FLIBI | Dramaturgia hoje 30/11/2022 - 11:18

Em uma mesa realizada durante a 6ª Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná (Flibi), dois dramaturgos de gerações diferentes debatem os pontos de contato entre a linguagem teatral e a literária — e como o teatro se coloca como potência pensante das contradições humanas em meio a outras produções artísticas. Com Lígia Souza e Marcio Abreu, e mediação de Luciana Romagnolli.

 

Luciana Romagnolli: De que maneira o contexto brasileiro atual impacta a relação de vocês com a língua?

 

Lígia Souza: Quando cheguei na USP, tinha algumas questões como “Você faz teatro de linguagem ou teatro político?”. Achava essa observação curiosa, como pensar esses dois pontos como opostos. Para falar do nosso movimento hoje, não dá para separar uma coisa da outra, é impossível pensar um teatro de linguagem sem pensar um teatro político junto. E acho que isso vem de um movimento decolonial. Como é que a gente pensa a nossa linguagem, a dramaturgia, para além do que se estabeleceu? A minha formação como dramaturga passou por uma formação muito europeia, de figuras que vinham da Inglaterra, Shakespeare, aprender a escrever diálogo, aprender o arco do personagem. Passei muito por isso e falhei lindamente nesses lugares de formação. A gente foi se entendendo e resgatando uma força de produção que sempre existiu, mas que agora está cada vez mais potente. Por exemplo, a leitura que a Leda Maria Martins faz sobre oralitura e como a gente vai pensar o trabalho da congada dentro dessa noção do acontecimento cênico, do teatro, do pensamento sobre essa palavra que é a oralidade e que é litura, que é rasura — o que estamos rasurando dessa narrativa que nos foi imposta, o que estamos resgatando e quais os imaginários, as narrativas que queremos retomar, reescrever ou escancarar na dramaturgia e no teatro hoje.

Tive uma necessidade muito grande de entender quais eram as mulheres que vieram antes de mim na história da dramaturgia brasileira e me deparei também com uma história da dramaturgia brasileira com mulheres brancas, com discurso muito classe média. Comecei a me perguntar então onde é que estão as outras mulheres para além dessa história da dramaturgia. Existe uma história que a gente vê nos livros, onde estão as outras? Por exemplo, a Carolina Maria de Jesus escreveu dramaturgia, e ainda não temos acesso. Como é que começamos a entender esses outros espaços e a nos colocarmos enquanto potência para além dos formatos de formação? Também sou professora e fico pensando como é que a gente pensa uma outra maneira de formar, não nesse sentido de enquadrar, mas de propor a experiência da dramaturgia nesses espaços formativos. Para mim está sempre nesse espaço de pensar não uma substituição, mas outras possibilidades de fruição da dramaturgia a partir de uma construção principalmente oral. É muito difícil falarmos sobre um dramaturgo de gabinete, um termo que a gente escutava muito — “Você é dramaturgo de gabinete ou de sala de ensaio?” —, e ultimamente tenho ido muito para a sala de ensaio e em lugares que a gente tem que dar conta de narrativas que não nos são próprias, mas de aguçar a escuta e perceber como articular essas vozes plurais, vozes que por tanto tempo foram silenciadas, e como dramaturgo dar conta desse universo que agora está explodindo, pedindo espaço.

Acabei de escrever uma dramaturgia, e tenho contado isso porque estou feliz demais com a experiência, que são sete mulheres que saíram do sistema prisional em São Paulo convidadas por uma companhia da periferia da Zona Norte. As sete vão estar em cena contando suas experiências no sistema penitenciário mas, para além disso, pensando possibilidades de futuro. A gente se atravessa para dar conta desses materiais, vai de um lugar de responsabilidade, um lugar também de escuta apurada com narrativas e universos a que antes não tínhamos acesso, e que não tinham espaço. No ano passado fiz um trabalho com a Camila Bauer, em Porto Alegre, que era uma série de mulheres acima de 65 anos, pensando o etarismo durante a pandemia, como é que essas mulheres estavam dentro de casa. Para mim, a dramaturgia tem a ver, hoje, com esses espaços de pensar outros imaginários, outras narrativas que foram silenciadas, mas que sempre estiveram acontecendo, e como eu, como mulher branca e cis, reconheço o meu espaço e vou, como dramaturga, ajudando a costurar essa teia que é diversa, do coletivo, que é do teatro. Nós nunca trabalhamos sozinhos, estamos sempre lidando com essa pluralidade e com essa troca, o tempo todo.

