uma série brasileira, é uma série para toda a América Latina, a Xuxa é um ícone na América Latina. Você começa a entender a importância de toda ferramenta e de todas as pessoas que vão participar de um trabalho tão grande como uma série para a Disney. Foi uma equipe de roteiristas e de produção só de mulheres, e a gente aprendeu muito. Desde escrever o argumento, passando pela criação das personagens e depois as escaletas. Tudo a gente fazia, ia para eles e depois voltava. Uso escaletas na minha escrita literária, para escrita longa. Depois que sei a história que quero contar, faço uma escaleta. Mesmo num roteiro, não quer dizer que vá seguir toda a escaleta e colocar todas aquelas cenas. Na minha escrita literária também não quer dizer que eu vá seguir tudo aquilo. Mas te dá um norte, uma segurança de olhar para o lado e ter aquelas oito, dez páginas, de entender onde você está escrevendo. Claro, a escaleta também pode mudar no decorrer da criação, e provavelmente vá mudar. No caso desse último livro que terminei, ele mudou muita coisa na escaleta. Mas aquilo serviu para que eu não ficasse completamente perdida no que estava escrevendo. Na história, na questão de flashbacks. Na oficina do Assis Brasil você aprende a fazer escaleta de maneira literária, para escrever um romance. São diferentes. No meu caso ajuda muito, mas só faço a escaleta depois que já criei o grande argumento.

Jim Anotsu: Varia de cada trabalho que vou fazer. Em alguns preciso de mais leitura, em outros vou com a onda. George R. R. Martin dizia que existem dois tipos de escritores, os jardineiros e os arquitetos. O arquiteto bola todos os detalhes e faz uma planta. O jardineiro vê a plantinha, poda e vai guiando o jardim. O meu cérebro de roteirista tenta ser mais arquiteto, mas o meu cérebro de romancista é muito jardineiro. Ele vai crescendo e vou catando coisas. Agora estou escrevendo um romance em que eu deveria muito ser um arquiteto, mas estou, como Zeca Pagodinho diz, deixando a vida me levar.

 

Jim Anotsu
Jim Anotsu

 

Ana Johann: Por mais que a escrita tenha seu processo individual, numa sala de roteiro você vai ter um processo de uma equipe, e isso já muda totalmente. No Brasil, tudo ainda é muito recente. Já participei de várias salas e percebo que cada uma delas é um pouco diferente. Depende muito do canal, de como ele participa. Tem canal que inclusive aprova os roteiristas, tem outros que não. E tem alguns que deixam um pouquinho mais solto, mas a maioria acompanha todo o processo. É diferente de um livro, em que você troca com o editor no final. Numa sala de roteiro você vai em etapas. O canal, os executivos, os produtores vão acompanhando desde o início essa elaboração. Queria que vocês contassem sobre esses últimos processos. Como foram, quantas pessoas participaram, como funcionaram as etapas.

Morgana Kretzmann: Essa série Tarã é criação de uma roteirista e escritora, a Anna Lee, a showrunner. Eu, ela e a Bárbara Velloso, que é uma outra roteirista do Rio de Janeiro, trabalhamos em toda a bíblia. Quando terminamos a bíblia e foi aprovada pela Disney, uma quarta roteirista foi contratada, a Renata Tupinambá, que é uma roteirista indígena, poeta maravilhosa, que também é do Rio de Janeiro. Ela se juntou à gente para os últimos três ou quatro meses da escrita dos roteiros. Fiz um curso com o Marcelo Montenegro, que escreveu Manhãs de Setembro. Ele estava falando que existe o roteirista que é o criador, que vem com a ideia, e tem o roteirista que é aquele da graxa, que escreve roteiro. Eu não sabia o que falar na época, porque pensava: “Escrevo literatura, acho que me identifico com a criação”. Mas trabalhando nesse processo de Tarã, percebi que sou da graxa. Se pudesse só escreveria roteiro e não trabalharia na criação, porque sou feliz escrevendo roteiro. Me divirto, converso comigo mesma, falo com os personagens, dou risada, escrevo de pé. Tenho o meu processo, é uma diversão para mim escrever roteiro. Já o processo de criação é coletivo mesmo. Você não está escrevendo a sua história. Você está escrevendo a história de um showrunner que já tem aquilo na cabeça, mas que precisa que todo mundo colabore na criação de personagens, trazer conflito pra história, trazer ritmo, aquela coisa toda. Aquilo é muito difícil, extremamente difícil. Tanto que, quando terminou, achei que o meu cérebro tinha entrado em curto. Não conseguia escrever um post do Instagram porque não conseguia raciocinar, de tão puxado que foi. Já escrever roteiro é maravilhoso.

Jim Anotsu: Também acho. Escrever roteiro é bem tranquilo, gosto de escrever diálogos, gosto de criar personagens. Toda essa parte burocrática que vem de argumento, apresentação, é realmente burocracia. É exaustivo, exige muita energia, e às vezes tem muito de marketing também. Você criar, por exemplo, um argumento, mas que tenha uma linguagem que vai passar algo. Uma das coisas legais do filme em que estou trabalhando agora é que crio tudo. Eu e o diretor, Fabrício Bittar, juntos. A gente tem dois assistentes, a Jéssica e o Lucas, e é diferente quando você tem outras pessoas para jogar pingue-pongue com você. Jogo uma ideia, a ideia volta. “Essa está boa, essa está ruim.” É divertido com um clima desse. Esse filme nasceu de um conceito meu e do Fabrício, vem do meu amor por coisas como Gossip Girl e As Patricinhas de Beverly Hills. Esse tipo de filme dos anos 90, além filmes de zumbi — eu realmente gosto muito de filmes de zumbi, principalmente filmes de zumbi com humor, como Shaun of the Dead. Tem sido um um trabalho interessante,

Estou na quarta, quinta, vigésima versão da escaleta, já perdi o número. Mas finalmente estou começando a escrever o roteiro. Finalmente sinto que estou fazendo o que quero fazer, porque antes é só um preâmbulo, um preâmbulo e burocracia. Escrever é a parte divertida, eu rio, imito as vozes das minhas personagens. E as personagens são inspiradas em amigas minhas, todas elas têm nomes de amigas de quando eu trabalhava numa locadora. Sabe quando o Quentin Tarantino trabalhou numa locadora e ficava assistindo aos filmes? Era eu. Fui trabalhar numa locadora para poder assistir a filmes, minha educação de cinema vem daquele período. Fui juntando todas essas pecinhas para escrever o que estou fazendo agora. Junto com o fato de ter dois assistentes legais, o diretor e a produtora apoiando, o trabalho está fluindo muito fácil. Pela primeira vez sinto que a gente está fazendo algo que — para o bem ou para o mal, espero que para o bem — é exatamente o que a gente quer fazer. Para mim, que me considero primeiro um romancista e depois um roteirista, é um desafio ter que trabalhar com outras pessoas, conversar, dialogar, lidar com ideias. Sou diagnosticado oficialmente autista e TDAH, lidar com pessoas não é algo fácil para mim. Então escrever um roteiro com mais gente tem sido uma experiência diferente.