FLIBI | Abaixo Dostoiévski 30/01/2023 - 16:00

Tradutores traçam um panorama da cultura e da literatura russa a partir do “cancelamento” recente de escritores do país devido à invasão da Ucrânia

com Irineu Franco Perpétuo e Letícia Mei

mediação de Yuri Al'Hanati

 

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Foto: Murilo Ribas

 

Yuri Al'Hanati: Para falar sobre o “cancelamento” da cultura e literatura da Rússia, precisamos entender o que é a literatura russa para os russos e por que existe essa disputa simbólica em torno das artes quando o assunto é esse país específico.

Irineu Franco Perpétuo: Costumo dizer, de modo provocativo, que sem a literatura russa não existiria a literatura brasileira. Por exemplo, hoje [9 de novembro de 2022] estamos todos consternados com o falecimento da cantora Gal Costa. Você deve estar se perguntando o que tem a ver. Uma das canções icônicas interpretadas pela Gal se chama “O Amor”, composta por Caetano Veloso, a partir de uma poesia de Maiakóvski. Observem, isso é tão constitutivo da nossa cultura: Caetano reelabora Maiakóvski, que ganha a voz de Gal Costa. Isso é só uma colherzinha de chá sobre a presença da cultura russa dentro da cultura brasileira. Esse país enigmático, tão distante. A presença de pessoas russas no Brasil é minúscula. E, no entanto, a literatura russa no país é fortíssima. Diferentemente da cultura italiana, que tem muitos descendentes no Brasil, mas quase nada de literatura circulando forte por aqui — às vezes aparece uma Elena Ferrante salvando a pátria. Só escrevi Como Ler os Russos (Todavia, 2021) porque tem muitos escritores russos para se ler no Brasil. E todos me perguntam: “Qual o motivo da força da literatura russa?”. Está ligado a especificidades culturais do país: na Rússia, literatura é mais do que literatura. Por lá, se cobra valor de ingresso para ver leituras de escritores. Os poetas montam espetáculos de declamação, igual músicos de concertos. Como aqui no Brasil se tem mesas-redondas para debater futebol, lá tem mesa-redonda para se discutir as poéticas de Tolstói, por exemplo. Toda a literatura russa que conhecemos, tirando autores recentes, foi escrita sob censura. Não é algo que o comunismo inventou, já havia antes. E as discussões de ciências humanas estavam interditadas, ou seja, não dava para discutir teologia, sociologia, filosofia, teosofia, nada. O que aconteceu é que a literatura cumpria vicariamente essa função de arena das discussões públicas. Por isso os romances russos parecem que abarcam o mundo.

 

Yuri Al'Hanati: Realmente, quando se vai para Moscou vê-se a presença desses escritores clássicos em tudo. São nomes de linhas de metrôs — Mayakovskaya, por exemplo —, bibliotecas, estátuas e até avenidas — Gogolevsky Boulevard, outro exemplo.

Letícia Mei: Essa questão sobre a literatura russa ser uma arena de discussões públicas vem desde a formação da própria literatura russa, desde Púchkin — não que não houvesse literatura antes, uso Púchkin aqui por ser considerado o pai da literatura russa. Dos anos 2000 para cá, o papel da literatura se pulverizou um pouco por conta da internet e outros espaços, mas ela ainda é muito presente. Acho que é um dos poucos países em que ocorrem mortes por conta da discussão se a prosa é maior que a poesia. Os ânimos ficam aflorados quando se fala disso. Pensando na censura, sim, sempre houve, faz parte da história literária da Rússia. Existem estudiosos que dizem que a produção russa é tão boa justamente por conta dos percalços e dificuldades de se criar em um ambiente tão opressor. Por exemplo, a partir dessa opressão, criou-se uma linguagem que se chama de esopiana, onde a linguagem é simbólica e velada. Acho que O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgakóv, é um grande representante disso. Um russo vai ter uma dimensão maior desse tipo de romance, mas qualquer um vai conseguir reconhecer a grandiosidade. Por mais que tenha elementos que sejam compreendidos em sua totalidade só por quem vive naquela cultura, ela ainda toca no que tem de universal. Por isso Dostoiévski muda a vida de muita gente. Eu mesma só fui estudar literatura porque li Crime e Castigo.

 

Yuri Al'Hanati: É muito impressionante como o autor russo representa a Rússia mesmo fora do país, não só para o povo russo, mas para todo o mundo que recebe essas obras como força de expressão desse país. Percebe-se isso, por exemplo, na premiação do Nobel — os russos foram laureados cinco vezes. No entanto, todos os autores eram dissidentes. Foram reconhecidos por suas posições políticas em contraposição ao sistema estabelecido no país de origem. A exceção foi Maiakóvski.

Letícia Mei: O povo russo não ligado à literatura não gosta de Maiakóvski. A imagem que eles têm é a de um poeta escolar, um poeta cuja obra tiveram que decorar na escola. Percebo um apreço maior por Púchkin. Falando do diálogo entre literatura russa e a brasileira, existe um trabalho incrível de tradução da obra do Maiakóvski pelos irmãos Campos e o professor Boris Schnaiderman que passou a integrar o cânone da poesia brasileira. O papel da tradução é importante como recepção e criação do cânone da literatura nacional. E na seleção dos poemas traduzidos, não tem só os poemas de defesa da bandeira rubra, há poemas da primeira fase dele, em que criticava o regime comunista. É engraçado como ele ficou conhecido como defensor do regime, mesmo tendo toda essa complexidade.