 

flibi 2022
Dramaturga Lígia Souza, convidada da Flibi 2022. Foto: Murilo RIbas

 

Marcio Abreu: É sempre forte para mim vir a Curitiba. Nunca venho por um motivo banal, é sempre um momento. Vim à Biblioteca Pública alguns meses atrás e já entrei achando que estava respirando um outro ar, mesmo ainda sob, digamos, a ditadura — que vivíamos e ainda estamos vivendo desse governo fascista, assassino, e com alto poder destrutivo — através das linguagens. É importante que a gente não esqueça disso. Desde 2013, são sucessivos golpes de linguagem que todos nós estamos sendo submetidos, de diversas formas. Pegando a reflexão que a Lígia começou, que causou espanto que na academia perguntassem “O que é um teatro?”, “Você faz teatro político ou teatro de linguagem?”. Ora, a política só tem uma plataforma, a linguagem. Não há outra. Assuntos políticos não são política. Temas não são exatamente política. O que é uma arte política senão tentativas de ocupar as linguagens para que elas movam princípios, utopias, sonhos como ação no presente? Não sonhos como dimensões inalcançáveis, ou como pesadelo, que é o que a gente ainda está vivendo e que estamos na beirinha de começar a sair. Tenho tido a política, a ética, de não ocupar banalmente os espaços que me são oferecidos, de ter uma responsabilidade de fazer vibrar alguma coisa, pelo menos para mim, e que essa vibração possa expandir para além de mim. Nesse sentido, a minha relação com a palavra hoje tem sido, a partir de uma vivência no meu próprio corpo, gerar respostas.

De alguma maneira eu formulei isso em palavras numa frase que está em uma das minhas peças mais recentes, que chama Sem Palavras. É uma peça repleta de palavras, mas também de outros campos de afirmação e de materialização da dramaturgia — há palavras em tudo, mas há campos em que a enunciação não é onde a palavra se manifesta. A fala enunciada. A frase é “Nossa língua mãe foi tomada de assalto e fala agora a fala dos algozes, dos embrutecidos e daqueles que se orgulham em banalizar a morte e também a vida”. Nessa frase tem uma tentativa de conscientização de algo muito duro de se dar conta que é a nossa língua, que é um território. Mesmo a nossa, que é uma língua entendida muitas vezes como lugar de afirmação de certas hegemonias, mesmo sendo uma língua formada por muitas raízes. Mas chamamos a nossa língua de português. Tem uma hegemonia afirmada na nomeação, pelo menos. Tem traços radicalmente coloniais na nossa língua, mas é a nossa língua-mãe. E ela foi tomada de assalto. Está sendo ocupada, já há muito tempo, por sentidos de exclusão, morte, violência, usurpação, exploração, apagamento.

Eu queria ter a chance de continuar ocupando o território da arte, que é um modo de vida para mim, estava pensando em como continuo a fazer isso, porque não via mais maneiras, então fui escrever a peça Sem Palavras. Essa frase foi um motor para mim porque faz pensar quem está sem palavras, de fato. Tem outra frase do texto que é “Estar sem palavras é para aqueles que sempre tiveram acesso aos palcos, às ondas sonoras, aos púlpitos, às assembleias, aos microfones. A quem sempre foi impedida a fala e recusa a escuta, dessas pessoas borbulham palavras em profusão”. Toda a peça — esse texto que vai ser publicado no início de 2023 — tem a ver com a tentativa de censurar a língua, de entrar na língua, de reolhar. Criar de novo relações com o território da nossa própria língua, legitimamente, e requerendo também direitos. Os discursos públicos e a propagação de barbaridades, de violências que foram sendo banalizadas ao longo desses últimos anos, parece que tornam a língua algo que é suporte para isso e que nos exclui, portanto. E eu não estou a fim de ficar excluído da minha própria língua. Não estou aqui para isso.

A língua não é algo natural. Ela é um território, você tem que reivindicá-lo, reformulá-lo, questioná-lo e abrir buracos nele para que quem está fora entre ou se afirme. Pode parecer ambíguo demais, e talvez europeizado demais. Também tenho muita formação em referenciais europeus, não só isso porque a minha trajetória nas artes foi sempre atravessar por múltiplas referências, mas escapar das hegemonias não é algo que se faça sem criar uma casca grossa, sem adquirir uma certa consciência trágica. E às vezes demora mais, tem que trabalhar mais. Não podemos naturalizar a nossa língua. Tem uma dinâmica que depende também do que a gente aporta para o uso da palavra nesse campo, quando você trabalha ou age no mundo através de campos conscientes da linguagem — se você é escritor, se você é compositor, se você compõe imagens no espaço, se você elabora movimentos com seu corpo. Se você articula a linguagem em algum nível, profissionalmente ou não, você tem não só uma responsabilidade, mas um chamamento erótico para isso, e isso implica estar inteiramente disponibilizado e presente, com todos os riscos que isso tem e todas as alegrias que isso promove. Aberturas de consciência e também acesso a campos inconscientes.

 

Luciana Romagnolli: Tenho acompanhado algumas redes sociais de pessoas que estão entre os golpistas, tentando dizer que houve fraude nas eleições, e me impressionou muito, por exemplo, o uso da palavra democracia naquele contexto, de um modo que é absolutamente diverso do contexto que se usa e do que tradicionalmente se usou como democracia no Brasil. Outras palavras muito importantes, muitas talvez fundadoras da civilização, também estão nesse lugar de poderem articular, propagar sentidos muito díspares. Isso me faz pensar que a dimensão do sentido não dá conta — na dimensão do sentido as palavras escorregam, elas podem ser muito capturáveis. E aí tem um desafio imenso para quem escreve, para quem lida com a palavra, seja em qual suporte ou modalidade for. Você falou logo em seguida no campo da enunciação, não só as palavras, os sentidos que elas carregam, mas nesse ato de anunciar, essas ressonâncias, a musicalidade, o corpo da palavra. Entro com a dimensão do teatro, das artes da cena, das artes do corpo. Tem um saber fazer do teatro que pode contribuir para tentarmos fazer as palavras pararem de escorregar um pouco?

 

Lígia Souza: Pensando sobre o vocabulário que nos foi roubado, outra palavra é liberdade, usada a torto e a direito. “A defesa da liberdade”. Nesse meu último trabalho, as sete mulheres, que se autodenominam sobreviventes do cárcere, falam muito sobre a impossibilidade de se pensar a liberdade depois dessa experiência. Independentemente da saída da prisão, a liberdade não existe, você está demarcada para sempre. E fico pensando que toda palavra é ato. A noção do sentido nunca se dá a priori, a gente sempre tem que pensar a palavra em ato, em qual contexto, como pensamos, a partir de uma noção de uso da linguagem e de código estabelecido entre nós, que estamos aqui. Quando falo de novos imaginários e novas narrativas, penso nesse poder e nessa missão do teatro em colocar a palavra em ato nesse lugar de retomá-las, ressignificá-las. Não que a gente queira de alguma maneira dizer isso ou aquilo, mas mostrá-las de maneira exatamente diversa e plural, contestando inclusive a ideia de verdade, mentira, sentido e tudo isso. Tem essa noção da enunciação, que é do uso da linguagem do cotidiano, que o teatro captura e traz tentando observar esses espaços silenciados. Acho também que estamos num movimento sem volta. O bolsonarismo é uma reação a um movimento, estamos em movimento o tempo todo. Fico pensando como é que o teatro também instaura pela palavra, pela linguagem, novos atos de fala, novos lugares de problematização da hegemonia. Rasura da linguagem sempre, litura. Oralitura como rasura da linguagem.