Irineu Franco Perpétuo: Só para dimensionar o tamanho de Púchkin, ele não é apenas o maior escritor russo, é o maior ícone cultural da Rússia. Lá vai uma pequena anedota: em 2016, o encenador de teatro Bob Wilson foi para Moscou montar um espetáculo a partir de Púchkin. O protagonista dessa peça foi num grande show de TV da Rússia e disse que ele iria ler um poema de Púchkin. E aqueles que soubessem completar corretamente iriam ganhar ingressos gratuitos para a peça. Ele não conseguiu: a cada poema que lia, a plateia respondia em coro. Em Moscou, o nome dele está por todo lado. Agora sobre o Nobel, sempre foi um prêmio político. Recentemente, premiaram a Svetlana Aleksiévitch porque ela denuncia as coisas por lá. É um prêmio bacana — especialmente para quem ganha. Mas o Nobel não é o último juízo de valor sobre a produção literária. Na equação do Nobel entra uma conta muito clara da relação entre o ocidente e a Rússia. O Nobel é uma peça nesse jogo geopolítico de xadrez.

 

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Yuri Al'Hanati: Falando sobre a recepção da literatura russa no Brasil, o professor Bruno Gomide, da USP, tem dois livros sobre o assunto. A preocupação do Gomide vem da importância de como recebíamos esses autores no passado, em um contexto estritamente político. O que dá pra considerar sobre isso?

Letícia Mei: Lendo e estudando o Bruno, a gente aprende que a literatura russa entrou no Brasil no final do século XIX, pela França. Há algumas menções importantes também no modernismo, ainda muito incipiente e novo. Depois de um tempo, essa literatura sofreu muita censura no Brasil. No Estado Novo, houve perseguição e confisco de livros. Já nos anos 40 foi o período de boom, sendo a fase com mais livros traduzidos. Daí veio uma época de intermitência. E, então, um período que me marca muito, que é o boom dos anos 2000, pois sou dessa geração. Foi com os livros da Editora 34, com tradução diretamente do russo, que eu e muitos amigos acadêmicos acabamos enveredando pelos caminhos da russística. Essa recepção não é recente. Embora pareça que é algo de 20 anos atrás, já tem mais de 100 anos, sofrendo percalços políticos também.

Irineu Franco Perpétuo: O Monteiro Lobato lamentava que o Brasil, na época dele, era uma colônia mental da França. Isso significava que o que rebatia na França reverberava aqui com muita força. É impressionante como cada gênero da literatura brasileira tem um pai fundador muito importante que leu os russos e falou muito sobre eles. Por exemplo, Lima Barreto, Drummond na poesia, a prosa do Lúcio Cardoso, sem falar no teatro do Nelson Rodrigues — Bonitinha, Mas Ordinária trata-se de um dilema dostoievskiano, é a representação do “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Aliás, talvez Nelson Rodrigues seja a materialização dos dramas dostoievskianos. Os romances de Dostoiévski pedem uma dramatização, um palco.

 

Yuri Al'Hanati: Falando sobre a figura do tradutor do russo no Brasil, percebo, como leitor interessado e divulgador desse tipo de literatura, que esse papel tem ares de celebridade. É comum, ao se deparar com um livro russo, perguntar quem é o tradutor e se a tradução é direta ou indireta. Não acontece com nenhuma outra língua. Isso diz um pouco do trauma das edições antigas traduzidas indiretamente do francês.

Irineu Franco Perpétuo: Eu não estaria aqui se não fossem as traduções indiretas. Não nasci fã de literatura russa e não tinha acesso a traduções diretas. Mas acho que, se o sujeito partir de uma boa tradução, pode ser uma experiência boa. Ótimos escritores traduziram livros russos indiretamente. Se toda a importância dessa literatura aqui no Brasil vem dessas traduções indiretas, algum valor elas deviam ter, ainda mais que muitos escritores brasileiros importantes se deixaram marcar pela literatura russa.

Letícia Mei: Um bom tradutor é um bom escritor. O primeiro livro russo que li foi Crime e Castigo numa tradução indireta, lançado pela editora Abril, era uma coleção de banca. E como o Irineu ressaltou, alguma coisa boa dá para absorver dali. Dá para avaliar e dizer: “Sim, isso é literatura do mais alto nível”. É claro que Muma tradução direta, especialmente com um estudioso da área, você vai conseguir pegar nuances e elementos que outro tradutor não pegaria. Isso que você disse sobre o tradutor do russo ter um pouco mais de reconhecimento é mérito do nosso trabalho, que é voltado para pesquisa, fruto de anos de pesquisa e não de uma encomenda editorial. A Editora 34 tem papel fundamental nisso, oferecendo espaço para colocar o nome do tradutor na capa e para trazer paratextos em suas edições. Esse diálogo da universidade com o mercado editorial foi muito saudável. Acho que o papel do tradutor é essencial, nós ajudamos a formar a literatura mundial. Saramago dizia algo como: "Os escritores fazem as literaturas nacionais e os tradutores fazem a literatura universal". Então, acho justo que seja valorizado o trabalho do tradutor, não necessariamente com o nome na capa, mas que se tenha o reconhecimento de que ali existe um trabalho autoral, de criação artística.