 

Marcio Abreu: A Leda Maria Martins, para quem não sabe, é uma das maiores intelectuais e artistas que pensa performatividades, com relações muito singulares. É rainha do congado, a mãe dela também era, e ela tem justamente o desenvolvimento de um pensamento a partir dessa ancestralidade, das relações dela com isso. Ela formula tudo isso desde os anos 1980, é uma das maiores intelectuais brasileiras, sem dúvida, não só do teatro, mas de um modo geral. Um livro dela publicado recentemente pela Cobogó, que se chama Performances do Tempo EspiralarPoéticas do Corpo-Tela (2021), é indesviável de tudo que estamos falando hoje aqui e de muitas outras searas. A palavra democracia era usada num contexto, mas aí esse bando de zumbis pega a democracia e atribui outro sentido. Essa rigidez, ou esse campo mais estreito, envelheceu mal, andou mal nesse tempo linear. De alguma maneira, nós, como sociedade, como comunidade, como coletivo, fomos formulando dessa maneira estreita a ideia de produção de sentido atribuído ao uso da palavra de maneiras específicas que se tornaram hegemônicas ao longo do tempo, reflexo de uma dimensão mais larga da sociedade, que tem a ver com economia, História, colonização, com tudo. Não está desvinculado, fazemos parte disso. Lembrei de uma coisa oposta a isso que também é uma jogada com a palavra, uma torção. Comunidades historicamente subalternizadas, como a LGBTQIA+, que usam palavras que eram usadas como ofensas como autoafirmação. Bicha, viadinho. Eu sou bicha, então chamo as bichas de bichas. Isso não é uma ofensa, é uma troca de fluídos alegres, de saúde e de território compartilhado. Só que há uma diferença crucial entre um exemplo e outro porque aqui você torce o sentido gerando conexões e não criando muros, e evidentemente não se baseando em nada para torcer a palavra. Nada nasce do nada. Essa formulação é violenta também porque recusa qualquer parâmetro, aí entramos nessa discussão sobre pós-verdade. Se eu enuncio que te matar, o direito de te matar ou de te excluir de qualquer possibilidade na sociedade é o meu direito democrático, isso está fora de qualquer formulação que a gente possa fazer. Porque, por mais que a gente questione as linguagens, os lugares de convivência na sociedade, a gente faz isso dentro de sistemas, minimamente. Posso fazer escapes, fugas, mas tenho alguns parâmetros compartilháveis, mesmo que eles sejam frágeis. A democracia é um conceito também questionado ao longo da História, não é essa pedra, esse monolito. É um conceito escorregadio, complexo, cheio de dobras, e também usamos e evocamos a democracia irresponsavelmente e superficialmente muitas vezes.

 

Marcio Abreu
Dramaturgo Marcio Abreu, convidado da Flibi 2022. Foto: Murilo RIbas

 

Luciana Romagnolli: Talvez a diferença esteja no campo em que uma torção da palavra está buscando ampliar os corpos que podem conviver, no sentido de que as diferenças possam coexistir. E uma outra atuação da palavra reafirma um poder de exclusão. Acaba que linguagem e política ficam absolutamente impossíveis de discernir.

 

Marcio Abreu: E a ideia de exclusão não pode ser parâmetro, mas se tornou. Isso é próprio do fascismo.

 

Lígia Souza: Isso está diretamente no uso da linguagem da palavra, não se trata da afirmação de um outro sentido, mas o quanto esse sentido pode ser expandido e ampliado a cada novo momento de enunciação. O teatro está o tempo todo pensando essas possibilidades, a cada ato. O quanto temos nesse espaço a fluidez da palavra enquanto outras possibilidades e não afirmação de um parâmetro hegemônico.

 

Marcio Abreu: No teatro a palavra não está garantida pelo que formula os sentidos na língua do uso corrente, e é essa língua que é dominada pela cultura. No teatro, nas artes vivas, a palavra pode escapar um pouco do campo da cultura e vibrar em outras frequências. E ficar um pouco vulnerável, ser um pouco estrangeira, um pouco mais perfurada e incluir mais corporeidades, mais ancestralidades, outros movimentos, abrir outras perspectivas de escuta, percepção e, portanto, de entendimento.

 

Lígia Souza: Me veio a Leda de novo, quando ela fala sobre a experiência virtual, o quanto a não-palavra — o figurino, o teatro — traz essas instâncias de encruzilhada, de cruzamento, de instâncias ancestrais, instâncias do catolicismo com afro, e o quanto isso se dá no ato do ritual. O quanto vemos ali a coexistência dessas palavras de lugares diferentes se manifestando de forma diferente. Não somente pela enunciação, pelo canto, mas por esse corpo que dança, por esse corpo que veste.

 

Luciana Romagnolli: A dimensão erótica do teatro, essa ideia de uma corporeidade, do sensorial, que também tem algo do sensual, é um campo que o teatro coloca em evidência, às vezes mais do que outros usos poéticos da palavra. É um campo que também está em disputa, porque temos uma disputa conservadora muito grande. Como é para vocês, como dramaturgos, a lida com essa dimensão erótica, sensorial, corporificada?

 

Lígia Souza: É engraçado, acho o [Valère] Novarina é um ponto fora da curva dentro do teatro francês. Dentro da tradição francesa do teatro, que tem esse lugar do bem falar, da retórica, o Novarina parte dessa experimentação da linguagem justamente para quebrar essa acuidade, esse zelo pela palavra que vem da tradição francesa. Ele diz: “Escrevo com os ouvidos. Para atores pneumáticos”. Fui estudar o Novarina também nesse chamamento de pensar a palavra no outro lugar, que também vem de ler brasileiros — o Guimarães Rosa, que para nós, que estudamos oralidade, é o maior. Tem toda essa tradição, mas fui buscando espaços de respiro onde conseguiria me encontrar com essas referências, acho que é um lugar de cruzamento mesmo. Não só de refutar, mas como pensamos essa encruzilhada. Como é que as nossas referências aqui também se encontram por afastamento e por aderência com essas outras referências. Na prática, eu falhava na tentativa de escrever diante de normas, preceitos de dramaturgia.

Quando comecei a escutar mais a palavra acontecendo na escrita, a coisa foi se operando. Essa dimensão coletiva é fundamental porque me alimenta na escrita, é como se você escutasse essas pessoas falando. Mesmo quando não é no sentido de trabalhar com uma companhia, com grupo e tudo mais, a dimensão oral está o tempo todo operando na escrita e trazendo outras formas, outras possibilidades de perceber a estrutura. Não jogando fora tudo aquilo que nos serviu em algum momento e que fez sentido, mas dando vazão a outras potencialidades. Quando penso em identidade de gênero, me vem antes de tudo um corpo que escreve, uma experiência que parte dessa vivência no encontro com a alteridade, no encontro com o outro, com outras vivências, e tenta dialogar com isso. Também entendendo esses movimentos com a França, principalmente de pesquisa acadêmica, mas também como atravessamento, cruzamento e produção múltipla de sentidos. E a cada peça é uma coisa diferente. A cada novo movimento de escritura eu escuto outras coisas, fluo de outra maneira na escrita.

 

Marcio Abreu: Tem duas coisas para mim que têm a ver com essa dimensão erótica e também com essa ideia da palavra restrita ao sentido, ou do uso da palavra restrito a um unívoco sentido de sentido, ou a um hegemônico sentido de sentido. A palavra pública, essa das artes presenciais, vivas, tem uma coisa, nesse exercício da escrita dramatúrgica: ela ocupa ou pode ocupar um lugar de uma materialidade quase palpável, ou que se deseja palpável. Você coloca a palavra aqui — uma peça de teatro poderia ser um pouco isso — e ela é um campo que você penetra, e eu também. Esse múltiplo e dinâmico campo de atravessamentos e penetrações é a experiência mesmo, é o que forma a experiência. É menos o uso da palavra nessa dimensão do controle, do domínio, mas também do risco, e risco é algo absolutamente fundamental na experiência erótica.

A outra coisa é que tem a língua que está no campo da cultura, e é absolutamente erótico você alegrar as palavras, entumecer as palavras. Todos os europeus com que eu lidei são autores que formulam línguas dentro da língua, são dissidentes. Eles entumecem a linguagem dentro da língua que se restringe à cultura. São línguas próprias dentro do próprio idioma. É o que eu faço, ou tento fazer, quando escrevo. Não para ser original, mas porque não há outra maneira. E tem outra coisa que é também bastante erótico de escrever e formular dentro da língua e das linguagens que é quando você para de dominar, quando o texto ou a coisa “coiseia”. Quando o texto fala, ele mesmo, vai te dizendo e você vai escrevendo porque o texto diz. Não é porque você, como sujeito, manifesta todo o seu pensamento e aquilo que você quer dizer para o mundo. Poderia ter dito, então fica querendo dizer, diz aí.